Mudança dos tempos: indústria de bile de urso está desaparecendo do Vietnã

Antes considerada um medicamento essencial, a bile de ursos criados em cativeiro é extraída por produtores rurais há décadas. Agora, as fazendas estão fechando — e os consumidores, em sua maioria, abandonando o uso da substância.

Por Rachel Fobar
Publicado 26 de nov. de 2021, 07:00 BRT
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Com o fechamento das fazendas de bile de urso no Vietnã, muitos consumidores do produto para uso na medicina tradicional afirmam estar “indiferentes” à manutenção da oferta do produto, de acordo com novo estudo.

Foto de Mark Leong, Nat Geo Image Collection

Com o fechamento das fazendas de bile de urso por todo o Vietnã, consumidores afirmam estar “indiferentes” à manutenção da oferta da substância na medicina tradicional, de acordo com novo estudo publicado no periódico Conservation and Society.

No Vietnã, era tradição extrair bile da vesícula biliar de ursos selvagens. A prática de criar ursos-negros-asiáticos e ursos-malaios — ambos considerados vulneráveis à extinção — começou na década de 1990 para atender a uma crescente demanda por bile. Utilizada no tratamento de males como resfriados e hematomas, a bile de urso contém ácido ursodesoxicólico, que é clinicamente comprovado no auxílio a dissolução de cálculos biliares e no tratamento de doenças hepáticas.

Os ursos são criados ou caçados ilegalmente para obtenção de sua bile no Laos, entre outros países. Com base nos resultados de um estudo conduzido no Vietnã, Brian Crudge, seu coautor, afirma que o potencial para reduzir a demanda por bile deve ser considerado em uma extensão mais ampla.

Foto de Free The Bears

Nas fazendas de bile de ursos, negligência, doenças, espaços pequenos e condições desumanas são comuns, de acordo com a Animals Asia, organização sem fins lucrativos. A bile é drenada por meio de cateteres ou agulhas inseridas na vesícula biliar dos animais, um procedimento doloroso por vezes repetido diariamente. Os próprios consumidores correm o risco de ingerir bile contaminada de ursos doentes.

Em 2005, o Vietnã proibiu a venda e extração de bile de urso e, desde então, o governo anunciou sua intenção de fechar fazendas de ursos até 2025. Apesar da proibição, os produtores foram autorizados a manter seus ursos, desde que possuíssem microchips e houvessem sido registrados antes de 2005. Uma década e meia após a proibição entrar em vigor, mais de 300 ursos ainda são propriedade privada em mais de uma centena de fazendas. Mais de 150 dos animais são mantidos em Hanói, capital do Vietnã.

Alguns produtores mataram de fome ou abateram seus ursos porque sua manutenção era muito cara, de acordo com o grupo de bem-estar animal Free the Bears. Outros mantêm seus ursos para abastecer ilegalmente o mercado de bile, afirma Barbara van Genne, chefe de resgate de animais silvestres e de defesa da Four Paws, organização internacional sem fins lucrativos. No passado, a falta de fiscalização pelo Departamento de Proteção Florestal do Vietnã permitiu que a bile de urso permanecesse disponível para venda, conta ela. Os produtores também podem estar apegados aos seus ursos.

O Departamento de Proteção Florestal não respondeu aos pedidos de comentários.

A bile de fazendas está ficando escassa no Vietnã. Oficiais do governo têm verificado se há ursos não registrados em fazendas, a redução na demanda baixou o preço da bile extraída nesses locais e muitos ursos desses criadouros morreram por negligência ou saúde precária.

Os ursos são criados ou caçados ilegalmente para obtenção de sua bile em outros países também, incluindo MianmarLaos Coreia do Sul. A China é de longe o maior mercado legalizado, abastecido por milhares de ursos de fazendas, segundo a Animals Asia. Em março de 2020, o governo chinês promoveu o uso de uma injeção contendo bile de urso como tratamento para casos graves de covid-19 (o governo chinês não respondeu aos pedidos de comentários no ano passado).

Pesquisa com consumidores vietnamitas

Os autores do novo estudo entrevistaram mais de 2,4 mil participantes em sete regiões do Vietnã. Cerca de 31% afirmaram já ter consumido bile de urso durante sua vida. Os usos mais comumente relatados foram para hematomas, dores nas articulações, dores de estômago e problemas pós-parto. Álcool de bile de urso algumas vezes é bebido socialmente. Menos de 1% dos usuários — apenas 22 indivíduos — relataram ter consumido bile de urso selvagem durante o ano anterior.

A baixa taxa de uso tem forte relação com a falta de interesse, afirma Brian Crudge, coautor do estudo, ecologista e diretor regional da Free the Bears. Quando questionados sobre o que fariam após o fechamento das fazendas de ursos no Vietnã, muitos participantes pareceram despreocupados: “não vou mais usar bile de urso” e “já não uso muita bile mesmo” foram algumas das respostas dos entrevistados. Essa tendência condiz com os fechamentos recentes de fazendas em todo o país. De acordo com a Four Paws, 34 dentre as 58 províncias anunciaram que não têm fazendas de ursos.

Quando questionados sobre o que fariam após o fechamento das fazendas de bile de urso, alguns entrevistados do estudo responderam: “não vou mais usar bile de urso” e “já não uso muita bile mesmo”.

Crudge se perguntou o que os consumidores fariam “quando não houvesse mais bile de urso de fazendas disponível”. Ele temia que as pessoas recorressem à bile de ursos-negros-asiáticos ou de ursos-malaios, provocando um aumento da caça ilegal. Ao que tudo indica, não foi o que ocorreu, e um dos motivos foi a drástica redução das populações selvagens devido à perda de habitat e caça ilegal nas últimas décadas — e porque a demanda por bile parece estar diminuindo.

A bile de ursos selvagens tornou-se “cada vez mais um nicho restrito de mercado”. Apenas participantes da província central de Nghe An relataram utilizá-la no ano passado. A queda na popularidade da bile de ursos selvagens foi uma surpresa, afirma Crudge, pois os consumidores vietnamitas demonstraram uma forte preferência por ela no passado.

Alternativas sintéticas e naturais

Muitos entrevistados disseram acreditar na eficácia da bile de urso, mas também indicaram “forte preferência” pela bile sintética, que é produzida desde a década de 1950.

“Considerando o longo tempo que esses ursos sofreram em fazendas de bile, seu uso poderia ter acabado há muito tempo, sobretudo diante da indiferença das pessoas com a substância”, observa Crudge. “É um motivo a menos para manter os ursos nas fazendas, já que as pessoas estão dispostas a utilizar alternativas.”

Por mais de uma década, Tuan Bendixsen, diretor da Animals Asia no Vietnã, tem liderado uma campanha para promover tratamentos com ervas em vez de bile de urso. Bendixsen, que não participou do novo estudo, revela que foi bastante reconfortante saber que 15,7% dos entrevistados relataram utilizar uma alternativa vegetal denominada cỏ mậtgấu, ou “planta de bile de urso”, para o tratamento de hematomas e inflamações. A Animals Asia foi informada desse substituto pela Associação de Medicina Tradicional do Vietnã, que prometeu que seus médicos interromperiam as prescrições de bile de urso em 2020.

A equipe de Bendixsen compilou e divulgou um livro que apresenta alternativas à bile de urso (incluindo canela, cardo da espécie Cirsium japonicum e ruibarbo) para o tratamento de males como resfriados, gripes e dores nas articulações. Foram abertas clínicas de saúde gratuitas e plantados jardins de ervas.

O estudo conduzido pela equipe de Crudge “nos encorajou ao indicar que estamos no caminho certo”, conta ele. “Nosso trabalho começa a render bons frutos.”

Diante dos resultados no Vietnã, onde a bile de urso “antes era considerada um remédio essencial nas residências”, afirma Crudge, o potencial para reduzir a demanda por bile deve ser considerado em outros países. As pessoas na China estariam dispostas a aceitar substitutos? “Acredito que há potencial para expandir a pesquisa e verificar”, prossegue ele.

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