Tatu-bola luta pela sobrevivência em região esquecida entre o Piauí e o Ceará

Expedição para entender melhor o animal ameaçado de extinção percorreu o Cânion do Rio Poti, uma área isolada no norte da Caatinga.

Por João Paulo Vicente
Publicado 25 de out. de 2019, 11:02 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Pressionado pela perda de habitat e caça predatória, o tatu-bola-da-caatinga está em perigo de extinção na categoria vulnerável. O nome vem do formato que ele assume ao se sentir ameaçado.
Foto de Gustavo Fonseca, Rastro

O tatu-bola-da-caatinga é um bichinho simpático. Tão simpático que virou símbolo da Copa do Mundo no Brasil em 2014, sob a alcunha de Fuleco. Mas nem deu tempo de curtir a fama. Ainda pouco estudada, a espécie está ameaçada de extinção. E é para mudar esse cenário que a Associação Caatinga organizou, no final de agosto, uma expedição ao Cânion do Rio Poti.

Foi a segunda viagem feita por um grupo de pesquisadores à região, um trecho de 180 km em que o Rio Poti corre espremido entre paredões de pedra. A área fica entre o Ceará e o Piauí e 10% do trajeto é uma zona de litígio, ou seja, não há uma definição clara sobre a qual estado essa terra faz parte. Isolado e de difícil acesso, o cânion é um dos pontos mais ao norte da Caatinga e por conta disso é fundamental para a preservação do tatu-bola.

“Nós fazemos esse trabalho porque lá é o pico da distribuição, o ponto mais ao norte que tem da espécie, além de ser uma área de Caatinga preservada extremamente importante”, conta Flávia Miranda, coordenador do Programa de Conservação do Tatu-Bola da Associação Caatinga.

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Em meio a uma paisagem árida onde a água é um bem valioso, o Cânion do Rio Poti oferece vistas deslumbrantes e um refresco para o calor e a seca.
Foto de Gustavo Fonseca, Rastro
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Além de ajudar no alojamento e na alimentação, a habilidade tradicional de caçar tatus com cachorros também contribuem para o trabalho dos pesquisadores.
Foto de Gustavo Fonseca, Rastro

Miranda explica que a Caatinga é o bioma semiárido mais rico do mundo do ponto de vista biológico e é exclusiva do Brasil. A região sofre com a seca, o que ressalta a importância do Poti. Ao contrário da maioria dos rios próximos, que são intermitentes, o Poti é perene, nunca seca. Essa característica faz com que as águas cristalinas do rio se tornem um reservatório importante de água para a fauna da região, assim como para as comunidades tradicionais ribeirinhas que mora em seu entorno. Ao que tudo indica, é um processo que se mantém há milhares de anos – as paredes do Cânion são recheadas de desenhos rupestres.

“É um dos maiores sítios de gravuras rupestres do mundo”, diz Rubens Luna, gerente do Centro de Educação Ambiental da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí. Cientista social de formação, Luna estuda a bacia hidrográfica do Poti desde meados dos anos 1990. Ao longo desse período, ele tem trabalhado pela criação de um mosaico de unidades de conservação que permitiriam proteger toda a região.

Uma pedra fundamental para alcançar esse objetivo foi a criação, em 2017, do Parque Estadual do Cânion do Rio Poti, uma área de 24 mil hectares no lado piauiense do Cânion. Além de ajudar na preservação da biodiversidade local, o parque também protege “as potencialidades arqueológicas e paleontológicas” da área, segundo Luna.

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    Diferente do mataco – o tatu-bola que ocorre no sul do Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina –, o tatu-bola-da-caatinga é genuinamente brasileiro, mas está ameaçado de extinção. A criação do Parque Estadual do Cânion do Rio Poti em 2017 pode ajudar a proteger a espécie.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro
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    O esforço para conservar espécies emblemáticas como o tatu-bola acaba por favorecer a proteção de toda a biodiversidade.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro

    E o tatu-bola-da-caatinga foi fundamental para que isso ocorresse. “A gente está usando o tatu-bola como o verdadeiro conceito de espécie guarda-chuva, uma espécie usada como símbolo para proteger outras espécies”, explica Flávia Miranda. “Preservar este cânion é extremamente importante para um bioma tão seco, tão rico, e o tatu-bola chancela a importância do parque.”

    Onde se esconde o tatu

    Há duas espécies de tatu-bola. O Tolypeutes matacus é encontrado no Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina, principalmente na região do Pantanal – em espanhol, é conhecido como mataco. O tatu-bola-da-caatinga (Tolypeutes tricinctus), por outro lado, é endêmico do Brasil e corre risco mais grave de extinção. Hoje, está classificada como vulnerável na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza.

    “O que acontece é que 45% da cobertura vegetal da região onde ele é encontrado foi perdida”, conta Miranda. Além da perda do habitat, outros fatores contribuem para o risco de extinção da espécie. O tatu-bola-da-caatinga é dotado de uma carapaça dura, e se enrola em uma bola protegida ao sinal do perigo. É um arranjo capaz de defendê-lo de predadores. No entanto, torna-o caça fácil para humanos. Em uma região onde a disponibilidade de alimentos é baixa, o tatu-bola-da-caatinga é uma fonte de proteína acessível.

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    Ribeirinhos que ajudaram a equipe de pesquisa durante a expedição seguram um tatu-bola recém-capturado. O animal terá o sangue coletado e as medidas tiradas para se analisar a saúde das populações na região.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro
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    Ao ser encontrado, o espécime de tatu-bola tem o sangue coletado e as medidas tomadas. O objetivo da pesquisa é avaliar a saúde da população de tatus.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro

    Além disso, mudanças climáticas, barragens criadas para exploração de recursos hídricos e mineração ilegal já afetam áreas como o Cânion do Rio Poti, essenciais para a preservação da espécie. Nesse contexto, expedições como a promovida pela Associação Caatinga são importantes para compreender melhor o animal e chamar atenção para a importância de protegê-lo.

    “Nós coletamos dados biológicos, sangue, principalmente material genético, além de analisar a área de captura para entender o mapeamento da distribuição da espécie na região”, diz Miranda. A viagem também compreendia um registro da fauna ao redor do Cânion, local de biodiversidade rica onde é possível encontrar mamíferos como mocós, onças pardas, tamanduá-mirim, cangambá e uma vasta gama de aves, anfíbios e peixes.

    Para completar, Luna também participou da expedição para dar continuidade ao trabalho de caracterização socioeconômica e arqueológica que faz há décadas. Na verdade, as comunidades do cânion são essenciais para estudar o tatu: são os caçadores locais os responsáveis por encontrar os espécimes dos animais.

    Eles fazem isso com a ajuda de cachorros soltos na Caatinga durante a noite. Enquanto os humanos andam às cegas, a cachorrada modula latidos variados, espécies de sinais cujos moradores locais interpretam para saber se um rastro ou tatu foi encontrado, ou se os bichos deram de cara com outra espécie, explica Gustavo Fonseca, fotógrafo colaborador da National Geographic que acompanhou a viagem.

    Com a área de pesquisa é remota, os pesquisadores contam com o apoio das comunidades tradicionais ...
    Com a área de pesquisa é remota, os pesquisadores contam com o apoio das comunidades tradicionais ribeirinhas.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro
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    Equipe de pesquisadores almoça na casa de uma família.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro

    A própria aproximação com a comunidade é uma estratégia para preservar o tatu. Ao oferecer outras maneiras de ganhar dinheiro com o animal, como o turismo, há um incentivo para reduzir a caça. Da mesma forma, os pesquisadores aproveitam a oportunidade para fazer atividades de educação ambiental, principalmente com crianças e jovens.

    Rubens Luna ressalta, no entanto, que mesmo que as comunidades tradicionais cacem os tatus, fazem isso em um volume manejável do ponto de vista da preservação. “É uma situação delicada, mas eles têm uma relação mais harmoniosa com a questão da caça. O caçador ribeirinho não captura a fêmea, por exemplo”, diz. “O impacto maior sobre a população desses animais vem de caçadores externos, que tanto matam para tanto si quanto para venda e levam um estoque grande.”

    De qualquer forma, acompanhar o trabalho foi uma espécie de redenção para Gustavo Fonseca. Nascido em Canguçu, no interior do Rio Grande do Sul, o fotógrafo conta que caçar era uma tradição cultural na sua família, uma espécie de rito de crescimento, pelo qual todos as crianças precisam passar.

    Ele lembra, por exemplo, de acordar aos seis anos de idade e dar de cara com um tatu mataco morto – seu pai havia deixado a carcaça na porta do quarto. “Seria crucificado hoje, mas ali começava um processo de descoberta: puxa a língua para fora, mexe, tira, vê. De certa forma, uma educação ambiental também”, diz ele. “Então foi como voltar ao ambiente, àquele culto da caça com outra perspectiva, a da conservação, de valorizar a espécie. Para mim, é como se tivesse me redimido.”

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    Com equipamentos carregados em uma caminhonete, pesquisadores montam um laboratório móvel para avaliar os tatus capturados.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro
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    O fotógrafo Gustavo Fonseca segura um tatu-bola capturado para avaliação. Fonseca conta que caçar era uma tradição cultural na sua família, uma espécie de rito de crescimento, pelo qual todos as crianças precisam passar. Agora, ajudando na conservação de espécies ameaçadas, ele se sente redimido.
    Foto de Gustavo Fonseca, Rastro

    Isolado no meio da Caatinga, por enquanto o Cânion do Rio Poti mantém uma beleza única. E também um mundo de mistérios. Nas mais de duas décadas de trabalho na região, Rubens Luna acumulou lendas que ouviu por ali – pretende escrever um livro sobre elas um dia.

    Para ele, uma das mais bonitas é sobre o monstro do rio. No final da década de 1960, mulheres que iam até o Poti lavar roupas começaram a ouvir estrondos na água, movimentos estranhos e vultos. Algo muito grande escondia-se ali. O burburinho foi tamanho, que uma guarnição do exército estacionado em Crateús, no Ceará, foi deslocada para achar o bicho.

    Os homens ficaram de campana na beira do Poti por “15 dias, um mês”, diz Luna. Mas não acharam nada. “Mas isso remete a outra questão. Há poços muito profundos, dizem que há alguns com 60 m de profundidade e os pescadores falam sobre cavernas submersas sem fim. Pode haver uma espécie extinta vivendo dentro das cavernas, resquício de um período imemorial. Quem sabe, pode haver”, diz ele. “É uma lenda bonita que remete a toda a aura mística que percorre a região.”

    Agora, o esforço é para garantir que um dia o tatu-bola-da-caatinga também não vire apenas uma lenda.

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