Com 25 de março fechada, trabalhadores autônomos sofrem para manter renda

Maior centro comercial da América Latina recebia 400 mil pessoas diariamente antes da pandemia e quase um milhão em época de Natal. Hoje, a região no centro de São Paulo está praticamente vazia.

Por Gabi Di Bella
fotos de Cris Veit
Publicado 25 de mai. de 2020, 11:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT

Todas as manhãs e fins de tarde, antes e depois do horário comercial, dezenas de bancas envoltas em uma lona azul se alinhavam nas calçadas da 25 de março. Hoje, com a pandemia, o cenário é deserto e os profissionais ambulantes e autônomos da região não sabem o que será do futuro.

Foto de Cris Veit

Todos os dias pela manhã dezenas de bancas de comerciantes se alinhavam ao lado do cordão da calçada. Logo começava o forte movimento. Música alta e a voz familiar do apresentador Silvio Santos – emulada por locutores contratados pelas lojas anunciando promoções – misturavam-se aos gritos de camelôs oferecendo produtos. Tudo isso em um espaço disputado por consumidores carregados de sacolas e carrinhos com caixas empilhadas. Um cotidiano que terminava com mercadorias guardadas e as bancas embaladas com lona azul ao fim da tarde.

Hoje, na rua 25 de março, onde antes se ouvia o som alto, reina o silêncio. O espaço, disputado centímetro por centímetro entre bancas, camelôs e vendedores, está praticamente vazio. As bancas seguem embaladas, guardadas em um estacionamento, tal como totens às relações comerciais do passado recente. Localizada no centro de São Paulo, a maior zona de comércio popular da América Latina vive uma situação sem precedentes causada pela pandemia de covid-19. Uma paralisação total do comércio formal e informal afeta cerca de 60 mil pessoas que tiravam o sustento trabalhando na área. Estima-se que a "25" (como é chamada por frequentadores) recebia em torno de 400 mil consumidores por dia. Em dezembro, perto do Natal, este número podia chegar a 1 milhão. As fotos da região erma são emblemáticas deste período de quarentena.

Silêncio e o vazio assombram o baiano Gildo Silva dos Santos, 42 anos. Há 15 anos atuando como camelô na 25, ele tenta encontrar uma saída para a falta de atividade econômica. "É difícil, eu estava acostumado a acordar cedo todos os dias, pegar ônibus e metrô e passar na feira do Brás para buscar mercadorias. Costumava ver bastante gente. Em casa não sei o que fazer, a gente perde a noção do tempo, às vezes, como compulsivamente, pensando no que pode acontecer", conta Gildo.  

Estima-se que a 25 de março recebia, antes da pandemia, em torno de 400 mil consumidores por dia. Em dezembro, perto do Natal, o número podia chegar a 1 milhão.

Foto de Cris Veit

“A vontade é de abrir um buraco e colocar a sua família dentro e ficar lá anos até que tudo se acabe”

por Ronie Silvério
Camelô

Em 18 de março, como costumava fazer diariamente, Gildo embalou sua banca de roupas e foi para casa. Mas não voltou no dia seguinte. Agora, passa os dias de quarentena junto dos dois filhos e a esposa. "Somos autônomos, se a gente não vende, não recebe. Estou com todas as contas atrasadas, escola, aluguel, cartão de crédito. Estamos comprando fiado no mercadinho e no açougue, por sorte nos conhecem e sabem que pagamos direitinho, mas não sei até quando eles vão confiar na gente", conta. Gildo tem mais duas filhas, uma estudante de publicidade e outra de arquitetura e urbanismo, a quem ele costumava auxiliar financeiramente, mas cuja ajuda a pandemia o obrigou a cortar. 

A mudança brusca de cotidiano gera angústia e depressão nos trabalhadores. Amigo de Gildo, o também camelô Ronie Silvério, 46 anos, descreve a situação como desesperadora. "Eu e o Gildo não dormimos mais, ficamos conversando durante a madrugada. Tem horas que você está com a televisão ligada mas não significa que você tá assistindo, a sua cabeça está em outro lugar. Essa é a situação real do brasileiro", desabafa. Ronie divide um apartamento de 40m² com dois filhos e a esposa, que segue trabalhando. "Está faltando tudo em casa, é uma dificuldade muito grande, minha esposa segue no emprego mas cortaram o salário dela pela metade. A vontade é de abrir um buraco e colocar a sua família dentro e ficar lá anos até que tudo se acabe", diz Ronie. 

Ronie passou a adolescência tentando ser jogador de basquete, chegou a ser aprovado em um teste no Corinthians, mas a falta de dinheiro para transporte e comida o levou a desistir da vida de atleta. Trabalhou em várias áreas e diz que foi a venda de CDs piratas, há 15 anos atrás, que o levou até à 25 de março. "Depois de um tempo vendendo CDs eu consegui juntar uma grana para montar minha própria banca, hoje vendo roupas", conta. Os dois filhos que moram com ele estão sem aula e, como ainda não conseguiu o auxílio de R$ 600 prometido pelo governo, teve que cortar o auxílio financeiro aos outros dois. "Tenho quatro filhos, dois moram comigo, eles estão sem aula. O de 11 anos gosta de estudar e quer ir para a escola, eu nem sei o que fazer. Hoje para eles o que tenho é meio quilo de frango na geladeira, é a mistura do dia.”

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    Jornalista que trabalhava como locutor em uma loja de acessórios, Paulo dos Santos Ramalho, 38 anos, também não sabe como vai enfrentar a pandemia. "É uma situação muito grave. Sou MEI [Micro Empreendedor Individual] mas a maioria não é”, diz ele. “Alguns tem autorização para trabalhar, mas 90% não tem registro. Lá, a maioria dos patrões tem essa prática de não registrar. Não tem nenhum tipo de apoio, nada, nenhum vínculo empregatício para receber FGTS.”

    Morador de Itaquacetuba, na região metropolitana de São Paulo, Paulo conta que seu cotidiano também começava muito cedo: "As quatro horas já estava de pé, eram três horas de transporte para as oito horas estar lá na 25. No fim da tarde, mais três horas para voltar para casa no horário de pico, daquele jeito que todo mundo já sabe no metrô”. Paulo conseguiu o auxílio emergencial do governo, mas ainda assim teve que trancar a faculdade de direito que cursava. A esposa segue fazendo doces e salgados em casa para seguir sustentando os dois filhos, um de 16 e outra de um ano e seis meses.

    A fotógrafa paulistana Cris Veit fez estas imagens em um dia normal em 2019. Hoje, com praticamente todo o comércio da 25 de março esvaziado, as fotos das barracas fechadas ganham novo sentido.

    Foto de Cris Veit

    “Acho que se voltar não vai ter movimento, as pessoas não vão querer se arriscar”

    por Gildo Silva dos Santos
    Camelô

    Em comum, esses trabalhadores tem a falta de expectativa. A 25 de Março era famosa pelos preços baixos e pela aglomeração de pessoas. Acostumado a imitar personagens brasileiros, Paulo ri ao lembrar de suas imitações do apresentador Silvio Santos, uma das que mais fazia sucesso. "Pelo menos a gente ainda pode dar umas risadas", diz ele, que não tem muita esperança em voltar ao trabalho. "A loja, em si, depende de o estado liberar, acho difícil que libere tão cedo. Particularmente não tenho expectativa de voltar agora. Não vejo alternativa e acho que ainda vai durar alguns meses.”

    Gildo destaca que o movimento era, em grande parte, de pessoas que vinham de longe. “Acho que se voltar não vai ter movimento, as pessoas não vão querer se arriscar. Vinha muita gente do sul e do nordeste que viajava para cá só para comprar as novidades.”

    Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, a crise econômica provocada pela pandemia deve gerar uma contração de 15% na renda dos trabalhadores. No pior cenário, segundo a pesquisa, a taxa de desemprego pode atingir 24% da população, caso o governo não reaja ampliando instrumentos de transferência de renda para a população mais vulnerável.

    Ainda assim, os trabalhadores autônomos da 25 estão seguindo as determinações da Organização Mundial da Saúde para proteger a si mesmo e a família. "Em janeiro tive broncopneumonia, quase morri, não sei nem se foi o coronavírus, e isso me impossibilita até de sair, estou me resguardando por causa dos meus filhos”, conta Ronie. “Tenho a necessidade de trabalhar, mas tenho acompanhado o noticiário dia e noite e é desesperador ver as pessoas saindo novamente, dando o passo maior que a perna. Com esse número que voltou às ruas, você pode ter certeza que a doença vai expandir nos próximos dias."

    As bancas fechadas registradas nas fotos que ilustram esta matéria foram feitas por Cris Veit em 2019. As imagens atemporais infelizmente anteciparam um cenário que viria poucos meses depois com comércio totalmente fechado. Por enquanto, a quarentena e as restrições sobre a movimentação de pessoas devem seguir em todo o estado de São Paulo até, pelo menos, o fim de maio. Nas últimas semanas, países asiáticos e europeus permitiram a abertura de alguns estabelecimentos e a volta às aulas, mas sempre impondo regras de higiene e distanciamento social.

    No Brasil, o número de casos e de mortos continua a subir e, por enquanto, não há previsão de volta ao fluxo normal de movimento nas ruas. "É uma coisa mundial, estamos na expectativa do que fazer ou não fazer, mas muita gente autônoma ou que trabalha por conta está passando dificuldade. Pensei em trabalhar com um aplicativo de transporte. Mas o pessoal está sem cliente para sair”, diz Gildo. Neste cenário de incerteza, os totens de lona azul seguem lá, estacionados em uma atipicamente silenciosa 25 de Março, a espera de seus donos.

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