Por décadas, nossa cobertura foi racista. Para superar nosso passado, temos que reconhecê-lo.

Pedimos a um importante historiador que investigasse nossa cobertura sobre pessoas não brancas de todo o mundo. Isto é o que ele encontrou.

Por Susan Goldberg
Publicado 2 de abr. de 2018, 13:10 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Em uma edição dedicada à Austrália em 1916, os aborígenes eram “selvagens”, que “estão entre os menos inteligentes de todos os seres humanos”.
Foto de C.P. SCOTT Homem, H.E. GREGORY Mulher, National Geographic CREATIVE ambas

Esta Carta da Editora é parte da edição especial da revista National Geographic que investiga como o conceito de raça define, separa e une todos nós. 

Em 2 de novembro de 1930, a National Geographic enviou um jornalista e um fotógrafo para cobrirem uma ocasião magnífica: a coroação de Hailé Selassié, Rei dos Reis da Etiópia, o Leão Conquistador da Tribo de Judá. Uma cerimônia e tanto, com trombetas, sacerdotes, guerreiros brandindo lanças. O resultado foi uma reportagem com 83 imagens.

Em 1941, a revista usou uma expressão racista para descrever os trabalhadores que, na Califórnia, esperavam para carregar um navio: “Moleques, banjos e fardos [de algodão] como estes são comuns em Nova Orleans”.
Foto de Ray Chapin, National Geographic Creative

Se, naquele ano, uma cerimônia equivalente em homenagem a um indivíduo negro tivesse sido montada nos Estados Unidos, e não na Etiópia, quase certamente a revista não teria feito nenhuma reportagem desse tipo. Pior: se ele próprio vivesse no país, Selassié nem sequer conseguiria entrar na nossa sede, na então segregada Washington, DC, e muito menos poderia se tornar membro da National Geographic Society. De acordo com Robert M. Poole, autor de Explorers House: National Geographic and the World It Made (“A Casa dos Exploradores: A National Geographic e o Mundo Que Ajudou a Construir”), “os afro-americanos continuaram sendo excluídos da Society – pelo menos em Washington – até o final dos anos 1940”.

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    “Baralho e cachimbos entretêm os convidados no salão da Fairfax House, do século 18”, diz a legenda em um artigo de 1956 sobre o estado da Virgínia. Embora as mansões mencionadas tenham sido construídas com o trabalho escravo, o redator ressaltou que elas “constituem um capítulo da história do qual todo americano se recorda com orgulho”.
    Foto de Robert F. Sisson E Donald Mcbain, National Geographic Creative

    Antes de mim, nove outras pessoas foram editores-chefes da revista desde o seu lançamento, em 1888. Sou a primeira mulher e a primeira pessoa judia – ou seja, pertenço a dois grupos que, no passado, também eram discriminados aqui. Não é fácil compartilhar essas histórias constrangedoras. Porém, quando decidimos dedicar a edição de abril à questão racial, tornou-se evidente a necessidade de repassarmos a nossa própria história antes de dirigir o nosso foco jornalístico para as histórias alheias.

    As raças não são categorias biológicas, ressalta a escritora Elizabeth Kolbert, e sim uma construção social cujos efeitos podem ser devastadores. “Uma parcela imensa dos horrores dos últimos séculos pode ser atribuída à ideia de que existem raças inferiores e superiores”, escreve ela. “As distinções raciais continuam a influenciar a política, as cidades, assim como o modo como nos definimos.”

    Faz diferença, portanto, a forma como tratamos as questões de raça. Dos leitores costumo ouvir que a revista lhes proporciona acesso ao mundo. Os nossos exploradores, cientistas, fotógrafos e escritores conduzem as pessoas a locais que elas jamais haviam imaginado. Essa é uma tradição que ainda está por trás da forma como tratamos o mundo – um motivo de orgulho. E isso também significa que temos um dever, em cada reportagem, de apresentar os fatos de maneira acurada e legítima – dever que se acentua quando abordamos temas sensíveis como o das ideias raciais.

    O fotógrafo Frank Schreider mostra a sua câmera aos moradores de Timor, em uma edição de 1962. A revista exibia fotos de “nativos selvagens” fascinados pela tecnologia dos ocidentais “civilizados”.
    Foto de Frank E Helen Schreider, National Geographic Creative

    Nessa tarefa, solicitamos a ajuda de John Edwin Mason. Ele é professor na Universidade da Virgínia e especialista tanto em história da fotografia como em história da África, um cruzamento comum nos nossos relatos.

    Mason explorou os nossos arquivos e, em resumo, constatou o seguinte: até a década de 1970, a revista praticamente ignorou os norte-americanos que não eram brancos, raramente os reconhecendo fora das categorias de trabalhadores manuais e empregados domésticos. Ao mesmo tempo, costumava apresentar os “nativos” de outras partes do mundo como indivíduos exóticos, caçadores joviais, nobres selvagens – ou seja, lançando mão de todos os tipos de clichê.

    Os trabalhadores em minas de ouro sul-africanas ficavam “em transe com os trovejantes tambores” durante as “animadas danças tribais”, dizia uma reportagem de 1962.
    Foto de Kip Ross, National Geographic Creative
    A revista, no século 20, era famosa por mostrar de forma glamourosa os moradores das ilhas do Pacífico. Tarita Teriipaia, de Bora Bora, foi retratada em julho de 1962, mesmo ano em que contracenou com Marlon Brando em O Grande Motim.
    Foto de Luis Marden, National Geographic Creative

    Segundo Mason, a National pouco se empenhou em apontar aos leitores algo além dos estereótipos arraigados na cultura branca dos Estados Unidos. “Os americanos baseavam as suas noções de mundo nos filmes de Tarzan e em toscas caricaturas racistas”, diz ele. “A segregação racial era vista como normal. Em vez de apresentar novos aspectos do planeta, a revista reforçava as mensagens a que os leitores estavam familiarizados, e a isso ainda se acrescentava a  enorme autoridade da revista. A Society foi fundada no auge do colonialismo, em um mundo dividido em colonizadores e colonizados, com a distinção entre ambos sendo marcada pelo tom da pele. A National Geographic refletia essa concepção de sociedade.”

    Há certas coisas nos nossos arquivos que nos deixam abismados – como uma reportagem de 1916 sobre a Austrália. Sob a foto de dois aborígenes, dizia a legenda: “Negros do sul da Austrália: selvagens assim estão entre os menos inteligentes de todos os seres humanos”.

    As questões problemáticas não se referem apenas ao que foi publicado mas também ao que ficou de fora. Mason comparou duas reportagens que fizemos sobre a África do Sul, uma de 1962 e a outra de 1977. A de 1962 saiu dois anos e meio depois do massacre de 69 negros pela polícia em Sharpeville, muitos dos quais fuzilados pelas costas. A brutalidade chocou o mundo.

    “A reportagem mal toca nos problemas”, comenta Mason. “Não há nenhum depoimento de um sul-africano negro. Os únicos negros presentes aparecem em danças exóticas... [ou como] empregados e trabalhadores. É estranho imaginar tudo aquilo que os editores, redatores e fotógrafos tinham de desconsiderar de propósito.”

    Por outro lado, o artigo de 1977, na esteira do movimento pelas liberdades civis nos Estados Unidos, já adota outra perspectiva: “Ao menos a reportagem já reconhece a opressão”, segundo o pesquisador. “Os negros são retratados. Aparecem os líderes da oposição.”

    Um artigo de 1977 sobre o apartheid na África do Sul mostra Winnie Mandela, uma das fundadoras da Associação dos Pais Negros e esposa de Nelson Mandela.
    Foto de James P. Blair, National Geographic Creative

    Em outras reportagens, Mason recuperou curiosidades, como fotos de “nativos fascinados pela tecnologia ocidental. Isso recria a dicotomia ‘Nós e Eles’, entre os civilizados e os não civilizados”.

    Ao mesmo tempo, na década de 1960, diz Mason, “temos de reconhecer aquilo que, na época, havia de bom na revista, ou seja, a capacidade de fazer com que as pessoas conhecessem coisas do mundo que jamais teriam a chance de ver. O que dá para concluir, nesse sentido, é que a revista conseguia, ao mesmo tempo, abrir e fechar os olhos dos leitores.”

    O dia 4 de abril assinala o 50o aniversário do assassinato de Martin Luther King Jr. Esse é um momento importante para avaliarmos em que ponto estamos na questão racial. Daqui a dois anos, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, menos da metade das crianças do país será branca. Agora devemos nos perguntar por que continuamos a dividir as pessoas segundo critérios raciais. É hora de enfrentarmos o uso vergonhoso do racismo como estratégia política e provar que somos melhores que isso.

    Esta edição também nos proporciona a oportunidade imperdível de examinarmos os nossos próprios esforços para esclarecer a trajetória humana, algo que constitui parte essencial da nossa missão nesses 130 anos. Gostaria que um futuro editor da National Geographic olhasse para trás e tivesse orgulho do nosso trabalho – não só pelas histórias que decidimos contar mas também pela diversidade de escritores, editores e fotógrafos que se dedicou a esta revista.

    Esperamos que você nos acompanhe no debate da questão racial. Essas histórias, assim como partes da nossa própria história, não vão ser de leitura muito amena. Como escreve Michele Norris, “não é fácil para um indivíduo – ou para um país – evoluir e deixar para trás o desconforto quando a causa da ansiedade continua a ser apenas sussurrada”. 

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