Longe dos estádios, torcedores da Gaviões da Fiel ajudam os impactados pela pandemia

Departamento social da maior torcida organizada do Corinthians mobiliza torcedores para ajudar comunidades periféricas da Grande São Paulo.

Por Janaína Maurer
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Publicado 23 de mai. de 2021, 08:00 BRT, Atualizado 24 de mai. de 2021, 10:58 BRT
O galpão sede da Gaviões da Fiel, no Bom Retiro, bairro na zona central de São Paulo, ...

O galpão sede da Gaviões da Fiel, no Bom Retiro, bairro na zona central de São Paulo, agora recebe cestas básicas, roupas, cobertores e outras doações. Voluntários se guiam pelo lema Lealdade, Humildade, Procedimento.

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Voluntários entregam cestas básicas e produtos de higiene na Comunidade Cruzeirinho, em Pirituba, Zona Oeste de São Paulo. A ação faz parte da campanha de doações de cestas básicas da maior torcida organizada do Corinthians, que arrecadou mais de 30 toneladas de alimentos.

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Esta reportagem foi financiada pela National Geographic Society por meio da bolsa emergencial covid-19 para jornalistas.

O gavião acordava, trabalhava e, no fim do dia, vestia a sua farda. Pegava o metrô sentido Corinthians-Itaquera, descia na última estação e encontrava a multidão do bando de loucos. Repetia semanalmente esse ritual. Até que o silêncio das arquibancadas emudeceu a nação alvinegra. O estádio vazio, a bola parada, o mundo em suspenso.

Era março de 2020 e a pandemia da covid-19 chegava ao Brasil. As primeiras notícias ainda geravam desconfiança e descrédito do que viria a ser uma realidade imposta por mais de ano – e ainda sem perspectiva de fim.

Vivenciar a emoção do gol virou lembrança. E essa paixão precisou ser potencializada e redirecionada. Foi no meio da maior crise sanitária do país que a maior torcida organizada do Corinthians encontrou forças para não se esconder diante da tragédia social que se estabelecia. O amor ao time e à Gaviões da Fiel começava a impulsionar ainda mais a necessidade de se posicionar e agir.

O departamento social da Gaviões da Fiel ganhou destaque nesse cenário caótico. Já muito antes da pandemia, a torcida realizava inúmeras ações, especialmente em datas como Natal, Páscoa e Dia das Crianças, além de campanhas do agasalho para distribuir roupas de frio todos os invernos.

Com o coronavírus, surgiu a necessidade de reorganizar o setor para que o auxílio chegasse, de modo permanente, a quem precisava. Assim, já em março do ano passado, começava uma trajetória que perdura até hoje – ações semanais de arrecadação e entrega de marmitas, cestas básicas, roupas e itens de higiene por todas as regiões de São Paulo.

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    Cleber Sobrinho é diretor do departamento social da Gaviões da Fiel há oito anos. Aqui, é fotografado durante ação social na favela do Moinho, região central de São Paulo.

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    Voluntários distribuem doações na Vila Nova Palestina, ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto no extremo sul da cidade de São Paulo.

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    Maicon, voluntário do departamento social, entrega marmitas para moradores da Favelinha do Playcenter, no bairro Barra Funda, Zona Oeste de São Paulo.

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    Cleber Sobrinho, atual diretor do departamento, conta que a procura por ajuda explodiu e que a arrecadação não conseguiu suprir a necessidade das inúmeras famílias, por isso tomou a decisão de tornar a ação permanente. “Estamos trabalhando todo final de semana, sem parar. O departamento sempre foi ativo, mas a pandemia fez a gente perceber a necessidade de reforçar a frequência das ações”, disse Cleber em entrevista à reportagem. “Começamos com uma campanha de arrecadação de alimentos e conseguimos mais de 5 mil cestas básicas. Mesmo assim, percebemos que não era suficiente.”

    Essa demanda sensibilizou os torcedores de arquibancada, acostumados a acompanhar o Corinthians em campo.

    Cristiano Bizarro, autônomo, 31 anos, é um exemplo. Ele disse que as pessoas se isolaram e o instinto de ajudar foi natural, principalmente pela história de luta do time e da Gaviões. “Tem semana que eu vou pra quadra quarta, quinta e sexta pra organizar tudo para a entrega das doações no sábado. Parece muito né? Tem tanta gente que me pergunta, ‘mas por quê você faz isso?’' O torcedor é rápido ao responder à questão: “O Corinthians é a nossa existência. E se o time tem uma tradição de estar sempre ao lado do povo, nós vamos fazer disso a nossa ação. E pra quem quer que seja. Não importa se quem receberá é corinthiano ou de outra torcida, o essencial é a doação estar nas mãos de quem precisa”.

    Jossilene Nascimento, estudante, tem 19 anos e é cunhada de Cristiano. A aproximação do cunhado com o setor social e a situação de crise a inspiraram a frequentar a quadra para ajudar. Ela conta que o início da sua jornada no social foi um choque de realidade. “Eu percebi que, pra estar lá, é por um grande propósito. Não é todo mundo que sai de casa no meio de uma pandemia para ajudar o próximo de maneira voluntária. Além do mais, naquela época a gente tinha pouquíssima informação sobre a doença e menos ainda sobre vacina. Mas, mesmo sentindo muito medo, me senti grata por fazer parte disso e ajudar os gaviões e o Corinthians.”

    Jossilene, ou Jô, acredita que a pandemia potencializou a visibilidade e a importância de um departamento social dentro de uma torcida organizada. E que foi ali que ela entendeu o que, de fato, é ser um gavião.

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        Eduardo vive nas ruas da cracolândia e, durante as ações do departamento, entoava enredos da escola de samba da Gaviões da Fiel e pedia ajuda para se livrar das drogas. Na mesma semana, o Social conseguiu uma vaga em clínica para dependentes químicos para Eduardo. A foto registra o momento em que ele recebe a notícia e ganha uma camiseta da Gaviões.

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        Voluntários do departamento social da torcida organizada Gaviões da Fiel distribuem marmitas na frente do Teatro Municipal, centro de São Paulo.

         

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        Voluntários levam doações ao Centro de Acolhida Especial para Mulheres Transsexuais, região central da cidade de São Paulo.

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        Assim como Cristiano e Jô, outros se aproximaram da missão. E essa procura trouxe uma preocupação dos “mais velhos”. Como passar aos recém-chegados a responsabilidade e o peso que é vestir a camisa do social?

        A professora do ensino infantil da rede pública de São Paulo Larissa Rodrigues, 37 anos, diz que reuniões foram organizadas para deixar claro que ali não era lugar para fazer fama. O trabalho exige comprometimento e integridade. “Aqui não é lugar pra ficar caçando, ficar tirando ‘fotinha’. Quando entrei no departamento, há mais de três anos, eu fui sinalizada disso”, diz Larissa. “Então, eu vi que a história que meu pai me contava sobre os Gaviões era verdade. Lá é um espaço que tem uma história com democracia, respeito, dignidade e humildade. Dentro da quadra você é cobrado porque você veste uma camisa que tem peso. Se você faz algo errado, não é a Larissa que fez algo, é o social da Gaviões que ‘tão’ fazendo. É necessário pensar e refletir muito bem sobre o que você faz e fala. Ninguém deve vir à passeio.”

        Esse 'boom do social', segundo Larissa, surgiu porque, com o início da pandemia, o departamento social passou a ser o único em funcionamento, atraindo integrantes de outros setores da Gaviões e corinthianos não filiados à torcida. Por isso a preocupação de passar para as pessoas que chegavam o que é ser um gavião.

        “Foi um momento muito importante, porque ficamos muito visados e tivemos um reconhecimento e um respeito do nosso trabalho. Muita gente não conhecia a fundo, então, apesar de todas as dificuldades, conseguimos ver excelentes resultados em cima disso, uma evolução muito grande”, diz Larissa. “Entregar marmita não é só entregar e tirar foto, é sobre trazer um resgate para aquela pessoa, dizer que ela é importante, que aquilo que foi tirado dela, o mínimo básico de saúde e alimentação que precisa ser reparado. Fazemos isso pra trazer um pouco de conforto pra essa família.”

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          Moradores da comunidade Jardim Julieta, Zona Norte de São Paulo, fazem fila para receber marmitas e outras doações.

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          A estudante Jossilene Nascimento, à esquerda, e Larissa Rodrigues, professora de ensino infantil da rede pública, posam para retrato durante ação social no Jardim Julieta, Zona Norte de São Paulo. O número de mulheres vem aumentando em todos os setores do futebol – no departamento social da Gaviões, elas já são maioria.

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          Stephany, voluntária do departamento social, faz o cadastro de famílias para receber doações de leite na favela do Moinho, região central de São Paulo.

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          Luka, voluntária do departamento social, faz o cadastro de famílias para receber doações de leite na favela do Moinho, região central de São Paulo.

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          O funcionamento do departamento se dá dividido em setores, com responsáveis nomeados para que a organização ocorra de forma transparente. Larissa, por exemplo, é do setor Documentos, que cuida da parte mais burocrática das ações. Um detalhe essencial: o departamento sobrevive apenas com doações. São principalmente famílias e torcedores que se mobilizam para fornecer uma ‘quentinha’, ou alimentos para serem preparados por mais voluntários. Além disso, as redes sociais frequentemente divulgam campanhas de arrecadação de recursos para atividades específicas – como na Páscoa, quando a torcida se mobilizou para comprar chocolate para as crianças. Não há vínculos econômicos com o Corinthians, não existe patrocínio de empresas e nem ligações com governos.

          Para decidir sobre as ações, estuda-se durante a semana quais os locais que pediram auxílio e, assim, planeja-se a logística. Os carros que visitam as comunidades são dos próprios torcedores. O combustível também é bancado pelos voluntários.

          Torcida organizada

          Apesar das torcidas organizadas carregarem um imaginário de violência e competitividade, o departamento social da Gaviões da Fiel empenha-se para demonstrar a realidade dentro da quadra e das arquibancadas. A sigla estampada em todas as camisetas e pintada em letras garrafais na sede – LHP: lealdade, humildade e procedimento – é constantemente lembrada por todos os integrantes.

          “O LHP realmente existe. São pessoas que acreditam nisso. Os gaviões não só fiscalizam o Corinthians, mas acreditam no processo de luta pelos trabalhadores e pela igualdade social. Em olhar para quem está marginalizado e esquecido pela elite brasileira”, diz Larissa. “Um dos nossos papéis é garantir o direito básico para esses cidadãos.”

          O envolvimento político da torcida é inevitável e está intimamente relacionado ao movimento da Democracia Corinthiana. A Gaviões da Fiel atua de modo suprapartidário, mas não deixa de se posicionar nos momentos decisivos do país, tal como aconteceu nos protestos antifascistas de junho de 2020.

          Com a pandemia, esse movimento se traduziu no aumento das ações sociais e na coragem dos torcedores que, apesar de seguirem as recomendações básicas – uso de álcool gel e máscaras –, se expuseram ao contágio para ajudar.

          A precariedade era evidente na maioria dos lugares visitados pelos mutirões de doações. Diante de um governo federal omisso em relação a suas responsabilidades sanitárias, era comum observar comunidades inteiras sem máscara e desrespeitando o distanciamento social.

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            Criança brinca em cama elástica durante ação social em 12 de outubro de 2020, Dia das Crianças, na favela do Moinho.

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            O departamento fez cachorro-quente, contratou animadores e distribuiu alimentos e brinquedos para as crianças.

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            "O governo tinha a obrigação de ajudar a sociedade, mas vimos como ele não chegou. Muitas pessoas ficaram desempregadas; quem tinha emprego formal viu a renda diminuir”, diz Cleber, o diretor do departamento social. “Foi aí que nós chegamos: em comunidades que pegaram fogo, que alagaram. E eles nos agradecem muito, porque sabem que nosso trabalho é sério, que deixamos nossas famílias em casa, que corremos risco, que é um ato de coragem.”

            O diretor também conta de uma festa de Dia das Crianças realizada na favela do Moinho. Mesmo em meio às restrições, foi decidido que, em outubro, seria realizado um evento para entrega de brinquedos e alimentação na comunidade. “Lá é outra realidade, e a gente viu o sorriso de cada criança em agradecimento, os pais reconhecendo a primeira ação de lazer depois de meses sem qualquer tipo de entretenimento. Nosso trabalho continua, muita gente ainda vai precisar, e nós estaremos lá.”

            Sou corinthiana, maloqueira e sofredora

            A presença das mulheres no mundo do futebol é um caminho sem volta. Nas arquibancadas, no campo, nas comissões técnicas, nas transmissões e, também, dentro da torcida organizada. Mesmo que ainda sob um estereótipo – de que mulheres cuidam melhor –, não há como falar do departamento social dos Gaviões da Fiel sem ressaltar a presença imponente de diversas torcedoras. Elas são, afinal, maioria por lá.

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              Cristiano Bizarro, à esquerda, e William durante ação social no Morro Doce, atendendo as famílias da Favela do 16.

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              Departamento Social da Gaviões organiza doações em uma casa no Morro Doce, região noroeste da cidade de São Paulo. Foram doados alimentos, roupas e cobertores para as famílias da Favela do 16.

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              De acordo com a professora Larissa, grandes mulheres dos Gaviões foram responsáveis por abrir espaço na torcida organizada. Foram para caravanas, brigaram e conquistaram seus lugares. “A gente está lá porque acreditamos e amamos o Corinthians. A gente vai pra cima, vai fiscalizar. E vamos lutar, porque temos condição de discutir futebol de igual pra igual”, diz ela. “A gente precisa desse reconhecimento, e assim estamos quebrando esse movimento machista presente em toda a sociedade; não é exclusivo da torcida. Esse poder feminino dentro do departamento social é uma mudança muito grande e significativa. Daqui uns anos, sabemos que essas lideranças irão se expandir para outros setores da torcida.”

              Jossiane, a Jô, também se inspira em suas ancestrais torcedoras. “Ser mulher no mundo não é fácil. Na torcida não seria diferente; a gente sabe que a misoginia rola solta. Sabemos que está melhor do que era antes, mas, ainda assim, muitas vezes somos questionadas, inclusive pelo nosso amor ao time”, diz ela. “A gente precisa provar que esse espaço é nosso. Por isso eu me espelho nas mulheres que chegaram lá primeiro e peitaram quem tinha que ser para poder demonstrar o amor pelo Corinthians.”

              É com a força das mulheres e a dedicação dos torcedores que os gaviões trabalham para amenizar as dificuldades no que for possível – uma resistência ao descaso do poder público com as periferias de São Paulo. Um esforço que evidencia a primordial função social do futebol. Que seja replicado por torcidas do Brasil e do mundo.

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