Peixes adormecidos podem oferecer pistas sobre a origem do sono
Cientistas observaram o que ocorre internamente em peixes-zebra adormecidos e identificaram padrões de atividade surpreendentemente familiares.
Foram décadas de trabalho — e provavelmente algumas noites sem dormir —, mas pela primeira vez pesquisadores identificaram padrões de sono nos cérebros de pequenos peixes-zebra, e esses padrões são supreendentemente similares à atividade cerebral dos humanos durante o sono.
Conforme relatado na revista científica Nature, evidências de padrões de sono semelhantes em peixes e mamíferos podem oferecer pistas sobre a evolução do sono em nossos antepassados comuns, o que pode nos ajudar a compreender melhor a função biológica do sono.
“O sono é um grande mistério no campo da neurociência”, afirma William Joiner, biólogo da Universidade da Califórnia em San Diego, que estuda o sono em moscas de fruta, mas que não participou dessa pesquisa. Diversos estudos já questionaram os motivos do sono e “ainda não se chegou a nenhuma boa resposta”.
Para esse novo estudo, a equipe utilizou técnicas avançadas de geração de imagens para observar o momento em que os peixes-zebra adormeciam, e descobriu que o ciclo entre os estados do sono desse pequeno peixe é semelhante ao dos humanos: sono com movimento rápido dos olhos, ou REM e sono não REM. Esse padrão já foi encontrado anteriormente em diversos mamíferos, aves e lagartos, mas pela primeira vez foi identificado em um peixe.
Com base no que se sabe sobre as afinidades evolucionárias entre peixes e mamíferos, a equipe sugere que os estados de sono REM tenham se desenvolvido há mais de 450 anos, o que faz desse tipo de sono um fenômeno biológico fortemente enraizado.
“Nós compartilhamos a espinha dorsal e muito mais do que isso”, afirma o coautor do estudo Philippe Mourrain, neurocientista da Universidade de Stanford. “Fica mais fácil compreender o sono e o que acontece com os humanos durante esse processo”.
Outros especialistas afirmam que os métodos utilizados pelos autores estabelecem um novo padrão para o estudo do sono, Joiner chamou o estudo de “façanha tecnológica”. Contudo, nem todos estão convencidos de que o estudo de fato elucide a evolução do sono.
“Eu tenho as minhas dúvidas sobre supor a existência de uma linhagem direta de peixes para camundongos, pássaros, répteis e humanos”, diz Paul Franken, neurocientista da Universidade de Lausanne na Suíça, que estuda o sono em camundongos.
Adormecendo com os peixes
Os cientistas já sabiam que os peixes-zebra era capazes de adormecer simplesmente por observarem esse comportamento. Mas a norma de ouro do estudo do sono é se basear na fisiologia, diz Franken.
O autor do estudo, Louis C. Leung, neurocientista da Universidade de Stanford, desenvolveu o microscópio responsável pela geração das imagens complexas utilizadas no estudo. Grande parte da atividade corporal é coreografada por uma rede sofisticada de células nervosas ou neurônios. Quando os neurônios ficam ativos, os níveis de cálcio aumentam, então os pesquisadores submeteram os peixes-zebra à engenharia genética e adicionaram uma proteína que reluz na cor verde-florescente ao detectar cálcio, indicando que uma área do corpo está ativa.
Em seguida, começou o trabalho de fato. A equipe concentrou-se em peixes-zebra de duas semanas de idade, pois os peixes são transparentes nessa fase, permitindo, assim, que os cientistas observassem o cérebro e outras atividades corporais internas sem a necessidade de fazer uma incisão no animal ou implantar eletrodos, conta Leung.
Eles imobilizaram os pequenos peixes mergulhando-os em uma substância parecida com gelatina sob o microscópio e começaram a observar os principais componentes fisiológicos: atividade cerebral, ritmo cardíaco, atividade muscular e movimento ocular.
Quase que imediatamente, padrões de neurônios ativos e não ativos começaram a aparecer, revelando uma “assinatura” de atividade semelhante aos ciclos do sono REM e não REM.
“Fiquei até sem fôlego”, conta Leung.
Para confirmar se os padrões de atividade eram de fato sono, os pesquisadores impediram que os peixes “tirassem sonecas”, deixando-os com bastante sono. Ao realizar testes nos peixes privados de sono, encontraram os mesmos padrões neurais, porém em maior número. Além disso, quando os peixes estavam em um estado semelhante ao não REM, suas batidas cardíacas foram reduzidas pela metade e os músculos corporais relaxaram.
Em comparação aos estados de sono, o cérebro acordado dos peixes-zebra era bastante ruidoso, com neurônios reluzindo de forma caótica, segundo Leung.
Um antepassado comum adormecido
Para diversos organismos, fatores ambientais como a temperatura influenciam a duração e intensidade do sono — os humanos dormem por mais tempo em temperaturas mais frias, por exemplo. Os mamíferos precisam realizar uma termorregulação que ajusta a temperatura corporal de forma a manter o aquecimento ou esfriar, e a termorregulação há muito tempo é associada ao sono. Contudo, devido ao estado de sono dos peixes-zebra ser semelhante ao nosso, sugere-se que esse tipo de sono já existia antes do surgimento da termorregulação, de acordo com a equipe.
No entanto, é difícil associar os resultados desse estudo aos mamíferos, pois o período evolucionário entre eles e os peixes é muito extenso, diz Jerry Siegel, cientista do sono da Universidade da Califórnia em Los Angeles. O sono é praticamente onipresente dentre os animais, ele reconhece, mas pode apresentar grande variação nos mamíferos.
“Não se pode afirmar que sono é simplesmente sono”, explica ele. A quantidade de sono necessária para os mamíferos varia de três a 20 horas por dia. O sono REM pode nem existir, como ocorre em diversos cetáceos, ou pode constituir uma grande parte do sono, com duração de até oito horas em mamíferos como o ornitorrinco.
Além disso, as características do sono foram encontradas em peixes bastante jovens, diz Siegel, sendo que esses resultados não necessariamente se aplicam aos adultos. No reino animal, os mais jovens dormem de forma diferente dos pais.
O futuro do sono?
Outros especialistas estão mais otimistas, principalmente em relação às técnicas aplicadas no estudo. As características neurais “não precisavam estar presentes nos peixes, mas as encontramos”, diz Paul Shaw, cientista do sono da Universidade de Washington em Saint Louis que não participou do estudo. “Eu acho isso surpreendente e muito legal!”
Shaw e outros elogiam especificamente a geração de imagens detalhadas, utilizadas para observar o sono em tal dimensão.
“Ver é crer, e é disso que gosto nessa tecnologia”, diz Shaw. “Não é necessário deduzir o sono [neste estudo]”.
Esse avanço pode ser particularmente valioso para profissionais da saúde que buscam o desenvolvimento de novos medicamentos para combater a crescente epidemia de privação de sono que ocorre em vários países. Medicamentos mais eficazes que melhoram a qualidade do sono podem trazer algum alívio às pessoas com dificuldades para dormir. Ao implementar essas técnicas no futuro, será possível examinar os medicamentos e observar se eles ativam as células certas, para que os pacientes acordem se sentindo renovados.
“O fato de conseguir visualizar os neurônios individualmente em um animal vivo e observar a forma como ele responde a diferentes medicamentos é algo incrível”, diz Franken. “Esse é um grande avanço”.