Cadáveres digitais estão substituindo os reais. Mas isso deveria estar acontecendo?
Dissecar um corpo virtual tem suas vantagens, mas alguns especialistas afirmam que o corpo real ensina empatia e respeito aos alunos.
FOI o esmalte vermelho no dedo do pé que deixou um aluno de medicina do primeiro ano da Universidade do Colorado, nos EUA, estarrecido — um vívido lembrete de que o cadáver que ele dissecou no laboratório de anatomia tinha sido uma pessoa viva com família, amigos e um toque de vaidade.
Anatomia, o estudo da arquitetura do corpo humano, é, por tradição, a matéria que define a educação médica. O rito de passagem—acompanhado de ansiedade, medo e, às vezes, náusea—é "para muitos, o primeiro encontro com um cadáver", disse certa vez Frank Herlong, antigo diretor da divisão de discentes da Faculdade de Medicina Johns Hopkins.
Contudo a dissecção anatômica está se tornando digital, como a maioria das coisas que fazemos. (Veja "Tornando-se Imortal" na edição de janeiro de 2019 da National Geographic). Muitas faculdades de medicina já exibem cadáveres virtuais em telas para os alunos utilizarem como referência conforme dissecam corpos reais. Algumas instituições planejam abandonar o uso de cadáveres humanos e utilizar cadáveres digitais—ou já realizaram essa substituição.
Na Faculdade de Medicina de Las Vegas, da Universidade de Nevada, os alunos dissecam cadáveres virtuais em seis "mesas" Sectra (como se fossem iPads gigantes). As mesas possuem tela touch de 55 polegadas que gira, aumenta e diminui o foco e navega por imagens 3D, além de permitir a dissecção virtual de tecidos.
A faculdade de medicina foi fundada em 2017 e a questão econômica foi um fator significativo na decisão, afirma o diretor de anatomia Jeffrey Fahl. "Construir um laboratório de anatomia para o uso de cadáveres humanos que atendesse os regulamentos de saúde e segurança do governo custaria cerca de US$ 10 milhões". As mesas Sectra custam US$ 70 mil cada, conta ele.
Outros argumentos a favor do uso da anatomia virtual incluem o custo dos próprios cadáveres. Embora sejam obtidos de doações, as faculdades de medicina pagam pelo transporte, embalsamento e armazenamento. Os 24 corpos utilizados todos os anos no laboratório de anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado, por exemplo, custam US$ 1,9 mil cada.
Outros fatores: O ambiente infundido em formol é nocivo. E os cadáveres virtuais podem aceitar erros mais facilmente. "Pode-se levar horas e horas para obter o tecido que reveste uma estrutura em um cadáver humano", diz Fahl. "Às vezes, o aluno acaba destruindo o tecido sem querer. Com a realidade virtual, basta apertar 'reiniciar'".
No próximo verão, a Universidade Case Western Reserve (CWRU), em parceria com a Cleveland Clinic, irá inaugurar um novo prédio de ciências médicas sem o uso de cadáveres que utilizará diversos sistemas digitais. A Faculdade de Medicina da CWRU já utiliza realidade mista com o HoloLens da Microsoft, um headset que oferece um tipo de visão raio-X, para seu currículo digital HoloAnatomy. E a Lerner College of Medicine da Cleveland Clinic está utilizando anatomia com realidade virtual desenvolvida em conjunto com uma empresa chamada Zygote Medical Education.
"O coração de um cadáver não bate", diz Neil Mehta, diretor de assuntos curriculares. "Não é possível compreender como as válvulas funcionam. Não é possível observar o movimento das articulações". A realidade virtual permite que os alunos vivenciem essas coisas e vejam características difíceis de serem observadas em cadáveres, como estruturas do ouvido interno e vias neurais. Entretanto Lerner manterá seu laboratório de anatomia convencional. Cadáveres humanos ainda são necessários para que residentes de cirurgia aprimorem suas habilidades.
"Já não chegou o momento de irmos além de Vesalius?", pergunta James Young, diretor acadêmico da Lerner. Andreas Vesalius, professor da Universidade de Pádua, foi o primeiro a levar alunos de medicina a mesas de dissecção, na década de 1500. Seu grande trabalho de referência em anatomia De Humani Corporis Fabrica (Na Estrutura do Corpo Humano, em tradução livre), com desenhos extremamente detalhados do corpo humano, é o antecessor analógico dos cadáveres de realidade virtual.
Nem todos têm pressa de abandonar Vesalius. Na Faculdade de Medicina de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, os alunos utilizam programas digitais de dissecção, mas o corpo humano continua sendo o principal recurso. Um cadáver ensina mais do que apenas anatomia, diz Sakti Srivastava, diretor da divisão de anatomia clínica. Ele abriga um "currículo oculto". Conforme os alunos dissecam, eles reconstroem a história da pessoa, conta ele. "Você aprende profissionalismo, trabalho em equipe, respeito pela morte e empatia—aspectos que nunca podem ser obtidos em um programa digital".
Srivastava, que se especializou em cirurgia ortopédica, também valoriza a natureza táctil da dissecção. "Quando, por exemplo, um aluno remove o tecido e a fáscia que conecta músculos e órgãos, ele saberá, pelo resto de sua vida, como é tocar nesse tecido quando tocar em um paciente". Na Stanford, o mundo digital é algo certo, afirma ele. "Estamos no Vale do Silício e gostamos de manter o melhor do antigo e o melhor do novo". Mas ele considera a experiência de dissecar um cadáver incontestavelmente profunda. "É possível fazer um maravilhoso tour virtual pelo Havaí", diz Srivastava. "Ou você pode visitar o lugar pessoalmente".
Mesmo assim, a realidade tem suas desvantagens. "Um corpo embalsamado traz desafios", observa James Young da Lerner. "Os tecidos não parecem reais, eles perdem a cor e o aluno tem contato com representações imperfeitas da anatomia." Devido ao fato de os cadáveres doados serem geralmente de pessoas idosas e, frequentemente doentes, pode ser difícil aprender a anatomia normal com eles, afirma.
Quanto a ensinar respeito e empatia: "Não é melhor aprender isso com um humano real?".