Por que um homem levava 5 mil sanguessugas em sua bagagem?

Um cão farejador detectou as criaturas em um aeroporto. Agora, as autoridades estão tentando descobrir o que fazer com elas.

Por Dina Fine Maron
Publicado 7 de fev. de 2019, 17:38 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A sanguessuga medicinal europeia é uma das duas espécies normalmente utilizadas em hospitais e clínicas em ...
A sanguessuga medicinal europeia é uma das duas espécies normalmente utilizadas em hospitais e clínicas em todo o mundo. Sua saliva contém um poderoso anticoagulante que pode ajudar a combater os coágulos sanguíneos. A outra é a sanguessuga medicinal do sul.
Foto de Regis Duvignau, Reuters

O cão beagle a serviço no Aeroporto Internacional Pearson, em  Toronto, Canadá, esperava farejar algum contrabando quando um odor inesperado chamou sua atenção. A fonte era a bagagem de um canadense que havia retornado da Rússia.

O cão sabia como deveria proceder e se colocou ao lado ao viajante, indicando à equipe da Agência Canadense de Serviços Fronteiriços que algo estava errado.

Os oficiais verificaram as malas do suspeito e encontraram centenas de recipientes repletos de algo pegajoso que se contorcia: 5 mil sanguessugas vivas. Isso ocorreu em 17 de outubro de 2018 e o leal cão beagle havia ajudado as autoridades a capturar o primeiro "contrabandista" de sanguessugas do Canadá.

As autoridades o consideram um possível importador ilegal de sanguessugas e não um contrabandista, porque ele não estava necessariamente ocultando a carga de forma proposital.

O homem foi acusado de importar ilegalmente uma espécie regulamentada internacionalmente sem as licenças necessárias, afirma André Lupert, gerente de inteligência da Diretoria de Fiscalização da Vida Selvagem, Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Canadá. De acordo com Lupert, o homem aguarda a realização de uma audiência na região metropolitana de Toronto, possivelmente ainda neste mês. Para proteger sua privacidade e devido ao fato de a investigação ainda estar em andamento, a Agência de Serviços Fronteiriços do Canadá disse que não pode divulgar o nome ou outras informações sobre o incidente — incluindo o nome do cão ou até mesmo seu sexo.

Uso medicinal

Sanguessugas são parasitas encontrados em todos os continentes, exceto na Antártica. Muitas se alimentam de sangue (algumas precisam de apenas uma refeição ao ano), o que lhes dá uma má reputação, mas são amplamente valorizadas pela medicina. As sanguessugas apreendidas eram de duas espécies — a sanguessuga medicinal do sul e a sanguessuga medicinal europeia —, utilizadas em hospitais, clínicas de cirurgia plástica e unidades para tratamento de queimaduras em todo o mundo. As sanguessugas consomem sangue preso e melhoram a circulação de tecidos lesionados secretando anticoagulantes naturais. Podem ser vendidas por US$10 cada.

As sanguessugas eram tão procuradas na Europa no século 1800 que se tornaram ameaçadas de extinção, resultando na criação de inúmeras proibições de exportação, consideradas algumas das proteções ambientais mais antigas. Hoje, a venda global das duas principais sanguessugas medicinais é regulamentada.
Foto de Paul Van Hoof, Minden Pictures

O homem alegou que as sanguessugas em sua bagagem eram para uso pessoal e que a água utilizada na manutenção dos animais iria nutrir suas orquídeas, contou Lupert.

Para Lupert, isso não pareceu verdade. "Essa quantidade de sanguessuga sugere que o propósito era a comercialização", diz ele, contando ainda que o homem poderia estar tentando encontrar compradores para as sanguessugas, para uso em tratamento de queimaduras e para ajudar na recuperação de liftings faciais. Algumas pessoas procuram as sanguessugas para uso caseiro em medicina natural, acreditando que elas sejam capazes de aliviar dores ou remover sangue "ruim" do corpo. Contudo sem o uso de antibióticos prescritos, tais usos podem trazer risco de infecção.

O uso de sanguessugas na medicina data do Egito antigo. No início do século 19, na Europa, o uso em excesso desses animais para sangria terapêutica levou à criação de algumas das mais antigas leis de proteção ambiental, de acordo com uma pesquisa realizada por Roy Sawyer, apaixonado por sanguessugas e fundador do Medical Leech Museum, em Charleston, Carolina do Sul. Essas pequenas criaturas eram tão amplamente utilizadas que as fontes locais na Europa ocidental se esgotaram, observou Sawyer. A escassez desses animais inspirou o poema "The Leech Gatherer”, de William Wordsworth, em 1802.

Sob o tratado que regulamenta o comércio internacional de animais silvestres — a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites) —, remessas de determinadas espécies ameaçadas seriam ilegais sem as devidas autorizações de exportação e importação. A Cites regulamenta uma variedade de animais e plantas — incluindo as duas espécies de sanguessugas apreendidas pelas autoridades — para garantir que a demanda comercial não as extermine.

Com a documentação adequada, sanguessugas medicinais podem ser enviadas legalmente de um país a outro. O Canadá, por exemplo, obtém a maior parte de seu suprimento dos Estados Unidos, de acordo com Lupert. Já os EUA aprovaram as sanguessugas como "dispositivos" médicos em 2004.

Das centenas de espécies de sanguessugas, apenas algumas gostam de sangue humano e se prendem ferozmente à fonte de alimento, explica Mark Siddall, especialista em sanguessugas e curador de invertebrados no Museu Americano de História Natural, na cidade de Nova York. As espécies com as quais o canadense foi pego são ávidas por sangue, diz Siddall.

Sanguessugas sem lar

Quando os oficiais canadenses apreenderam 5 mil sanguessugas, eles ficaram com um problema nas mãos: o que fazer com elas? Eles não queriam matar esses animais em ameaça de extinção — especialmente enquanto o caso ainda estava sendo investigado. "No fim, o juiz decide se ele deseja ver as sanguessugas pessoalmente porque elas são consideradas provas", afirma Lupert. E as autoridades também não queriam ter que abrigá-las por muito tempo. Essas espécies não são endêmicas no Canadá, então elas não devem ser soltas na natureza, afirma Lupert.

Um incidente contribuiu para que as autoridades desejassem se livrar delas o mais rápido possível. "Tivemos que aprender na prática como lidar com esses animais", diz Lupert, que também é o diretor regional em exercício da Diretoria de Fiscalização da Vida Selvagem em Ontário. "Essas criaturas são bastante ativas. Nós trocamos a água regularmente e quando os oficiais chegaram pela manhã, viram que 20 delas haviam escapado", lembra ele dando risada. Por sorte, as sanguessugas foram rapidamente recapturadas e devolvidas aos seus recipientes.

Os oficiais do governo começaram a dar telefonemas para encontrar um abrigo para as sanguessugas. As respostas não foram nada animadoras. "Pense em colocar 20 delas em um pote—agora imagine quanto espaço iríamos precisar para guardar todos os potes quando se tem 5 mil sanguessugas", diz Lupert. "Não é apenas chegar, entregá-las e dizer 'aqui está'."

As instituições médicas contatadas não quiseram receber tantas delas — o Canadá inteiro normalmente adquire entre 500 e 1 mil sanguessugas legais para fins medicinais por ano, observa Lupert, então 5 mil foi pedir muito.

Ele disse que apenas o Royal Ontario Museum, em Toronto, aceitou algumas—apenas 50—o que ainda deixou as autoridades com 4.950 delas em uma sala com outros animais vivos confiscados, incluindo tartarugas e jabutis. (O museu também identificou as duas espécies de sanguessugas na bagagem, conta Lupert).

Ampliando o campo de busca, os canadenses acabaram encontrando um abrigo para mil delas no Museu Americano de História Natural, graças a Mark Siddall. Mas havia um problema: o Canadá e os Estados Unidos deveriam formalizar a exportação e a importação com os documentos necessários, atrasando ainda mais o transporte das sanguessugas.

Dois meses após as sanguessugas terem sido confiscadas, o laboratório de Siddall recebeu mil delas. "Após 25 anos trabalhando com biologia e comportamento de sanguessugas, tenho a experiência necessária—e os alunos—para ajudar", diz ele sobre os cuidados que as sanguessugas exigem. "É preciso trocar a água, saber qual é a aparência delas quando não estão bem, se precisam ser alimentadas e saber quando começar a separar as doentes das saudáveis".

Essa não é a primeira vez que Siddall abriga sanguessugas. "Sem entrar em muitos detalhes, isso já aconteceu antes", afirma ele. Pressionado a dar mais informações sobre a natureza intrigante do contrabando de sanguessugas, ele se recusou a comentar as circunstâncias dos incidentes anteriores, pedindo que a National Geographic contatasse o Serviço Norte-Americano de Pesca e Vida Selvagem, a agência responsável por supervisionar as importações e exportações de animais silvestres.

A porta-voz Christina Meister disse que o serviço não possui dados prontamente disponíveis sobre o contrabando de sanguessugas. E que a equipe também não tem conhecimento dos casos encerrados—para saber mais, seria necessário dar entrada em um pedido de acordo com a Lei da Liberdade de Informação. Em 17 de dezembro de 2018, a National Geographic protocolou um pedido nos termos da referida lei (FOIA) para obter informações sobre importações de sanguessugas de 2007 até a presente data, o que incluiria apreensões.

A EcoHealth Alliance, organização sem fins lucrativos sediada em Nova York, mantém um banco de dados do comércio de animais silvestres chamado WILDd, que se baseia em dados oficiais do governo norte-americano sobre remessas de animais selvagens e seus produtos, entre outras fontes. De acordo com a EcoHealth Alliance, os Estados Unidos negaram a entrada de 10 remessas de sanguessugas entre 2000 e 2014—o que significa que os oficiais apreenderam os animais ou os enviaram de volta ao país de origem. Allison White, gerente de programas e avaliação da EcoHealth descobriu que essas recusas somaram pelo menos milhares de sanguessugas. Os pormenores de cada incidente permanecem desconhecidos.

Quanto à grande apreensão de sanguessugas realizada pelo Canadá, um juiz ouvirá o caso em 15 de fevereiro. Enquanto isso, os oficiais ainda estão tentando encontrar um lar para as 3.950 sanguessugas restantes.

"Quer um animalzinho de estimação?", pergunta Lupert.

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