Pandemia fortalece solidariedade entre assentados do MST e indígenas do Jaraguá, em São Paulo

Com a demanda por alimentos orgânicos em alta, o aumento da produção em assentamentos está beneficiando moradores da reserva indígena Tekoa Itakupe, na capital paulista.

Por Patrícia Monteiro
fotos de Tuane Fernandes
Publicado 7 de ago. de 2020, 07:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Givanildo Vieira de Lima, na frente, e Mauro Evangelista da Silva, ao fundo, trabalham a horta ...

Givanildo Vieira de Lima, na frente, e Mauro Evangelista da Silva, ao fundo, trabalham a horta no assentamento Dom Tomás Balduíno, município de Franco da Rocha (SP). Mesmo com o fechamento das feiras livres devido à pandemia, o aumento da demanda por entregas a domicílio levou agricultores orgânicos a produzir – e doar – mais.

Foto de Tuane Fernandes, Farpa

"Todos serão arrastados pela mesma catástrofe, a não ser que se compreenda que o respeito pelo outro é a condição de sobrevivência de cada um", diz o antropólogo Claude Lévi-Strauss na epígrafe do livro A Queda do Céu, do escritor, xamã e líder yanomami Davi Kopenawa e do também antropólogo francês Bruce Albert. A frase, publicada no Brasil em 2016, ganha novo sentido à medida que a pandemia do novo coronavírus, apesar de exigir o isolamento físico e o distanciamento social, fortalece e impulsiona novas formas de solidariedade e consumo, incluindo a busca por alimentos orgânicos e por produtos vindos direto de quem faz. Dentre os grupos que trabalham nessa nova perspectiva desde o início da quarentena, está a Cooperativa Terra e Liberdade, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que conecta iniciativas de consumo direto a produtores de assentamentos na região metropolitana de São Paulo.

Com a pandemia, surgiu a preocupação de se fazer algo além do que somente suprir a nova demanda. “Esses grupos não só se organizaram para aumentar o número de cestas pedidas, como também [...] para fazer doação de cestas em favelas ou locais periféricos que fossem perto do ponto onde a gente entregava”, explica Marília Leite, militante e colaboradora da cooperativa e uma das responsáveis pela organização e logística dos alimentos. Apesar da queda inicial nas vendas por conta da interrupção de feiras livres – como a feira do Parque da Água Branca e feiras da rede Sesc – e também pela redução dos pedidos por parte de institutos que compram do movimento – como Feira Livre e Baru – o aumento da demanda direta acabou elevando a produção dos próprios agricultores.

José Carlos Pereira Pires, produtor do assentamento Dom Tomás Balduíno, em Franco da Rocha, município da região metropolitana de São Paulo, é um dos que se viu incentivado a reforçar a horta. Antes, vendia seus produtos em uma pequena barraca de orgânicos do lado de fora das penitenciárias I e II de Franco da Rocha, localizadas em frente à entrada do assentamento. Com a proibição das visitas pelas medidas de proteção contra o novo coronavírus, Carlos optou por produzir mais verduras. “Fora da pandemia, eu estava trabalhando no presídio aos sábados e domingos. Com o que ganhava, mais o Bolsa Família, estava conseguindo me virar. Produzia pouquinho, só para barraca, eram 200 pés por mês”, diz ele. “Agora, consigo tirar 200 pés por semana.”

De acordo com Lucas Ciola, militante do MST e colaborador da Cooperativa Terra e Liberdade, o consumo de produtos orgânicos vem crescendo nos últimos dez anos e, apesar do impacto nas vendas iniciais, a pandemia tem aumentado ainda mais a demanda por alimentos saudáveis. “A comercialização de produtos orgânicos crescia de 16 a 30% ao ano antes da pandemia. E o que é esse crescimento? Um monte de gente falando ‘vamos cuidar da nossa alimentação, do nosso corpo’”, diz Ciola, que também atua na Bancada Ativista de São Paulo e no coletivo de permacultura e agroecologia Eparreh. “Então, a pandemia é o mote perfeito. A gente se protege de doenças comendo melhor, todo mundo sabe disso.”

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      Foto de Tuane Fernandes, Farpa
      Joselene Araújo Santana planta hortaliças, cana-de-açúcar, feijão, entre outros produtos.

      Joselene Araújo Santana planta hortaliças, cana-de-açúcar, feijão, entre outros produtos.

      Foto de Tuane Fernandes, Farpa

      “A cooperativa nos deu muitas condições para que a gente produza e tenha a certeza de que não vai perder [os produtos]. Essa pandemia veio acrescentar mais um pouco à nossa produção, veio um pedido maior”, explica Mauro Evangelista da Silva, também produtor do assentamento Dom Tomás Balduíno. “Algumas pessoas tinham três, quatro canteiros no mês passado. Hoje, já produzem em oito, nove, para atender à demanda.”

      Embaladas com frutas e verduras de outros produtores – como Joselene Araújo Santana, Luana Mori e Rosely Paini – as hortaliças de José Carlos são enviadas a cada duas semanas como doação para a aldeia Itakupe, da etnia guarani mbyá, no Pico do Jaraguá, no extremo noroeste da cidade de São Paulo. Desde o início da pandemia, os indígenas receberam cerca de 800 kg de alimentos do MST. Em Itakupe, eles são redistribuídos entre as outras cinco aldeias do território, dependendo da necessidade.

      “É um gesto de solidariedade muito lindo, porque sai daquela lógica de dar ‘o resto’ da comida. A gente está dando a melhor comida, a mais fina que a gente come, e isso está ajudando nas duas pontas – os agricultores e os indígenas”, diz Ciola, que vinha ajudando na construção de uma horta escolar na aldeia Ytu, também no Pico do Jaraguá.

      A ajuda e o trabalho com os indígenas do Jaraguá são símbolos da resistência de povos afetados de forma ainda mais agressiva pela pandemia. Até 27 de julho, 145 etnias já tinham registrado casos de coronavírus, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Abip). São 18.854 casos confirmados e 581 indígenas mortos pela covid-19, na contagem da Apib.

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        Foto de Tuane Fernandes, Farpa
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        Também xeramoi, Pedro Luiz Macenana posa para retrato em frente a casa de reza da aldeia Tekoa Itakupe, na região do Jaraguá. A palavra xeramoi pode ser traduzida como "meu avó" e designa um líder espiritual da comunidade.

        Foto de Tuane Fernandes, Farpa

        Como resposta à inação do presidente Jair Bolsonaro, a Abip tem articulado, junto com lideranças nos poderes legislativos e judiciário, medidas para a proteção das comunidades tradicionais. Um dos resultados desse esforço se deu com a aprovação pelo Senado Federal do projeto de lei 1.142/20, que estipula a criação do Plano Emergencial para o Enfrentamento à Covid-19, com medidas de proteção às comunidades indígenas que incluem acesso a testes de detecção do Sars-CoV-2 e medicamentos para o combater à doença. No entanto, em 8 de julho, o texto recebeu 16 vetos presidenciais. Dentre eles, estão a liberação de verba emergencial para a saúde indígena e a obrigação de oferecer mais leitos hospitalares e de UTI, além de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea a povos indígenas e quilombolas. A Apib e outras entidades ainda articulam com deputados a derrubada dos vetos.

        Outra ação de apoio aos povos indígenas veio do Supremo Tribunal Federal. Em 8 de julho, o ministro Luís Roberto Barroso determinou que o governo federal adote cinco medidas para proteger as comunidades indígenas e evitar a mortalidade por covid-19. Entre elas, estão a instalação de barreiras sanitárias para prevenir a contaminação de povos isolados e de contato recente, a elaboração de um plano que previna a invasão de terras indígenas e a criação de uma sala de situação com a participação de membros do governo, da Procuradoria Geral da República, da Defensoria Pública da União e da Apib. Mas a liminar – concedida a pedido da própria Apib e dos partidos PSB, PSOL, PCdoB, PT, Rede e PDT – também foi alvo da truculência do poder executivo. Segundo reportagem da Folha de São Paulo, os indígenas presentes na primeira reunião virtual da sala de situação foram alvos de ataques e ofensas por membros do governo de Jair Bolsonaro, em especial o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno.

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          Foto de Tuane Fernandes, Farpa
          Mauro Evangelista da Silva no assentamento Dom Tomás Balduíno, municipio de Franco da Rocha (SP).

          Mauro Evangelista da Silva no assentamento Dom Tomás Balduíno, municipio de Franco da Rocha (SP).

          Foto de Tuane Fernandes, Farpa

          Além do histórico de discriminação e perseguição política, ambas as comunidades – MST e guarani – também enfrentam a disputa pela terra. Das três regiões produtoras do movimento na Grande São Paulo, uma delas, o acampamento Comuna da Terra Irmã Alberta, ainda não está estabelecido como assentamento, mesmo tendo sido ocupado há quase duas décadas. “Agora, em julho, é o aniversário de 19 anos do acampamento sem a conquista da terra e, recentemente, estamos enfrentando dificuldades. A pandemia coloca nosso povo em situação delicada de desemprego, de pobreza, de retorno da fome e esse espaço, em especial, tem sido muito pressionado pelo lobby imobiliário”, diz Marília Leite, da cooperativa Terra e Liberdade. Pensando nisso, o MST lançou uma campanha de arrecadação de fundos para o fomento da produção de alimentos da comuna, diante das ameaças de grileiros que, segundo o movimento, vêm loteando e vendendo, ilegalmente, terras dos agricultores. “Defender esse território é muito importante não somente para essas famílias, mas para a metrópole toda, pois a agricultura familiar agroecológica ali praticada preserva o meio ambiente e oferece alimentos saudáveis a preços acessíveis”, diz a campanha.

          Já os guarani do Jaraguá enfrentam, desde janeiro, a construtora Tenda, que comprou um terreno a poucos metros de uma das aldeias para lotear um condomínio residencial. Diante de protestos e resistência indígena por conta da derrubada de mais de 500 árvores da Mata Atlântica, a Justiça Federal ordenou a interrupção das obras por tempo indeterminado. Uma audiência estava marcada para 6 de maio, mas foi adiada por conta da pandemia.

          “A gente não tem o território com autonomia. A gente não consegue ter construção de casas como a gente quer, tem que fazer de madeirite, porque não tem material. A gente não quer ter fossa, quer fazer bacia de vapotranspiração para tratar o esgoto, fazer uma coisa ecológica, não contaminar o rio, não contaminar o chão, não causar mais estrago. Mas quando a gente não consegue ter autonomia e viver da forma que a gente quer, de certa forma a gente fica doente, pelo próprio espírito”, explica Thiago Henrique Karai Jekupe, ativista guarani e apoiador de saúde nas comunidades do Jaraguá. “A forma que a gente tem de lidar com isso é resistir e tentar buscar essa autonomia dentro do território. Então, quando a gente não tem o direito à demarcação de terra, isso traz inúmeras doenças. A pandemia [do novo coronavírus] é só mais uma para a gente.”

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            Anthony Karai, guardião da floresta Guarani, no local do incêndio. Segundo os indígenas, os bombeiros se recusaram a entrar na mata e as chamas foram contidas, à custa de horas de trabalho sem equipamentos adequados, pelos próprios aldeões.

            Foto de Tuane Fernandes, Farpa

            Segundo a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, foram contabilizados 108 casos da covid-19 nas aldeias do Jaraguá e, até o momento, nenhum óbito. Os guarani se apoiam no respeito à natureza e ao próprio corpo para vencer a doença. Um exemplo é o xeramoi Hortêncio (Karai Tatadey), de 107 anos, da aldeia Pyau, que contraiu a covid-19 no fim de maio e sobreviveu fortalecendo o corpo e espírito com ervas medicinais indígenas, como a guiné. Entre os guarani mbya, xeramoi é a figura do ancião que transmite conhecimento aos mais novos. “Num dia, a gente se reuniu na nossa casa de reza. No dia seguinte, deu teste positivo dele e ele foi isolado. Deu uma semana, eu fui lá na aldeia, e ele disse ‘estou bem, estou tranquilo’”, conta Daniel Wera, morador de Itakupe. “Como ele é xondaro [guerreiro], ele está todo o tempo dançando, tem a saúde impecável. Então o que é? Qual o remédio? A gente escuta os mais velhos. Nosso xeramoi Pedro [Luiz Macena], líder espiritual, fala a mesma coisa. Ele me disse ‘a doença, você tem que sacudir ela, não pode se deixar tomar’.”

            Nessa direção, em seu pequeno livro Ideias para adiar o fim do mundo, o escritor e líder indígena Ailton Krenak acrescenta, sobre a necessidade de não nos separarmos da natureza:  “O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda.”

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              Foto de Tuane Fernandes, Farpa
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