Como esses pequeninos peixes da Amazônia sobrevivem à mordida da piranha?

O pequeno bagre da espécie Corydoras trilineatus é capaz de aguentar várias mordidas de piranha – as escamas superfortes podem servir de inspiração para novos materiais desenvolvidos por humanos.

Por Elizabeth Anne Brown
Publicado 27 de jan. de 2021, 07:00 BRT
A espécie Corydoras trilineatus, um tipo de bagre blindado, tem escamas superfortes que lhe permitem sobreviver ...

A espécie Corydoras trilineatus, um tipo de bagre blindado, tem escamas superfortes que lhe permitem sobreviver a ataques de predadores com dentes afiados.

Foto de National Geographic

PESQUISADORES DE UM laboratório de biomecânica da Califórnia, nos Estados Unidos, recentemente simularam o que deve ter sido a disputa mais desigual de todos os tempos em um reservatório de água doce. Em um canto foi colocada uma piranha-vermelha, o terror com dentes da Amazônia. No outro, colocou-se um coridora da espécie Corydoras trilineatus, um bagre com aparência atordoada com cerca de três centímetros de comprimento.

A piranha encurralou o coridora em um canto, abriu bem a boca e o mordeu uma, duas, por fim, 10 vezes — e o bagre simplesmente se contorceu e se desvencilhou, inabalado, embora um pouco irritado.

“Não foi nem mesmo uma resposta de espanto, pois ele nadou rapidamente para longe”, relata Misty Paig-Tran, professora associada de ciências biológicas na Universidade Estadual da Califórnia, em Fullerton, rindo de admiração. “Foi uma reação do tipo, ‘O que você pensa que está fazendo? Pare de me atormentar’.”

E como esse peixe tão pequeno consegue suportar os ataques? De acordo com pesquisas recentes publicadas na revista científica Acta Biomaterialia , o segredo reside em sua armadura: escamas especializadas de colágeno e mineral, que superam seu peso. Pesquisadores esperam que os humanos consigam imitar essas escamas na criação de materiais mais fortes e mais leves, como trajes de proteção corporais.

Nadando para ver outro dia nascer

O coridora da espécie Corydoras trilineatus pertence a um grupo taxonômico denominado bagre blindado e passa os dias vagando pelas margens arenosas e no fundo dos rios lamacentos do Amazonas e seus afluentes. Por meio de seus bigodes carnudos, revestidos de papilas gustativas, caça seu alimento.

Medindo entre 2,5 e 5 centímetros de comprimento, esses peixes são comidos inteiros por alguns predadores grandes, incluindo ariranhas e botos-cor-de-rosa. Mas quando se trata de piranhas — especialmente as menores, que tendem a se interessar pelo bagre — as escamas do coridora o dão uma chance de lutar.

No decorrer do estudo, os coridoras da espécie Corydoras trilineatus foram introduzidos em cativeiros de criação de piranhas-vermelhas. Andrew Lowe, agora assistente de pesquisa na Universidade de Chapman, percebeu que o prognóstico do coridora era sombrio — vídeos de aquaristas alimentando suas piranhas de estimação revelam que uma mordida no abdômen pode ser suficiente para arrancar as entranhas de peixes de tamanhos semelhantes, mas que não são blindados.

As piranhas-vermelhas possuem dentes afiados, que lhes permitem comer diversos animais menores, incluindo peixes, crustáceos e insetos.

Foto de National Geographic

Mas os coridoras se mantiveram firmes. Eles fizeram uso de seus espinhos afiados localizados em suas nadadeiras peitorais e na parte posterior de seu corpo para forçar as piranhas para longe da fenda principal em sua armadura — área ao redor de suas guelras, em que uma mordida bem dada pode resultar em decapitação.

As piranhas geralmente atingiam a cauda, mas lutaram para romper a armadura do coridora. Quando o fizeram, precisaram mastigar em média oito vezes para abalar sua armadura. As piranhas tiveram ainda mais dificuldade em romper as escamas abdominais do bagre — foram bem-sucedidas em apenas 20% das vezes, com uma média de 10 picadas até a punção.

Três das piranhas desistiram depois de seus ataques fracassarem, ao passo que as outras sete conseguiram assustar suas presas. Mas isso somente ocorreu nos casos em que tiveram tantas revanches quanto precisavam e nenhum lugar para o coridora escapar. Na natureza, a água turva e as plantas fornecem muitos lugares para um peixe esperto se esconder, explica Lowe.

“Só é necessário manter sua armadura intacta até que a piranha o solte”, acrescenta Paig-Tran. Se conseguirem escapar sem danificar seus órgãos internos, “eles viverão para lutar contra outra piranha, em um outro dia”.

Imitando os coridoras

Ao contrário do peixe-arco-íris ou do peixe betta que você pode ter visto em sala de aula no ensino fundamental, as escamas do coridora não são arredondadas. Elas se parecem mais com um baralho de cartas em leque, longo e fino, e organizado em duas fileiras verticais que percorrem a extensão de seu corpo. E ao passo que as escamas da maioria dos peixes vivos são formadas por odontoblastos, as mesmas células que formam nossos dentes, as escamas do coridora são formadas por osteoblastos, células responsáveis pela formação dos ossos.

Essas escamas são bastante resistentes. Mas Lowe diz que na verdade é uma parte macia da armadura do peixe que lhe dá essa vantagem. Cada escama é composta por duas camadas: uma superfície dura mineralizada e uma rede de tecido feito de colágeno, a mesma proteína que torna nossa pele elástica e forma a estrutura dos nossos ossos.

Superfícies duras — especialmente as finas, como espelhos ou pratos de jantar — são propensas a se fragilizarem e racharem sob estresse. A camada dura de mineral da escama torna mais difícil para os dentes da piranha perfurarem o corpo do coridora, pois sua camada macia inferior ajuda a absorver a força das mordidas para evitar que a escama em si esmague.

Marc Meyers, engenheiro de materiais da Universidade da Califórnia, em San Diego, que não participou desse estudo, descreve os resultados da disputa no tanque de Lowe como sendo intrigantes. “A armadura dérmica evoluiu diversas vezes na natureza”, cada uma feita sob medida para a “corrida armamentista” predador-presa da ecologia local, conta Meyers. Ele acrescentou que está ansioso para examinar a nanoestrutura da parte macia da escama do coridora.

Se o coridora é um peso-pena, o peso-pesado da Amazônia é o pirarucu, que pesa 90 quilos e pode chegar a medir 1,80 metro de comprimento. Meyers e sua equipe estudaram esse peixe durante uma década. A armadura do pirarucu utiliza colágeno extraído de complicadas folhas em espiral para difundir a pressão. O colágeno do coridora talvez se pareça com o do pirarucu em miniatura, ou talvez seja uma estrutura novinha em folha, pondera Meyers.

Estamos tentando decifrar como funciona a armadura dos peixes há milhares de anos e até já a utilizamos para projetar armaduras. Paig-Tran ressalta as escamas complexas e duras de peixes da Dinastia Han e dos povos citas como exemplos de tentativas de imitar a natureza, uma prática conhecida como biomimética.

Hoje, os pesquisadores observam a proteção que é ao mesmo tempo dura e leve em espécies de peixes como o coridora como um modelo para criar uma armadura corporal mais leve e flexível. Equipes em todo o mundo testaram a armadura de escama de peixe feitas de polímeros impressos em 3D, além de vidro e cerâmica perfurada. Recentemente, um grupo do Imperial College London desenvolveu o protótipo de escamas de polímero ultrafino reforçado com fibra de carbono que, de forma intacta, aguentou uma carga 46% maior do que uma camada contínua de polímero de fibra de carbono.

Paig-Tran relata não estar surpresa com peixes como o “pequeno tanque da Amazônia” exercendo tamanha influência em invenções humanas. Afinal, eles já são especialistas no assunto há milhões de anos.

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