Camundongos do mesmo sexo geram filhotes por meio de edição genética
Cientistas usaram material genético de duas mães e dois pais. Apenas os filhotes nascidos de duas mães sobreviveram e chegaram a ter sua própria prole.
É como diz a canção: “Os jaburus no Pará fazem, tico-ticos no fubá fazem...” – e mesmo os ratos de laboratório fazem. Estamos falando do acasalamento. Mas, com a ciência na jogada, a criação de novas vidas pode nem sempre precisar de um macho e uma fêmea.
Por meio da edição genética e de células-tronco, pesquisadores na China ajudaram camundongos do mesmo sexo a gerar filhotes. Essa façanha já foi conquistada anteriormente com mães camundongos, mas esse novo estudo marca a primeira vez que filhotes de pares de camundongos machos também nasceram a termo.
A tecnologia está longe de estar pronta para ser utilizada em humanos. Se, por um lado os filhotes camundongos nascidos de duas fêmeas parecessem saudáveis e tenham tido seus próprios filhotes, os filhotes com dois pais morreram logo após o nascimento. Dos 12 nascidos, apenas dois sobreviveram por mais de 48 horas.
Ainda assim, o novo estudo, publicado na revista científica Cell Stem Cell, é um avanço animador para uma melhor compreensão das barreiras que impedem tal acoplamento genético entre indivíduos do mesmo sexo. O estudo também levanta diversas questões éticas entre especialistas, sendo a saúde da futura prole a principal preocupação.
“Quando a segmentação genética é realizada, podem ocorrer alguns efeitos colaterais indesejáveis. Outras sequências que não se pretendia alterar, podem acabar sendo alteradas” diz Azim Surani, biólogo do desenvolvimento da Universidade de Cambridge, que não participou do estudo. Essas alterações no genoma são passadas de uma geração para a outra, junto com eventuais efeitos colaterais possivelmente negativos.
Nesse ponto, os pesquisadores não estão focados em transferir os resultados para humanos, mas isso não é uma impossibilidade: “Não podemos afirmar que essa técnica nunca será utilizada em humanos futuramente”, diz por e-mail o autor principal Wei Li, da Academia Chinesa de Ciências.
“Teremos que pensar muito, como sociedade, sobre qual será nosso limite para fazer esse tipo de pesquisa,” declara Sonia Suter, professora de direito na Universidade George Washington especializada em bioética e políticas de saúde.
Renunciando à paternidade
O novo estudo faz parte de uma série de trabalhos que tentam contornar um problema chamado imprinting (marcação genética). Em humanos, os genes são agrupados em 23 pares de cromossomos – um conjunto é herdado da mãe e outro do pai. Ainda assim, muitos animais não se desenvolvem da mesma forma. Um seleto grupo de vertebrados pode ter filhotes sem a contribuição genética de um macho – alguns tipos de lagartos, sapos e até mesmo peixes podem se reproduzir sem machos. Muitas vezes, a chamada partenogênese é estimulada pela vida em cativeiro.
Mas esse não é caso dos mamíferos com placenta, o disco de tecido que facilita a troca de nutrientes e resíduos entre a mãe e o bebê.
“Há uma barreira, e essa barreira faz o imprinting”, explica Surani. O imprinting ocorre durante o desenvolvimento do espermatozoide e do óvulo, quando “marcadores” se anexam aos cromossomos, influenciando a função do gene. Por algum motivo, o conjunto de marcadores é diferente nos cromossomos de cada um dos pais. Alguns genes precisam estar ativados no DNA da mãe e outros precisam estar ativados no DNA do pai.
Não sabemos exatamente por que esse processo acontece em mamíferos com placenta, conta Surani, que descobriu o curioso fenômeno em 1984. De acordo com um senso geral, esses marcadores ajudam a equilibrar o desenvolvimento do embrião. Mas ele enfatiza que os cientistas sugeriram diversas explicações.
“Apenas não sabemos,” diz ele.
Gerando um camundongo bimaterno
Para o último estudo, os cientistas recorreram ao que se chama de células-tronco embrionárias haploides. Essas células possuem um único conjunto de cromossomos e são cultivadas a partir de células de espermatozoides ou óvulos, reduzindo o número de marcadores genéticos problemáticos.
Então, os pesquisadores utilizaram a “tesoura molecular” conhecida como CRISPR-Cas9 para cortar segmentos conhecidos por criar problemas no imprinting. Para pares de camundongos fêmeas, foi necessário deletar três regiões para obter filhotes sadios. Para pares de camundongos machos, foi preciso cortar sete regiões.
As próximas etapas para camundongos fêmeas foram relativamente simples: os pesquisadores transferiram as células-tronco alteradas para um óvulo imaturo inalterado que, nesse estágio, se assemelha a uma água-viva sem tentáculos graças ao seu revestimento protetor gelatinoso, explica o autor principal do estudo, Baoyang Hu, via e-mail. Os pesquisadores então inseriram o óvulo em um camundongo como barriga de aluguel para desenvolvimento.
Contudo, com os machos foi um pouco mais complicado.
“Para gerar um indivíduo, você precisa ter um óvulo; e os machos não possuem óvulos”, observa Richard Behringer, biólogo do desenvolvimento da Universidade do Texas, que não participou do estudo. Nesse caso, a equipe injetou o espermatozoide e as células-tronco embrionárias haploides em um óvulo imaturo sem o núcleo, a parte da célula que porta a maior parte de seu material genético.
Primeiro, os pesquisadores descobriram que, se inserissem esse óvulo modificado em um útero, ele não se desenvolveria. Eles precisaram promover seu desenvolvimento fora do útero antes de, por fim, inserir os filhotes em desenvolvimento na barriga de aluguel.
Essa dificuldade era, de certa forma, esperada. Pais que geram filhotes sem a contribuição genética feminina é algo extremamente raro na natureza, observa o autor principal Zhikun Li. “Antes de iniciarmos o nosso estudo, não sabíamos se a reprodução bipaterna poderia ser realizada ou não”, escreveu ele por e-mail.
“Uma grande questão ética”
Essa não é a primeira vez que dois camundongos fêmeas geram um filhote vivo. Em 2004, pesquisadores anunciaram o nascimento do primeiro camundongo de uma dupla materna criado usando técnicas de edição genética semelhantes.
“Mas eles foram mais longe”, diz Monika Ward, da Universidade do Havaí, sobre a nova pesquisa. A equipe chinesa não tentou apenas refinar o método ao utilizar células-tronco embrionárias haploides e aplicá-las a filhotes de machos, mas também tentaram analisar os impactos da remoção de várias regiões que tinham imprinting, conta Ward.
Para os filhotes de fêmeas, o corte da terceira região pareceu possibilitar que os filhotes crescessem a uma velocidade normal. Para os filhotes de machos, deletar a sétima região com imprinting possibilitou que os filhotes nascessem no período normal e reduziu os problemas de inchaço e respiratórios observados com apenas seis deleções genéticas.
No geral, os pesquisadores que revisaram o estudo elogiaram o rigor aplicado. “Não consigo imaginar o que possa ser feito além disso,” diz Behringer. No entanto, não está claro como esse método pode ser utilizado no futuro – e o que pode significar para os seres humanos.
“É realmente uma grande questão ética,” diz Ward.
Embora os filhotes de duas mães tenham crescido normalmente na maior parte do tempo e tenham tido seus próprios filhotes, eles ainda podem sofrer problemas de desenvolvimento não detectados e seria necessária uma análise de saúde muito mais detalhada, afirma Surani. Ainda não se sabe o motivo de os filhotes de machos terem morrido tão rápido. No geral, os genes dos machos precisaram de uma grande quantidade de manipulação para que os embriões se desenvolvessem por completo, conta Surani. É possível que existam regiões com imprinting persistente que impediram sua sobrevivência.
“Acima de tudo e entre todas essas coisas, para mim existe uma questão de segurança,” diz Suter. “E isso é um grande obstáculo a ser vencido”.
E é claro que, mesmo que o método funcione perfeitamente em camundongos, o passo a ser dado até chegar nos humanos não é pequeno. A semelhança nos padrões de imprinting entre camundongos e humanos continua sendo uma grande questão. E muitos dos testes médicos atuais realizados em camundongos são “eticamente impossíveis” em humanos, observa um estudo de 2011 da revista científica Genome Biology. Os pesquisadores esperam continuar aprimorando seus métodos em outros animais, inclusive em macacos.
Abrindo portas para o desenvolvimento
Apesar de tudo, as informações coletadas a partir desses últimos experimentos são importantes e podem nos ajudar a compreender melhor a função de diversos genes no desenvolvimento.
“Se eles prosseguirem com isso e brincarem com esses genes de imprinting... iremos aprender muito sobre isso,” diz Ward. Acredita-se que o imprinting genômico exerça diversas funções no desenvolvimento de traços, doenças e mesmo na eficácia de outros tratamentos para infertilidade.
A pesquisa também pode funcionar como mais um chamado para a consideração da abertura de pesquisas de células-tronco embrionárias e edição genética nos EUA, onde o financiamento é rigorosamente limitado para esse tipo de estudo e um complexo conjunto de leis limita a vida dos estudos.
“Como tivemos muita limitação nesse tipo de pesquisa, acho que não refletimos realmente sobre isso,” conta Suter. O que é considerado seguro? Qual seria uma justificativa adequada para seu uso? Quem terá acesso a tais tecnologias? Afinal, se a tecnologia se desenvolver de acordo com as diretrizes éticas e médicas corretas, ela poderia dar esperanças para casais do mesmo sexo terem filhos com relação genética, possibilitando um acesso semelhante à assistência para gravidez que outros casais já têm.
“Particularmente, acredito que se considerarmos a incapacidade de casais de sexos opostos se reproduzirem como algo que merece intervenção tecnológica,” diz Suter, “então me parece que não podemos dar argumentos coerentes para impedir que casais do mesmo sexo façam a mesma coisa.”