Elites medievais utilizavam lavagem das mãos como um astuto ‘jogo de poder’

Lavar as mãos antes das refeições era um ritual importante tanto para os camponeses quanto para a nobreza — especialmente porque as pessoas costumavam comer com as mãos.

Por Sarah Durn
Publicado 20 de mai. de 2021, 07:00 BRT
Medieval hand washing

Um importante ritual social na Idade Média, a lavagem das mãos também foi retratada na arte medieval. Neste retábulo do século 14 na Catedral de Siena, Pôncio Pilatos lava as mãos enquanto condena Jesus Cristo.

Foto de DeAgostini, Getty Images

Nenhuma tarefa cotidiana mostrou-se mais importante no último ano do que lavar as mãos. Desde o início da pandemia, quando os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) aconselharam “a limpeza das mãos de uma maneira específica”, o ato de ensaboar e esfregar por 20 segundos se tornou um ritual, especialmente ao voltar para casa após uma saída no mundo atormentado pelo novo coronavírus.

É o tipo de ritual que os europeus medievais reconheceriam, embora para eles muitas vezes envolvesse um nível de socialização maior do que nos é permitido atualmente. Supõe-se comumente que as pessoas que viviam na Idade Média possuíam higiene pessoal precária, mas, na verdade, muitas delas tinham boas práticas de limpeza. Originada pela necessidade, a lavagem das mãos evoluiu para uma demonstração altamente coreografada de poder e riqueza. Era um “sinal de civilidade”, afirma Amanda Mikolic, assistente de curadoria do Departamento de Arte Medieval do Museu de Arte de Cleveland, em Ohio.

Tanto reis quanto camponeses lavavam as mãos antes e depois das refeições. A maioria das pessoas comia com as mãos — talheres eram raros e a comida costumava ser servida em grandes fatias de pão amanhecido, chamadas de trenchers. Lavar a sujeira acumulada durante o dia era uma necessidade, além de um sinal de respeito por quem o estivesse alimentando. “Que seus dedos estejam limpos e suas unhas bem cuidadas”, exigia o Les Contenances de Table, um texto medieval do século 13 sobre bons modos à mesa.

A grande capacidade e decoração relativamente simples deste lavabo — um dos diversos tipos de vasos medievais utilizados para lavar as mãos — sugere que ele pertenceu a uma casa particular ou talvez a um mosteiro.

Foto de Photo by Heritage Arts, Getty Images

A nobreza e o clero medievais levaram a lavagem de mãos e do rosto a um novo patamar, com os rituais em torno dos monarcas sendo especialmente elaborados. Pessoas que fossem jantar com um rei europeu medieval eram recebidas por menestréis tocando belas melodias em uma harpa ou viela (um ancestral medieval do violino) e conduzidas a um lavatório com “bacias luxuosas, toalhas brancas e limpas e água perfumada”, de acordo com Mikolic. Cercados por criados, os convidados limpavam as mãos, tomando muito cuidado para não sujar as imaculadas toalhas. As mulheres já teriam lavado as mãos antes de chegarem, garantindo que “quando elas limpassem as mãos nesses panos brancos, nem uma partícula de sujeira ou terra sairia - provando sua natureza limpa e virtuosa”.

Assim que todos estivessem sentados no grande salão, o rei entraria. Os convidados ficariam de pé e observando enquanto ele lavava as próprias mãos. Somente depois que o rei terminasse, todos os outros tomariam seus assentos. Era “um jogo de poder para mostrar quem estava no comando”, explica Mikolic, “assim como quase tudo em todo o banquete”.

Diretrizes rígidas governavam a maneira como os nobres deveriam comer, algumas das quais provavelmente seriam aprovadas pelo CDC. Les Contenances de Table, conforme traduzido por Jeffrey Singman e Jeffrey Forgeng em seu livro Daily life in Medieval Europe (Vida cotidiana na Europa Medieval, em tradução livre), lista diversas regras para o jantar:

      “Assim que um pedaço for tocado, ele não deve ser devolvido ao prato.

     Não toque suas orelhas ou nariz com as mãos desprotegidas...

     O regulamento ordena que não se coloque um prato na boca.

     Quem quiser beber deve primeiro mastigar o que estiver na boca.

     E que seus lábios sejam limpos antes...

     Assim que a mesa estiver limpa, lave as mãos e tome uma bebida.”

Rituais elaborados exigiam ferramentas ostentosas. Os cruzados trouxeram para a Europa o luxuoso sabão de Aleppo, feito de azeite de oliva e louro. Em pouco tempo, franceses, italianos, espanhóis e, por fim, ingleses, todos começaram a fazer sua própria versão do sabão de Aleppo utilizando azeites de oliva locais, em vez da gordura animal malcheirosa como nos séculos anteriores. Talvez a mais conhecida dessas versões europeias seja o sabão Castela, da Espanha, que ainda hoje é feito e vendido para todo o mundo.

Vasos ornamentados como aquamanis (jarras) e lavabos (essencialmente uma tigela com alças e bicos) eram enchidos com a água quente e perfumada usada durante a lavagem das mãos. Nas famílias mais ricas, os servos derramavam a água perfumada nas mãos dos que iriam jantar. Esses recipientes eram tão valorizados que Jeanne d'Évreux, rainha da França e esposa de Carlos IV, incluiu diversos aquamanis entre as preciosas decorações de mesa em seu testamento.

Mas, por fim, a prática da lavagem das mãos começou a perder força. Muitos estudiosos atribuem isso ao garfo, que não era comumente utilizado até o século 18. “Toda a natureza ritual em torno da lavagem das mãos começou a desaparecer quando os talheres começaram a se tornar mais proeminentes e os anfitriões a oferecer talheres para os convidados”, explica Mikolic, “e depois quando as pessoas podiam comer sem tirar as luvas”.

É muito cedo para dizer quais rituais da era pandêmica permanecerão conosco. Mas hoje, séculos depois de os aquamanis e os lavabos terem saído de moda, lavar as mãos ainda pode ser uma forma de exibir riqueza. De pias com vasos pintados à mão a sabonetes caros feitos com óleos essenciais e toalhas macias de algodão egípcio, continuamos a criar rituais luxuosos para lavar as mãos. Sempre que usa sabonetes perfumados, Mikolic diz que se lembra da água perfumada da Idade Média. “Eu sempre dou risada.”

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