Esta tecnologia ajuda cientistas a encontrarem o ponto fraco dos vírus

Técnicas que mapeiam a estrutura atômica dos vírus oferecem esperança no tratamento de doenças complexas, como a mortal febre hemorrágica da Crimeia-Congo.

Por Jillian Kramer
Publicado 18 de fev. de 2022, 15:28 BRT
Crimean-Congo hemorrhagic fever

Micrografia eletrônica mostra o vírus da febre hemorrágica da Crimeia-Congo (pontos verdes) emergindo da superfície de células epiteliais infectadas coletadas de um paciente.

Foto de Science Source

Antes da pandemia da covid-19 assolar o mundo, um vírus letal já circulava por Ásia, Oriente Médio e em partes da Europa. O nairovírxus (um vírus com RNA de fita simples que circula em sentido negativo), causa a febre hemorrágica da Crimeia-Congo, uma doença cujos sintomas são febre, dores musculares, náuseas e hemorragia interna. O vírus mata até 40% das pessoas infectadas.

Os surtos são esporádicos e os números de casos variam de acordo com a região, mas há dados que sugerem que eles estão aumentando continuamente. No Afeganistão, houve apenas quatro casos confirmados em 2007; em 2018, o país relatou 483 casos. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha, em 2018, identificado a febre hemorrágica da Crimeia-Congo como uma de suas principais prioridades para pesquisa e desenvolvimento, ainda não há indicação de tratamentos para combater o vírus.

Agora, um consórcio de pesquisadores que estuda a estrutura microscópica do vírus traz esperança de que um tratamento, e possivelmente uma vacina, possam ser desenvolvidos.

A ciência que estuda o funcionamento, em escala atômica, de um agente infeccioso, é chamada de virologia estrutural. É uma área que cresceu exponencialmente nas últimas décadas, aumentando o desenvolvimento de vacinas projetadas com base na estrutura do patógeno que buscam prevenir. A virologia estrutural possibilitou as vacinas de RNA mensageiro (RNAm) aprovadas para combater a covid-19 e pode também ser responsável pela vacina contra o vírus HIV, a qual cientistas trabalham há décadas para desenvolver, mas sem êxito.

“A virologia estrutural é uma ferramenta importante” para ajudar os cientistas a entender como obter uma resposta mais forte de anticorpos contra um patógeno e criar vacinas mais eficazes, explica Jason McLellan da Universidade do Texas em Austin, nos EUA. Seu laboratório identificou a estrutura da proteína de espícula (spike) do Sars-CoV-2, a qual é fundamental para a infecção de células humanas e base para as duas vacinas de RNAm.

“A virologia estrutural não vai dar origem a todas as vacinas”, acrescenta. “Mas se a pergunta for se eu acredito que ela será utilizada no desenvolvimento de muitas, se não a maioria das vacinas daqui para frente, a resposta é definitivamente sim.”

O que é virologia estrutural

A virologia estrutural trabalha para compreender os mecanismos básicos de como um vírus infecta e invade as células. Para isso, “precisamos saber como o vírus é montado”, diz Madhuati Sevvana, virologista estrutural da Universidade de Purdue, em Indiana, nos EUA.

Sevvana compara a virologia estrutural à mecânica de automóveis: para trabalhar em um veículo, é preciso entender cada parte da máquina e como elas interagem umas com as outras. “É isso que queremos compreender ao decifrar a estrutura do vírus e seus componentes”, explica Sevvana. A partir dessa análise, os pesquisadores conseguem descobrir como as proteínas de um vírus entram nas células humanas e se replicam, causando a infecção.

As vacinas desenvolvidas com essa tecnologia – chamadas de vacinas baseadas em estrutura – utilizam a parte mais infecciosa do vírus para ajudar o corpo a produzir uma resposta imune mais forte. A virologia estrutural ajudou a compreender que as proteínas spike nos coronavírus – como Mers, Sars e Sars-CoV-2 – são fundamentais para que o vírus entre nas células humanas. Ao decifrar sua estrutura, os pesquisadores poderiam modificar a proteína de uma maneira que tornasse as vacinas de RNAm altamente eficazes.

Tecnologia antiviral avançada

Os pesquisadores utilizam diversas ferramentas para obter imagens ampliadas de vírus e proteínas, mas duas são especialmente importantes: cristalografia de raios-x e microscopia crioeletrônica, ou crio-ME. Progressos recentes dessas tecnologias permitiram um enorme avanço no desenvolvimento de vacinas baseadas em estrutura. "Veremos muito mais imunizantes sendo desenvolvidos utilizando essa tecnologia”, acredita Sevvana.

Primeiro, a cristalografia de raios-x fixa as proteínas, imergindo-as em uma solução até que se solidifiquem, como se fossem cristais de açúcar. Em seguida, os cientistas posicionam esses cristais sob um feixe de raios-x. Quando as ondas de luz do feixe atingem as proteínas cristalizadas, elas se dobram e se espalham em um padrão específico com base no arranjo atômico da proteína, produzindo algo semelhante a um conjunto de manchas pretas em um fundo branco, afirma McLellan. Nos laboratórios modernos, os computadores utilizam esses pontos como guia para a estrutura do cristal e geram uma imagem tridimensional.

Mas nem todos os vírus e proteínas cristalizam de maneira adequada, casos em que é utilizada a crio-ME. Essa técnica permite que os cientistas capturem imagens por meio do congelamento das proteínas em uma fina camada de gelo. Em seguida, um feixe de elétrons é direcionado às proteínas para gerar uma imagem bidimensional. Milhares de imagens dessas projeções são capturadas de vários ângulos e o software as combina para construir um modelo tridimensional.

Por muitos anos, a crio-ME não conseguiu produzir resolução em nível atômico, diz Andrew Ward, biólogo estrutural do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia. Mas uma nova geração de câmeras lançada em 2010 revolucionou o campo porque permitiu uma melhor resolução e a capacidade de tirar várias fotos rapidamente – muito parecidas com as câmeras dos atuais smartphones.

Desde então, a cristalografia de raios-x e a crio-ME têm sido utilizadas para decifrar estruturas de proteínas importantes de vírus como HIV, zika, ebola, influenza – e, agora, o nairovírus, causador da febre hemorrágica da Crimeia-Congo.

Proteína em mutação da febre hemorrágica da Crimeia-Congo 

Assim como o Sars-CoV-2, que infecta humanos por meio da proteína spike capaz de mudar de forma, a febre hemorrágica da Crimeia-Congo tem uma molécula que altera sua estrutura antes de infectar células humanas. Denominada glicoproteína de superfície, a estrutura dessa molécula se transforma de uma configuração semelhante a uma haste para uma forma triangular para iniciar a infecção.

Os cientistas acreditam que uma vacina eficaz teria como alvo a forma inicial (de haste) da proteína, combatendo o vírus antes que dele se alterar para o estado mais infeccioso. Mas, para alcançar esse nível de precisão, é necessário compreender sua forma exata em escala atômica.

O laboratório de McLellan faz parte do consórcio de pesquisa Prometheus, formado por sete agências espalhadas pelo mundo. Sua equipe começou isolando proteínas dos anticorpos de pacientes que se recuperaram da febre hemorrágica da Crimeia-Congo. Em seguida, eles utilizaram cristalografia de raios-x para determinar a forma pré-infecciosa das proteínas, reconstruindo o primeiro mapa 3D em escala atômica dessa parte específica. 

No mesmo período, uma equipe do laboratório de Félix Rey do Instituto Pasteur, em Paris, na França, identificou a forma infecciosa da proteína, formando uma imagem completa do antes e depois da estrutura alvo.

“Visualizar uma estrutura pela primeira vez é uma sensação incrível”, diz McLellan. “Imagina ser a primeira pessoa na história do mundo a ver a forma dessa proteína?”

Determinar as formas 'iniciais e finais' da proteína permitiu aos pesquisadores localizar quando e onde os anticorpos se ligam ao vírus e descobrir como exatamente eles evitam uma infecção: um dos anticorpos impede que a proteína se transforme, e o outro impede que ela penetre em uma célula humana. Essa compreensão maior sobre o mecanismo ajudará os pesquisadores a desenvolver melhores tratamentos e vacinas, reforça McLellan.

Virologia estrutural: o futuro das vacinas

Embora a virologia estrutural e o desenvolvimento de vacinas a partir de estruturas moleculares tragam esperança em relação ao combate de alguns dos vírus mais complexos, eles não são métodos apropriados para todos os patógenos. Por um lado, a virologia estrutural se concentra na resposta de anticorpos do corpo humano, mas alguns vírus e parasitas são mais afetados pelos linfócitos T, outro componente importante do sistema imunológico, observa Sevvana.

Para outros vírus, diz McLellan, pode ser difícil encontrar anticorpos potentes em sobreviventes humanos porque as infecções são súbitas e agudas, podendo não haver sobreviventes suficientes para coletar amostras de sangue.

Essa é uma razão pela qual McLellan defende a preparação prévia para futuros patógenos, mesmo os que ainda não foram descobertos.

“Quando um novo patógeno surge, não há tempo suficiente, pelo menos no começo, para passar por todas as etapas” necessárias para desenvolver um tratamento utilizando a virologia estrutural. Em vez disso, diz ele, os pesquisadores podem começar analisando uma família de vírus.

“Podemos não saber qual hantavírus específico pode causar uma epidemia no futuro, mas podemos supor que a maioria dos hantavírus sejam semelhantes”, conclui McLellan. Hantavírus é uma família de vírus de RNA simples normalmente transmitido aos humanos por roedores. 

“Assim, se fizermos um projeto de vacina com base na estrutura para um ou dois membros da família, como um protótipo, quando um novo surgir, poderemos apenas transferir todo o conhecimento previamente adquirido.”

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