A ancestralidade somos nós

Escritor Jeferson Tenório reflete sobre o trágico episódio do Massacre dos Porongos, quando mais de cem soldados negros foram traídos durante a Guerra dos Farrapos. 

Por Jeferson Tenório
Publicado 24 de jun. de 2022, 11:32 BRT

O Massacre dos Porongos é uma triste página da história do Rio Grande do Sul. Trata-se de uma emboscada que vitimou mais de cem soldados negros durante a Guerra dos Farrapos. Conhecida como Revolução Farroupilha, o evento tornou-se, por um lado, o símbolo do orgulho gaúcho, mas por outro apagou a importância dos soldados negros neste episódio, mais do que isso, a busca por uma identidade gaúcha altiva e aguerrida provocou, muitas vezes, o processo de pagamento da cultura afro-brasileira no Estado.     

A busca por uma identidade negra que nos salve do esquecimento tem a ver com uma leitura decolonial da história. Fazer uma revisão crítica e descolonizada é fundamental para uma sociedade que precisa reconhecer as desigualdades raciais. Trazer a luta e a memória dos Lanceiros Negros, em tempos tão hostis, é um modo de reatualizar o passado, colocando à prova a capacidade de ressignificar nossa caminhada, pois rever as narrativas históricas por uma outra perspectiva nos permite exercer nossa liberdade. Importante ressaltar justamente essa palavra: liberdade.

Precisamos lembrar que a revolta Farroupilha ocorreu por interesses econômicos. Tinha-se uma elite gaúcha insatisfeita com o aumento de impostos cobrados sobre os produtos. Diferente dos outros soldados, recrutados para essa guerra civil, que é considerada uma das mais longas do Brasil, os Lanceiros Negros não entraram em batalhas pela ideologia farroupilha, mas pelo anseio de liberdade. Ao serem colocados numa emboscada cruel e vergonhosa, estes soldados negros pagaram com a morte a coragem de acreditarem nas promessas farroupilhas.

Olhar para o passado está para além de uma homenagem ou reverência aos que se foram. Trazer figuras negras ilustres da atualidade, para esta exposição, nos leva para um espaço simbólico importante, justamente porque a ancestralidade nos coloca num outro tempo. Nos leva para uma outra experiência, para uma outra dimensão: a dimensão do sagrado. Não no sentido religioso, mas num sentido existencial. Quando homens e mulheres negras alcançam postos de destaque numa sociedade desigual e racista, isso significa dizer que sempre chegamos acompanhados dos que lutaram antes. Daqueles que abriram os caminhos e nos trouxeram até aqui. A ancestralidade somos nós: passado e presente. 

A ancestralidade é a potência da coletividade. O tempo ancestral é experiência dos mais velhos exercendo em nós. A ancestralidade é a presentificação do sagrado em nossa jornada. É trazer para os nossos caminhos os passos de Zumbi, de Dandara, de Luiza Mahin, de Maria Firmina dos Reis, de Abdias do Nascimento, de Carolina Maria de Jesus e tantos outros que compuseram esse ambiente para que hoje todos nós pudéssemos chegar aonde chegamos. Axé.

Jeferson Tenório é escritor e autor dos romances O avesso da pele, vencedor do prêmio Jabuti de literatura, O beijo na parede e Estela sem Deus.

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