Nascem 20 dentes novos por dia nesse peixe feroz
O ling, que se alimenta de diversas presas, troca os dentes muito antes do que esperado — e pode não ser a única espécie a fazer isso.
Ling no distrito de East Bay Regional Park na cidade de Alameda, na Califórnia. Em média, podem nascer surpreendentes 20 dentes novos por dia nesses peixes.
O ling é um peixe onívoro mal-humorado com uma boca semelhante a uma gaveta de talheres bagunçada, com mais de 500 dentes dispostos desorganizadamente em dois conjuntos de mandíbulas bastante móveis. Uma nova pesquisa, publicada em outubro na revista científica Proceedings of the Royal Society B, revela que o ling ganha e perde uma média de 20 dentes por dia.
Se os humanos tivessem o mesmo tipo de dentição, trocaríamos um dente por dia. “De certa forma, os aparelhos ortodônticos se tornariam inúteis”, brinca Adam Summers, professor de biologia da Universidade de Washington e coautor do estudo. “E escovar os dentes também.”
A taxa de substituição de dentes do ling surpreendeu pesquisadores, afirma Karly Cohen, coautora do estudo, doutoranda da Universidade de Washington que estuda a biomecânica da alimentação.
“A pesquisa existente sobre substituição de dentes se baseia em espécies incomuns”, explica Cohen, como o peixe abissal da ordem dos Lophiiformes, que apresenta dentes na testa, ou a piranha, que pode perder um quarto de seus dentes por vez. “Mas a maioria dos peixes possui dentes como o ling. Então é provável que a maioria dos peixes esteja perdendo grandes quantidades de dentes diariamente” e substituindo-os rapidamente, assim como essa espécie, acrescenta ela.
Predador de emboscada com dentes de sobra
O ling é um peixe de pesca esportiva teimoso que alcança mais de um metro de comprimento na idade adulta, um predador de emboscada que pratica frequentemente o canibalismo. É encontrado na costa oeste da América do Norte, entre o Alasca e Baja California, no México, e é economicamente importante para os pescadores, em parte por ser “bastante apreciado em pratos culinários como o taco”, afirma Cohen.
Mas não são peixes encantadores. “Sempre brinco que eu e o ling nunca nos demos bem”, conta Emily Carr, estudante de graduação da Universidade do Sul da Flórida e autora principal do estudo. “Foi preciso prender com fita adesiva os cantos dos tanques porque sempre que passava alguém, os peixes tentavam pular para fora... nunca fui mordida, mas tenho certeza de que tentariam me morder se tivessem oportunidade.”
Caçador voraz, o ling se alimenta “de tudo o que couber em sua boca”, comenta Cohen — e que boca.
Ling sob luz fluorescente em um laboratório, oferecendo um vislumbre de seus dentes.
“O ling possui um conjunto de mandíbulas superior e inferior, assim como as nossas, porém mais móveis: podem expandir para frente e se estender”, explica ela. “Dentro da boca, o palato também é recoberto de dentes.” No fundo da garganta, logo antes do esôfago, estão as mandíbulas faríngeas, plataformas ósseas repletas de dentes feitas de arcos branquiais modificados.
Quando o ling ataca, seu primeiro conjunto de mandíbulas se projeta para frente e arrasta a presa para a boca, onde a mandíbula faríngea interna começa a esmagar e triturar o alimento. Para que essa estratégia seja bem-sucedida, o ling conta com dentes afiados como agulhas, bastante quebradiços. Mas como mantê-los afiados? Ao que parece, a estratégia é o nascimento constante de dentes novos. E muitos deles.
Dentes predeterminados
No estudo, os pesquisadores utilizaram uma sequência de corantes para criar uma linha do tempo visual do crescimento dentário dos lings.
Primeiro, 20 lings jovens foram imersos em tanques com alizarina, corante fluorescente vermelho, por 12 horas. Como a coloração vermelha da alizarina adere ao cálcio dos dentes, o resultado foi uma arcada com centenas de dentes vermelhos fluorescentes. Ao longo dos 10 dias seguintes, grupos de lings foram expostos a um segundo corante verde, a fluoresceína calceína. Os dentes existentes no primeiro dia do estudo estavam tingidos de vermelho, ao passo que os dentes que nasceram posteriormente ficaram verdes.
Carr contou e classificou meticulosamente cada dente com as cores do Natal — mais de 10 mil dentes nos 20 peixes examinados.
Após examinar os sorrisos de cada um dos 20 peixes, Carr e sua equipe constataram que os dentes de lings são predeterminados, o que significa que cada dente nasce exatamente onde permanecerá até cair, o que o distingue de outros peixes famosos como o grande-tubarão-branco, cujos dentes começam menores na parte de trás da mandíbula e avançam para frente à medida que crescem.
Os pesquisadores também identificaram pontos importantes para a troca de dentes. “A constância da troca de dentes não é determinada pelo tamanho dos dentes”, explicou Cohen. “Verificamos que há uma troca mais rápida nas áreas onde acreditamos que seja exercida uma força maior” na mastigação do ling.
Mas o que causa a troca de dentes do ling? Uma segunda condição experimental no estudo comparou peixes alimentados regularmente com outro grupo de peixes que não recebeu alimento. Os pesquisadores não encontraram nenhuma diferença significativa na taxa de troca de dentes entre os grupos, o que sugere que os dentes não nascem no ling devido a quebras — talvez seja algo semelhante aos nossos próprios dentes de leite e de adultos, que caem e nascem com base em uma programação genética.
Carr afirma ter ficado surpresa com a taxa de trocas dentárias do ling. “Existe uma noção de que o nascimento e a troca de dentes são muito dispendiosos, mas nosso estudo refuta esse conceito”, conta Carr. Por habitar as águas oceânicas ricas em cálcio, para manter os dentes afiados, a troca de dentes é nitidamente um investimento válido para o ling.
Peixes incomuns e o ling
Esse padrão de crescimento dos dentes é incomum entre os peixes atualmente pesquisados — mas provavelmente não na natureza. A arcada dentária do ling é bastante semelhante à de outros peixes ósseos, em quantidade de dentes, em diversidade e em seu formato cônico. Isso o torna um ótimo modelo para muitas espécies diferentes de uma variedade de linhagens, e o tingimento dos dentes em sequência “quantifica essa característica de maneira nítida”, afirma Marc André Meyers, professor de ciência de materiais e engenharia da Universidade de Califórnia, em San Diego, que estuda biomateriais, incluindo dentes de peixes.
Willy Bemis é professor de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Cornell e pesquisa a anatomia dos peixes, incluindo o desenvolvimento dos dentes. Bemis, que também não participou do estudo, disse que a concepção do experimento foi inovadora e ajuda a responder questões antigas sobre a troca dentária em peixes relativamente normais como o ling.
Historicamente, é difícil estimar a taxa de nascimento e perda de dentes em peixes — “por exemplo, em tubarões, os melhores dados são provenientes de estudos que coletaram e contaram dentes perdidos encontrados no fundo de tanques”, conta Bemis. E como já foram observados tubarões ingerindo seus próprios dentes caídos (talvez para recuperar seu investimento em cálcio), esses dados sempre foram um pouco duvidosos.
Isso torna o estudo sobre o ling importante, pois demonstra uma técnica que pode ser reproduzida com outras espécies, explica Bemis. Meyers acrescenta que teria interesse em conduzir um estudo semelhante com piranhas.
Os resultados sugerem que os dentes podem não ser tão insubstituíveis ou valiosos quanto se acredita. Só não conte isso para a fada dos dentes.