Igapó, a floresta
feita de água
Inundadas durante até dez meses do ano, as matas de igapó abrigam uma amostra valiosa da biodiversidade amazônica.
Texto por
Letícia Klein e
Ronaldo Ribeiro
Arte de
Luiz Iria
Típicas da Amazônia, as matas de igapó permanecem alagadas durante a maior parte do ano. O tempo dessa inundação – dez meses em certas áreas – diferencia o igapó dos outros dois tipos principais de floresta da região: a várzea, que também alaga conforme as cheias e vazantes dos rios, e a de terra firme. O igapó, por isso, é o lar de animais que adotam um estilo de vida arbóreo e semiaquático. A vegetação é igualmente especializada: árvores como macacarecuia e arapari podem ficar submersas até perto de suas copas. Seguindo o pulso de inundação do rio Amazonas e seus tributários, as águas sobem até 10 metros entre dezembro e junho, quando as cheias atingem o seu pico.
“O mundo do igapó combina a beleza das matas de terra firme com o mistério aquático e anfíbio dos rios”, define o pesquisador Michael Goulding em seu livro História Natural dos Rios Amazônicos. “É a resposta harmônica da natureza à união entre a vida aquática e a vida terrestre, o hábitat onde os principais tipos de vida convivem e interagem.”
A previsibilidade do ciclo anual de chuvas da Amazônia permitiu que animais e pessoas se adaptassem ao longo dos séculos aos ecossistemas tropicais, mas mudanças climáticas e atividades humanas (mineração, desmatamento, barragens de hidrelétricas) revelam-se uma ameaça crescente ao ambiente e ao modo de vida na maior bacia hidrográfica do planeta.
Dentre todas as árvores das áreas alagáveis, a macacarecuia (Eschweilera tenuifolia) é a que alcança a idade mais avançada – há registros de espécimes de mais de 800 anos. É também a única que suporta ficar até 9 metros submersa.
Maior ave de rapina do Brasil, o gavião-real (Harpia harpyja) faz ninhos em árvores altas de florestas de terra firme, mas frequenta o igapó para caçar presas como a preguiça-real, macacos-prego, iguanas e cobras.
A araracanga (Ara macao) e a arara-vermelha (Ara chloropterus, ao fundo) usam os igapós para pernoite e alimentação – sementes de palmeira são refeições cobiçadas. Quando as águas baixam, os bandos são vistos no solo, nas margens ou em rochedos.
As aves tidas como florestais, que não são aquáticas, usam a vegetação dos igapós como abrigo, fonte de alimento e local para os ninhos. Uma delas é a choca-preta-e-cinza (Thamnophilus nigrocinereus), que vive somente nas áreas alagáveis.
A cigana (Ophisthocomus hoazin), ave mais icônica da inundação na Amazônia, faz seus ninhos em galhos perto da água. Algo desajeitada, ela se movimenta devagar e tem o voo pesado e barulhento.
Apesar de lenta na locomoção pelas árvores, a preguiça-real (Choloepus didactylus) é ótima nadadora e não hesita em cruzar curtas distâncias para buscar alimento. Entre os mamíferos do igapó, é o que melhor evoluiu para o consumo de folhas.
Nas áreas inundáveis, a onça-pintada (Panthera onca) adota comportamento peculiar: o grande felino passa até um terço de sua vida nas copas das árvores, onde caça (tambaquis, por exemplo) e se reproduz.
Quando percebe algum perigo, o lagarto jacuruxi (Dracaena guianensis) salta das árvores e despenca na água para escapar. Sua cauda longa diminui a velocidade da queda e ajuda a manter o equilíbrio.
O ouriço-cacheiro (Coendou prehensilis), conhecido como “porco-espinho arborícola”, só existe nas florestas de várzea e igapó. Ele sobe nas árvores com facilidade e se alimenta principalmente de folhas e frutos.
Apenas 13% das espécies das aves em ambientes alagáveis são aquáticas restritas. Uma delas é a biguatinga ou carará (Anhinga anhinga), que explora o igapó na época das cheias. Para pegar suas presas, ela mergulha e chega a ficar totalmente submersa.
Há 32 espécies de perereca do gênero Phyllomedusa. Elas possuem glândulas externas, primeiro dedo do pé mais longo do que o segundo e ausência de membranas entre os dedos. A colocação dos ovos é feito na superfície da água, dentro de uma folha.
A ariranha (Pteronura brasiliensis) é a maior espécie de lontra – mede até 1,8 m – e também a menos terrestre. Os animais permanecem nos igarapés e, na época das cheias, frequentam as matas de igapó em busca de alimento.
Espécie de tartaruga mais comum da América do Sul, o tracajá (Podocnemis unifilis) bota seus ovos em substrato arenoso, barrancos de pouca inclinação, nas margens de lagos ou no meio da vegetação.
Os igapós surgem em rios de água clara e água preta, caracterizados por acidez e grande quantidade de matéria orgânica. Já as várzeas predominam nos rios de água branca, ricos em sedimentos que nutrem o solo.
Os botos são os principais predadores aquáticos dos rios amazônicos. O boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), personagem do imaginário popular ribeirinho, está em risco devido à sua captura ilegal para servir de isca da piracatinga.
Oriunda de eras geológicas antigas, a pirambóia (Lepidosiren paradoxa) é o “mais admirável sobrevivente de água doce da Terra”, diz Michael Goulding. Na seca, ela se enterra na lama e passa a respirar por meio de sua bexiga natatória, que serve como um pulmão.
Predador voraz, o tucunaré (Cichla spp) prefere ambientes de águas paradas, como lagos e remansos. A espécie está entre as mais visadas pela pesca esportiva.
O peixe-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis) é o maior animal do bioma, podendo chegar a 3 m de comprimento e pesar 500 kg. A espécie se alimenta principalmente de plantas superiores, como gramíneas aquáticas.
O aruanã (Osteoglossum bicirrhosum) se alimenta sobretudo de insetos e aranhas. Ele salta para fora da água em busca das presas em galhos e cipós – entre ribeirinhos, ganhou o apelido de “macaco d’água”.
Mais comum nos lagos de várzea, o jacaré-açu (Melanosuchus niger) se dispersa pelo igapó nos meses de cheia. O enorme réptil permanece em grupos e se alimenta de qualquer animal que consiga capturar, vivo ou morto.
Um dos maiores peixes com escama do Brasil, o tambaqui (Colossoma macropomum) pode atingir mais de 1 m e pesar 30 kg. Quando entra no igapó, ele nada entre as árvores até encontrar os frutos e sementes dos quais se alimenta.
Com alto valor de mercado, o tetra-cardinal (Paracheirodon axelrodi) é um dos peixes ornamentais mais cobiçados da Amazônia. É um ícone das águas pretas da bacia do Rio Negro.
O ciclo das águas determina o cotidiano dos ribeirinhos. A densidade populacional nos igapós é menor do que nas várzeas, onde as condições naturais são mais propícias para agricultura, a pecuária e o manejo extrativista.
Depois de se cobrirem de pólen dentro de uma flor, onde passam a noite, os besouros escarabeídeos voam para outra e as polinizam. “Os besouros fazem parte do grupo de animais mais diverso do planeta”, diz o pesquisador Filipe França, da Rede Amazônia Sustentável.
Muito curioso, o macaco-de-cheiro (Saimiri sciureus) gosta de observar os ribeirinhos que navegam pelos igarapés abaixo das árvores onde se reúnem em bandos de 20 a 50 indivíduos.
Como o nome sugere, o formigueiro-liso (Myrmoborus lugubris) gosta de comer insetos e aranhas no chão da floresta. Machos e fêmeas têm cores diferentes: o cinza predomina nos machos, e o castanho, nas fêmeas.
O bugio ou guariba (Alouatta spp) vive em bandos e tem um rugido característico da espécie. Os indivíduos se alimentam de folhas e brotos, além de frutos, e passam a maior parte do tempo descansando.
As bromélias usam outras plantas como suporte e costumam se estabelecer em árvores de grande porte. Por reter bastante água, podem abrigar pequenos ecossistemas em suas folhas, um hábitat para sapos e pererecas.
As borboletas Morpho menelaus chamam a atenção pela cor, um azul iridescente – vista por baixo, porém, as asas são castanhas. A espécie se alimenta de seiva das árvores e de frutos em fermentação.
Fontes:
Conhecendo as Áreas Úmidas Amazônicas: uma Viagem pelas Várzeas e Igapós, Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa); História Natural dos Rios Amazônicos, Michael Goulding; Projeto Águas Amazônicas, Wildlife Conservation Society (WCS).
Cientistas consultados:
Michael Goulding, WCS; Jochen Schongart, Inpa; Angélica Resende, Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/Universidade de São Paulo; Ana Carolina Antunes, Universidade de Jena Friedrich-Schiller, Alemanha; Tayane Carvalho, Idesam.
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