Estes peixes sobrevivem meses sem água, mas podem desaparecer

Peixes-anuais vivem em áreas úmidas temporárias e seus ovos ficam embaixo da terra esperando a próxima chuva. No entanto, eles são parte da família de peixes continentais mais ameaçada do Brasil.

Por Miguel Vilela
fotos de Gustavo Fonseca
Publicado 24 de out. de 2019, 08:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
peixes-anuais-das-nuvens-animais-em-extincao
Peixe-anual da espécie "Austrolebias bagual", que só ocorre no município de Encruzilhada do Sul (RS). Com 125 espécies na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção, os peixes-anuais são o grupo de peixes continentais mais ameaçado do Brasil.
Foto de Gustavo Fonseca

Um pequeno milagre parece ocorrer com a chegada das chuvas em certos lugares da América Latina e da África. Peixes coloridos e com poucos centímetros de comprimento começam a aparecer em poças recém-alagadas e sem nenhuma conexão com outros cursos d'água – como se tivessem caído do céu. Mas, apesar de serem popularmente conhecidos como peixes-das-nuvens, esses bichos surgem da terra.

Também chamados de anuais, os ovos da maioria dos peixes das famílias Rivulidae – nas Américas – e Nothobranchiidae – na África – passam meses embaixo da terra seca em diapausa. Quando a chuva cai e forma poças, eles eclodem e povoam os miniecossistemas temporários. Poucos dias depois, já sexualmente ativos, geram ovos e recomeçam esse curioso, e rápido, ciclo de vida.

Os Rivulidae ocorrem desde o sul da Flórida até a Argentina e estão distribuídos em mais de 350 espécies. No Brasil, esses peixes, também chamados de rivulídeos, ocorrem em todas as regiões e biomas. No entanto, apesar de resistirem por meses a situações precárias e inimagináveis para animais que precisam da água para respirar, muitos dos rivulídeos correm graves riscos de extinção. Das 310 espécies de peixes continentais na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção divulgada em 2014 pelo Ministério do Meio Ambiente, 125 são peixes-anuais. Dessas, 60 estão classificadas como em perigo crítico, 24 em perigo e 41 vulneráveis.

[Veja também: Mais degradado que Cerrado e Amazônia, Pampa é o bioma menos protegido do país]

Matheus Volcan analisa a rede de mão, chamada de puçá, em busca de peixes-anuais na Estação Ecológica do Taim (RS). O processo de pesquisa é sistemático: em cada poça, faz-se uma série de lances de puça de um metro de comprimento.
Foto de Gustavo Fonseca

A maior pressão é a perda de habitat. Muitos peixes-anuais vivem em poças d'água em campos alagáveis, um tipo de vegetação cuja importância para a biodiversidade raramente é considerada. Brejos, várzeas e lagos temporários são transformados sem pudor em campos para atividades agropastoris, lavouras e outros empreendimentos, tanto urbanos quanto rurais. Como cada espécie costuma ocorrer em pequenas áreas, a abertura de apenas um pasto pode significar o fim de uma espécie. O fato de aparecem somente durante a temporada de chuvas também é um problema. Se um licenciador ambiental for chamado para avaliar um novo empreendimento durante a estiagem e não conhecer o ciclo de vida dos peixes-anuais, ele pode nem perceber que ali ocorrem espécies ameaçadas de extinção.

"Ele vai vir e dizer 'não tem nada de peixe, não tem nenhuma espécie ameaçada de extinção nesta área aqui, então pode aterrar tudo, construir seu loteamento, fazer seu cultivo", diz Matheus Volcan em entrevista a National Geographic Brasil. Volcan é pesquisador e coordenador do Instituto Pró-Pampa, uma ONG que trabalha principalmente na conservação da biodiversidade do Pampa, o menos protegido dos biomas brasileiros quando se considera porcentagem de áreas destinadas a unidades de conservação.

Ciência pela conservação

Desde 2011, Volcan e o Pró-Pampa desenvolvem projetos de pesquisa na região sul do Brasil. Uma das iniciativas – cujos registros fotográficos ilustram esta reportagem –  é o Projeto Peixes Anuais do Pampa. Nos últimos anos, com apoio da Fundação Boticário, os pesquisadores resolveram mapear uma região propícia para a ocorrência de peixes-anuais, mas onde apenas duas espécies tinham sido catalogadas – a Estação Ecológica (Esec) do Taim. Administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a Esec fica no extremo sul do Rio Grande do Sul, espremida entre o Oceano Atlântico e a Lagoa Mirim, e é repleta de áreas úmidas, tanto permanentes quanto temporárias.

mais populares

    veja mais
    O pesquisador Matheus Volcan segura um "Austrolebias charrua" encontrado na Estação Ecológica do Taim. O bichino deve ser levado ao laboratório para análises morfológicas e moleculares a fim de determinar sua espécie.
    Foto de Gustavo Fonseca

    Depois de "fazer um chimarrão para esquentar, já que as amostragens são feitas durante o frio do inverno", Volcan e sua equipe – composta pelo ecólogo Luis Esteban Krause Lanés e o fotógrafo Gustavo Fonseca – percorrem de carro, a pé e a cavalo as estradas da reserva em busca do habitat dos rivulídeos: as poças d'água conhecidas pelos gaúchos por charcos. Em seguida, lançam sistematicamente uma rede de mão conhecida como puça. "Utilizamos uma metodologia padronizada – fazemos 25 lances de puça, cada lance com cerca de um metro de comprimento", diz Volcan.

    Neste ano, o trabalho rendeu a catalogação de quatro espécies, das quais três eram desconhecidas no Taim. Dessas, duas estão em risco de extinção e uma havia sido registrada apenas no Uruguai. A descrição taxonômica dos peixes-anuais em si já é um enorme esforço de conservação – conhecer é o primeiro passo para preservar. Mas as décadas que passaram despercebidos pela ciência – as primeiras pesquisas relevantes sobre os peixes-anuais aparecem na década de 1970, sob a tutela do professor pioneiro Wilson Costa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – podem ter tido um impacto significativo nas populações de rivulídeos. "Estudos estimam que só o Rio Grande do Sul já perdeu 90% de suas áreas úmidas", diz Volcan, "imagina quantas espécies foram extintas e nós nem conhecemos."

    Por isso, o esforço de conservação também passa por alertar os órgãos ambientais para que fiscalizem o ecossistema onde espécies em extinção ocorrem. Em um caso relatado por Volcan, o proprietário de uma área no município Casimiro de Abreu (RJ) decidiu aterrar um brejo conhecido por abrigar três espécies de rivulídeos, uma delas endêmica, ou seja, só ocorria ali. Aquaristas que souberam da situação alertaram o Instituto Pró-Pampa que, por sua vez, acionou uma unidade do ICMBio na região. Os pesquisadores correram ao local e conseguiram capturar alguns peixes em um pequeno trecho de brejo restante. Os animais foram levados para o zoológico de Belo Horizonte enquanto os fiscais ambientais tentam recuperar a área afetada.

    Peixe-anual da espécie Cynopoecilus melanotaenia. O colorido dos peixes-anuais e a facilidade de se transportar ovos faz desses peixes uma das famílias mais visadas por aquaristas do mundo inteiro.
    Foto de Gustavo Fonseca

    Apesar de participarem de uma atividade polêmica e potencialmente predatória, os aquaristas têm sido um aliado importante na conservação dos peixes-anuais. As inúmeras diferenças de cor entre espécies e a facilidade de se comercializar os ovos em diapausa, provocam um efeito semelhante ao jogo "Pokemon Go" entre admiradores da espécie. Colecionadores do mundo inteiro compartilham suas raras aquisições em fóruns enquanto sites vendem ovos de peixes-anuais principalmente encontrados na África e na América do Sul. No maior deles, visitado no dia 23/10, um sistema de leilão oferecia pelo menos 139 espécies diferentes para à venda, incluindo 18 que constam na lista de animais em risco de extinção no Brasil. 

    Os mais assíduos organizam expedições em busca de novas espécies. Quando encontram um peixe cuja coloração não conheciam, muitas vezes enviam o espécime para um taxonomista para que ele a descreva. Segundo Matheus Volcan, muitas espécies de rivulídeos brasileiros foram descritas com animais coletados por aquaristas.

    Mas a prática carrega uma série de problemas, inclusive legais. No Brasil, capturar e manter espécies da fauna silvestre sem a autorização dos órgãos responsáveis é crime ambiental sujeito a detenção de até um ano. E mais, enviar ovos de peixes da fauna brasileira para o exterior configura contrabando. No início de outubro, a Polícia Federal deflagrou uma operação para combater esse tipo de crime. Depois de interceptar envelopes com ovos de rivulídeos destinados a sete países da Europa além de China, Malásia, Estados Unidos, Equador e Argentina, a polícia encontrou "diversos aquários nas residências de alguns envolvidos, contendo centenas de peixes; além de ovos acondicionados para futura remessa." Dentre os destinatários, a suspeita recai em colecionadores e pesquisadores de peixes-anuais.

    Os biólogos Matheus Volcan e Luis Esteban Lanés rondam a Estação Ecológica do Taim, que fica espremida entre a Lagoa Mirim e o Oceano Atlântico, no Rio Grande do Sul. Em busca dos pequenos peixes-anuais, eles percorrem a área a pé, de carro e a cavalo, de olho em poças onde os animais costumam ocorrer.
    Foto de Gustavo Fonseca

    A ilegalidade que ronda o aquarismo acaba por dificultar a colaboração entre colecionadores bem-intencionados e órgãos oficiais. "Os aquaristas sempre entram em contato conosco. Desde o primeiro ciclo eles querem se envolver. Mas é uma questão delicada", disse Izabel Boock de Garcia, analista ambiental do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Aquática Continental (Cepta), ligado ao ICMBio, em entrevista a National Geographic Brasil.

    Orgãos pela conservação

    Garcia coordena o Plano de Ação Nacional (PAN) Peixes Rivulídeos, cuja primeira fase teve início em 2012 e fim em 2018. Ela reconhece a ajuda dos aquaristas e diz que o centro ainda analisa como eles poderão participar da segunda fase do PAN, que deve começar em 2020.

    Instado pelo ICMBio a promover ações para preservação da biodiversidade brasileira, o Cepta percebeu que a família de rivulídeos merecia uma atenção especial. Para Garcia, a invisibilidade dos rivulídeos era, ao mesmo tempo, o maior desafio e a maior oportunidade na elaboração das ações. "[Os peixes-anuais] eram muito pouco conhecidos, o grupo de pesquisadores que trabalhava com os rivulídeos era bem restrito e a gente percebia essa dificuldade em criar ações de preservação para uma família de peixes tão desconhecida", diz ela.

    A maioria dos peixes-anuais apresentam dimorfismo sexual. Para atrair as fêmeas, os machos são mais coloridos.
    Foto de Gustavo Fonseca

    Ao final do plano de ação, o maior progresso, segundo Garcia, foi revelar à sociedade, principalmente aos órgãos ambientais, a existência desses animais com características tão peculiares. "Hoje se tem um olhar para os peixes-anuais ao se fazer levantamento de ictiofauna para obras que às vezes as pessoas não tinham ideia que podiam afetar os peixes rivulídeos", diz ela. "Estradas, linhas de transmissão e portos eram obras que não necessariamente consideravam que a ictiofauna poderia ser afetada. Agora, os órgãos têm essa noção, pedem para fazer levantamento de rivulídeos e sempre entram em contato para que possamos auxiliar em pareceres sobre o que fazer."

    Garcia e sua equipe estão animadas com a próxima fase. Afinal, o Cepta deve contar com um aporte do Fundo Mundial para o Ambiente (GEF, na sigla em inglês), que tem destinado recursos para animais listados como criticamente em perigo no mundo inteiro. Parte significativa do dinheiro deve ser destinada à criação de novas unidades de conservação. E pelo tamanho reduzido dos habitats, a tarefa não deve ser tão complicada. Como o âmbito de ocorrência de muitas espécies de peixes-anuais é composta de pequenas poças, instituir áreas de proteção a nível municipal pode significar a salvação de uma espécie. No fim das contas, o tamanho reduzido do habitat que levou tantas espécies à beira da extinção pode facilitar a conservação dos peixes-anuais.

    "Apesar das dificuldades que temos, estamos muito esperançosos", completa Garcia. "Percebemos que este é o momento para esse grupo de peixes". Que ela esteja certa. 

    Sol se põe na Estação Ecológica do Taim (RS) enquanto pesquisadores buscam peixes-anuais em áreas alagadas. O Rio Grande do Sul é o único estado brasileiro onde o bioma Pampa ocorre. Se consideradas as áreas protegidas, o Pampa, que tem a menor porcentagem de terra em unidades de conservação, é o bioma mais ameaçado do Brasil.
    Foto de Gustavo Fonseca

    mais populares

      veja mais
      loading

      Descubra Nat Geo

      • Animais
      • Meio ambiente
      • História
      • Ciência
      • Viagem
      • Fotografia
      • Espaço
      • Vídeo

      Sobre nós

      Inscrição

      • Assine a newsletter
      • Disney+

      Siga-nos

      Copyright © 1996-2015 National Geographic Society. Copyright © 2015-2024 National Geographic Partners, LLC. Todos os direitos reservados