A vida a bordo da mais longa viagem de trem da Índia

Sob o balanço incansável de ferro, madeira e poeira, a ferrovia indiana é completamente feita de histórias.

Por Gulnaz Khan
fotos de Matthieu Paley
Publicado 8 de nov. de 2017, 20:35 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Passageiros olham pela janela do compartimento da segunda classe. Esses assentos econômicos são as passagens mais baratas do trem e geralmente são preenchidos por trabalhadores migrantes. Eles voltam para casa em Assam depois de trabalharem em serviços de construção em Tamil Nadu, onde os salários são melhores.
Foto de Matthieu Pailey

Por mais de um século, a malha ferroviária da Índia testemunhou a infindável expressão da condição humana, suportou o incalculável peso de separações e embalou gentilmente o cansaço da vida até o esquecimento.

"Ela é nova, bela e repulsiva ao mesmo tempo", diz o fotógrafo da National Geographic Matthieu Paley, que ficou cinco dias e quatro noites a bordo do Vivek Express. Começando pelo extremo sul da Índia, a rota se estende por 4,243 quilômetros, desde Kanniyakumari – ao sul – a Dibrugarh – ao norte – sob o supervisão do inclemente sol equatorial. É a viagem de trem mais longa do subcontinente indiano.

"As pessoas querem tempo", diz Matthieu. "Vivemos em um mundo que quer comprimir o tempo e fazer as coisas cada vez mais rápido. Eu adoro o trem porque é um ambiente em que você é obrigado a desacelerar."

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    O Vivek Express para 58 vezes em seu longo caminho desde Dibrugarh até Kanniyakumari.
    Foto de JON BOWEN, NG MAPS, MAP DATA: © OPENSTREETMAP CONTRIBUTORS, AVAILABLE UNDER THE OPEN DATABASE LICENSE: WWW.OPENSTREETMAP.ORG/COPYRIGHT

    É possível traçar a origem do movimento de "viagem lenta" à Revolução Industrial do século 19, uma época definida pela aceleração sem precedentes, a onipresença da tecnologia e a mercantilização do tempo. Os românticos alertaram que essa obsessão moderna com o tempo era uma "gaiola de ferro" construída por nós mesmo e que levaria à alienação, à perda de significado e à falta de autorreflexão. A solução proposta era a desaceleração.

    "O meu tipo de fotografia preferida acontece quando eu desacelero; mas hoje em dia, não é fácil", diz Matthieu. "Em trens, eu sou como um refém, desconectado, suspenso no tempo. Isso me força a desacelerar. É isso que eu almejo: dê-me uma viagem longa e lenta e eu ficarei feliz."

    A experiência do tempo, no entanto, sempre se articula com nossas percepções continuamente em evolução de velocidade. Enquanto a viagem ferroviária pode ser lenta para os padrões contemporâneos, quando o primeiro trem da Índia atravessou 34 quilômetros de Bombaim a Thana, em abril de 1853, o acontecimento foi, além de um triunfo da engenharia, criticado por quem achou o trajeto rápido demais.

    No século e meio seguinte, as ferrovias não só alteraram drasticamente a cultura indiana como também reestruturaram o próprio tempo e espaço.

    Durante a viagem, ambulantes aparecem na cabine oferecendo todo tipo de coisa – jóias, comida, um trago de aromatizador de ar, correntes, livros, tabaco para mascar e bolas felpudas. Tudo passível de ser barganhado por algumas rúpias.

    Considerada tanto uma tecnologia transformadora quanto símbolo da opressão imperial britânica, a malha ferroviária apagou as outrora imensas distâncias, estimulou o comércio e tornou a viagem acessível para as massas. Mas também criou ambientes propícios a transmissão de doenças infecciosas, condições de trabalho exploratórias além de alterar para sempre a paisagem natural.

    Os colonizadores britânicos enxergavam o trem como um prenúncio do progresso – uma ferramenta capaz de abolir o sistema de castas e forjar a sociedade capitalista. Em vez disso, ele se tornou um espaço que era invariavelmente indiano: a beleza e o caos em paralelo.

    "O subcontinente indiano pode ser um lugar perturbador", diz Mathieu. "Há uma certa beleza do ser, mas é difícil percebê-la de início, escondida sob todo o barulho e a contínua loucura colorida. É isso que eu amo nessa parte do mundo – você pode simplesmente se envolver com o que está ao seu redor sem parecer estranho."

    Esse inabalável envolvimento é fundamental para a viagem lenta – que valoriza a qualidade das interações com a cultura local, e não a quantidade de carimbos no passaporte. Esse ideal remonta à crença romântica de que a preocupação com o futuro corrompe o caminho do presente.

    Cientistas concordam que as sociedades industrializadas estão vivendo uma "fome de tempo" paradoxal – o sentimento persistente de que temos muitas coisas para fazer e não temos tempo suficiente para realizá-las – e que isso interfere na nossa habilidade de apreciar experiências imateriais. Estamos fazendo tudo mais rápido, mas não percebemos que temos mais tempo livre.

    Enquanto a Índia se choca incessantemente com o futuro, é difícil determinar como será a próxima geração de viagens de trem. Com o respaldo de um financiamento de US$ 12 bi do Japão, o governo está desenvolvendo um trem de alta velocidade que ligará as cidades de Mumbai e Ahmedabad. "A empresa fará uma revolução nas ferrovias indianas e levará a Índia para o futuro", de acordo com o Primeiro Ministro Narendra Modi. "Ele vai ser um motor de transformação econômica."

    Na Bengala Ocidental, um homem se banha em um rio próximo de sua casa. Matthieu também teve tempo para lavar a própria camisa antes do trem partir novamente.
    Foto de Matthieu Paley

    Essa é, talvez, a dualidade da modernização – ela tem o potencial para melhorar drasticamente as vidas enquanto aumenta, simultaneamente, a atrofia espiritual.

    Henry David Thoreau prescreveu uma "dose de natureza selvagem" para escapar o ritmo voraz da urbanização. Mas em um país com 1,3 bilhões de pessoas, natureza selvagem é um estado de espírito – uma vontade de confrontar a vida em todas as suas confusas iterações. Com mais de 22 milhões de passageiros por dia, 1,3 milhões de funcionários e 66 mil quilômetros de trilhos, a ferrovia indiana é repleta de vida.

    "Somos uma massa coletiva nos movendo com o ritmo, vibrando, em permanente evolução", diz Matthieu. "Se você prestar atenção, pode se envolver com o puro prazer de viajar. Para mim, é o sentimento de estar unido mesmo com todas as nossas diferenças."

    O trabalho de Matthieu Pailey já estampou as páginas da revista National Geographic. Veja imagens de sua viagem de trem pela China em seu Instagram.

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