Maior mercado de animais silvestres da Amazônia peruana reabre após pausa

Após reforma para modernizar o Mercado de Belén e evitar a disseminação da covid-19, a venda ilegal de animais silvestres persistiu.

Por Natasha Daly
Publicado 24 de out. de 2021, 08:00 BRT
Sloth claw

Vendedor oferece pata de preguiça-de-três-dedos para venda no Mercado de Belén, em Iquitos, no Peru, em 2017. Alguns moradores da região acreditam que as patas, bastante vendidas no mercado, possuem propriedades espirituais. Acredita-se que a ingestão do pó raspado das garras possa ajudar a acalmar homens nervosos ou acabar com a fofoca. As preguiças-de-três-dedos, espécie protegida no Peru, normalmente são caçadas ilegalmente na mata e mortas para venda de suas patas ou vendidas vivas como bichos de estimação. As dóceis criaturas não se adaptam ao cativeiro.

Foto de Fernando Carniel Machado, World Animal Protection

Em barracas ao longo de corredores, patas de preguiça são guardadas em potes ao lado de ervas secas, e carne de jabuti-de-pata-amarela fica ao lado de peito de frango. Uma pele de onça fica pendurada em uma barraca, como um tapete secando em um varal. Os artesanatos são expostos sobre as mesas em fileiras, assim como as garrafas de órgãos genitais de botos-cor-de-rosa. Periquitos à venda como animais de estimação pulam em pequenas gaiolas. Peixes, cortados em pedaços, mas ainda vivos, se contorcem em baldes.

Em outubro de 2019, esse era o cenário no Mercado de Belén, uma grande feira livre no centro da Amazônia peruana onde mais de 200 espécies de animais silvestres — vivos e mortos — ficavam à venda ilegalmente.

Passados dois meses, do outro lado do mundo, ocorreu o surto do novo coronavírus na China em outro mercado, em Wuhan, onde também eram vendidos animais silvestres.

Em janeiro de 2020, quando a covid-19 se tornava uma pandemia global, a China proibiu a criação, venda e consumo de animais silvestres e suas partes. O mercado de Wuhan foi fechado e suas entradas interditadas com tábuas. Três meses depois, a Organização Mundial de Saúde, a Organização Mundial para a Saúde Animal e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente emitiram recomendações solicitando, entre outras regulamentações, o fechamento de mercados que vendem mamíferos vivos capturados na natureza.

Tuk-tuks, compradores e vendedores de frutas lotam a rua em frente ao Mercado de Belén, em agosto de 2021. O mercado, importante centro comercial, fica às margens do rio Itaya, em Iquitos, a maior cidade da Amazônia peruana.

Foto de Fernando Carniel Machado, World Animal Protection

A covid-19 colocou em evidência a ligação entre o comércio de animais silvestres e as doenças zoonóticas — aquelas transmitidas de animais a humanos. Aproximadamente 70% das doenças são zoonóticas — como HIV, Mers, ebola e SRAG. Até o momento, a covid-19 matou cerca de 4,5 milhões de pessoas em todo o mundo e adoeceu mais 215 milhões.

Contudo, apesar das solicitações de instituições internacionais, não se sabe ao certo se esse novo vírus mortal reduziu a comercialização de animais silvestres ou se fez com que os envolvidos no comércio apenas mudassem de táticas. O Mercado de Belén representa um estudo de caso sobre como a economia ilícita de animais silvestres pode persistir obstinadamente.

O mercado de cerca de 6,5 hectares está localizado em Iquitos, às margens de um afluente do Amazonas — a maior cidade da Amazônia peruana e a maior do mundo que não pode ser alcançada por via terrestre. No entanto, com a chegada do novo coronavírus, por via fluvial ou aérea, Iquitos foi assolada, provavelmente com no mínimo 70% dos moradores da cidade contaminados — uma das taxas de infecção mais elevadas do mundo — causando o colapso do sistema de saúde.

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      Depois de fechar durante a pandemia e passar por extensas reformas, o Mercado de Belén do Peru voltou a funcionar. As vendas de animais silvestres vivos foram retomadas, assim como as vendas de carnes e partes de animais, como carne de cervo, retratada nesta imagem em 2017.

      Foto de Fernando Carniel Machado, World Animal Protection

      O Mercado de Belén, centro comercial importante da Amazônia, foi um claro vetor de transmissão: dentre 100 comerciantes de Belén testados em maio de 2020, 99 testaram positivo para a covid-19, declarou Martín Vizcarra, na ocasião, presidente do Peru.

      Naquele mês, a prefeitura fechou o Mercado de Belén, demolindo cerca de 2,5 mil barracas. O fechamento coincidiu com um projeto já planejado havia cinco anos para modernizar o mercado, com financiamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. A reforma tinha como objetivo promover o desenvolvimento econômico e melhores condições de vida em uma região do país há muito marginalizada. Um efeito imediato previsto pelo Ministério da Produção do Peru e pelos apoiadores da ONU seria a redução da transmissão da covid-19.

      No meio deste ano, após meses de obras, o mercado reabriu. Mas uma investigação de oito semanas em agosto e setembro conduzida pela World Animal Protection, organização internacional sem fins lucrativos de bem-estar animal, revelou que a venda ilegal de animais silvestres e suas partes foi retomada em grande parte do mercado.

      Os investigadores encontraram jacarés fatiados em calçadas movimentadas, papagaios vivos em caixas de papelão e carne de cervo à venda ao lado de frutas e verduras. “Foi muito chocante, especialmente depois da covid-19”, lamentou Neil D’Cruze, biólogo e chefe de pesquisa e políticas da World Animal Protection. “Apesar das aparentes melhores intenções das autoridades locais, o comércio ilegal de animais silvestres foi retomado no Mercado de Belén, mantendo-se amplamente exposto ao público”, prosseguiu ele.

      “É muito preocupante que um mercado de animais silvestres tão proeminente — e, segundo alguns, tão famoso — quanto Belén, que dependia de auxílio e financiamento para o desenvolvimento fornecidos por agências da ONU, tenha sido autorizado a reabrir sem medidas de controle do comércio ilegal de animais silvestres”, afirma D’Cruze. Foi uma “oportunidade perdida”.

      Autoridades do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e do Ministério da Produção do Peru que financiaram e supervisionaram a obra não responderam aos pedidos de comentários.

      Policiamento do comércio de animais silvestres em Belén

      Iquitos fica a cerca de 370 quilômetros rio acima de Très Fronteras — a região das três fronteiras entre Brasil, Colômbia e Peru e onde o comércio ilegal de animais silvestres está praticamente sem controle.

      A caça de animais silvestres para a subsistência, comum nas comunidades indígenas amazônicas, é permitida no Peru, mas a venda desses animais em mercados não. Ainda assim, caçadores em comunidades ribeirinhas costumam levar animais ou suas partes aos vendedores em Belén. A carne de animais silvestres — como jacaré, paca (um grande roedor) e cateto, um mamífero parecido com o porco — está amplamente disponível nesse mercado. Animais vivos também são vendidos como bichos de estimação ou para alimentação. As pessoas compram jabutis-de-pata-amarela vivos, por exemplo, para abatê-los depois. Partes de animais, como dentes de onça-pintada, garras de preguiça, genitálias de botos-cor-de-rosa — são vendidas nacional e internacionalmente para uso na medicina tradicional, ou como lembrancinhas de luxo.

      À esquerda: No alto:

      Cabeça de jacaré preservada, adornada com olhos de vidro e frutas decorativas, é vendida no mercado como um amuleto, por se acreditar que traga proteção e prosperidade.

      À direita: Acima:

      Peles de onça-pintada e jaguatirica penduradas no Mercado de Belén, em 2019. As onças são frequentemente caçadas para venda de sua pele e dentes, ambos muito procurados pela medicina tradicional chinesa. Os animais sofrem tremendamente durante a captura, de acordo com organizações sem fins lucrativos que monitoram o comércio.

      fotos de Fernando Carniel Machado, World Animal Protection

      “Para ser franco, não temos nenhum apoio logístico”, reconhece Ramos Acari, policial da polícia ambiental da província de Loreto, divisão da Polícia Nacional do Peru. A agência, com sede em Iquitos, é responsável pelo policiamento de Loreto — a maior província do Peru, abrangendo quase um terço do país. Embora, por razões de segurança, Acari se recuse a informar a quantidade de policiais responsáveis pelo monitoramento do comércio de animais silvestres, ele admite que é um “grupo pequeno”.

      Segundo Acari, o comércio ilícito de animais silvestres no Mercado de Belén persiste sobretudo em áreas próximas ao rio Itaya. Ele conta que sua equipe faz o que pode com os recursos limitados que tem para impedir o comércio, mas se “houvesse mais apoio, teríamos acesso a toda Loreto”.

      À esquerda: No alto:

      Carcaça de jacaré fatiada em um corredor do mercado ao lado de frutas e vegetais, em agosto de 2021.

      À direita: Acima:

      Jabutis-de-pata-amarela abatidas, algumas com ovos, expostas em mesa em 2017. Os jabutis-de-pata-amarela, espécie classificada como vulnerável à extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza, são geralmente mortas no mercado ou vendidas vivas.

      fotos de Fernando Carniel Machado, World Animal Protection

      Esse comércio de animais silvestres tão arraigado é um grande desafio. “É muito difícil tentar fazer com que as pessoas se importem com a natureza”, afirma ele. Dentre quase 100 comerciantes em Belén que vendem animais silvestres ou suas partes, a World Animal Protection apurou que, em média, eles trabalham com isso há cerca de 16 anos.

      Desde o início da pandemia, o comércio de animais silvestres se expandiu além de Belén, afirma Javier Velásquez Varela, biólogo fundador do Centro de Resgate Amazônico, unidade de resgate e reabilitação de animais silvestres em Iquitos. “A pandemia intensificou muito a venda de animais silvestres como bichos de estimação”, revela ele, observando que as pessoas em muitas comunidades economicamente devastadas pela pandemia começaram a caçar animais para vendê-los como bichos de estimação. “Agora são vendidos em todos os portos em centenas de comunidades em toda a Amazônia”, conta ele.

      A demanda internacional, notadamente a demanda por peles e dentes de onças-pintadas pela China, continua a alimentar um comércio em crescimento na Amazônia peruana, de acordo com uma investigação recente da organização investigativa Convoca, em que vendedores recebem preços altos de comerciantes e consumidores influentes. Isso dificulta a fiscalização, afirma D’Cruze. Um país de origem como o Peru pode fazer todo o possível para proteger seus animais silvestres, mas essas iniciativas “precisam ser expandidas aos grandes e influentes países consumidores” também.

      ‘Caldeirão de contágio’

      A World Animal Protection e outras organizações enfatizam a importância dos aspectos de conservação e bem-estar animal no comércio de animais silvestres. Mas Christian Walzer, veterinário global chefe da organização não governamental Wildlife Conservation Society, com sede nos Estados Unidos, considera as feiras ao ar livre “caldeirões de contágio”.

      Em Belén e em outros mercados que vendem animais silvestres vivos, muitos chegam estressados, feridos, em gaiolas sujas e com sistemas imunes comprometidos, explica D’Cruze. Dezenas de espécies de animais vendidas em grande proximidade formam as condições ideais para o desenvolvimento de vírus, um ambiente propício ao aparecimento de novas cepas.

      Periquito e tracajá vivos em gaiola de arame no mercado para venda como animais de estimação. Os animais normalmente são capturados na mata por caçadores e depois vendidos aos comerciantes do mercado. Investigações revelaram que os animais geralmente são mantidos em gaiolas sujas e alimentados com dietas precárias.

      Foto de Fernando Carniel Machado, World Animal Protection

      Animais silvestres podem servir como vetores de vírus que, “em um mundo normal, não teriam contato com humanos”, observa Walzer. Os animais que servem como vetores desses vírus não necessariamente adoecem — são simplesmente “reservatórios silenciosos”.

      A carne de pacas, conhecida como majás na Amazônia, nativas da América do Sul, está entre algumas das mais comuns no Mercado de Belén. Um estudo sobre a carne de paca vendida no mercado encontrou 25 cepas de salmonela em 72 amostras coletadas em julho de 2019; 40% das cepas eram resistentes a diversos antibióticos.

      A investigação da World Animal Protection não encontrou evidências de que o projeto de reforma do Mercado de Belén incluía a repressão ao comércio de animais silvestres, apesar das crescentes preocupações com o risco de propagação de doenças causadas pelo comércio de animais silvestres e o fato de que melhorar as condições sanitárias era um importante objetivo.

      Elizabeth Maruma Mrema, secretária executiva interina da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, um tratado multilateral de conservação, declarou, em abril de 2020, que reduzir a quantidade de animais vivos nos mercados de alimentos tem “o potencial de reduzir expressivamente o risco de futuros surtos de doenças”. Ela acrescentou que “controles mais rigorosos sobre a venda e o consumo de espécies silvestres devem ser ampliados globalmente”.

      Para tornar a fiscalização local mais eficaz, afirma D’Cruze, será preciso vontade política, financiamento e uma equipe maior, bem como iniciativas de conscientização sobre a legislação e os riscos à saúde do comércio de animais silvestres direcionadas a comerciantes e compradores. Placas de advertência no Mercado de Belén já seriam um bom começo, sugere ele. E mais recursos precisariam ser dedicados ao atendimento de animais silvestres resgatados.

      A oportunidade perdida em Belén, até mesmo com o financiamento pela ONU, ao tentar eliminar o comércio de animais silvestres ilustra o imenso desafio de uma iniciativa global. “Mesmo se for considerado apenas o Peru”, afirma D’Cruze, Belén “não é o único mercado, e é só mais um dentre os inúmeros outros na América do Sul”. Os mercados de animais silvestres desempenham um papel semelhante na África e na Ásia.

      Ao planejar um futuro após a covid-19, prossegue ele, seria um erro nos concentrarmos “puramente na reconstrução sem que fossem considerados os riscos contínuos”.

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