‘Mal posso esperar para abraçar meus filhos novamente’: O dia a dia na quarentena de Wuhan

Residentes relatam como foi o primeiro mês do surto mortal de coronavírus na China.

Por Jane Qiu
Publicado 12 de fev. de 2020, 11:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Um homem atravessa uma avenida vazia em 3 de fevereiro de 2020 em Wuhan, na China. ...
Um homem atravessa uma avenida vazia em 3 de fevereiro de 2020 em Wuhan, na China. O número de mortes causadas pelo coronavírus de Wuhan na China aumentou para mais de 1,1 mil. Foram relatados casos em outros países, como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Índia, Reino Unido, Alemanha, França e vários outros.
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PEQUIM O suor e os calafrios chegaram com o Ano Novo Lunar.

Wang Zhen assistia a programas comemorativos na televisão com sua esposa, dois filhos e seus pais na periferia de Wuhan quando perdeu o fôlego. A noite caía na vila quando se formou um nó no meio de seu peito. Ele não conseguia sentar-se reto.

“A primeira coisa que me veio à cabeça foi que não queria passar o vírus à minha família — se já não fosse tarde demais”, relata Wang, 33 anos, professor de filosofia na Universidade de Hubei.

Ele fez uma mala pequena e dirigiu sozinho, enquanto caía uma garoa fria, até seu apartamento na cidade. As principais estradas estavam bloqueadas, mas, por ter nascido em Wuhan, ele sabia como evitar os pontos de controle. Quando chegou ao apartamento, Wang se atirou no sofá e leu as últimas notícias sobre a epidemia.

Funcionários públicos em um posto de controle em frente a um hotel em Wuhan acomodando as pessoas em quarentena infectadas pelo coronavírus.
Foto de Feature China/Barcroft Media via Getty Images

No momento em que o flagelo se abateu sobre Wang em 25 de janeiro, haviam sido relatados 1,32 mil casos confirmados do novo coronavírus na China — concentrados na província de Hubei, onde se localiza Wuhan, sua capital. Nas primeiras semanas do surto, ele ouviu boatos de pessoas que haviam contraído a doença misteriosa, mas não ficou muito alarmado. As autoridades locais haviam dito, inicialmente, que o vírus era proveniente de animais silvestres, porém que não podia ser transmitido entre pessoas.

A mensagem mudou cinco dias antes de Wang adoecer, quando Zhong Nanshan, o principal pesquisador de uma equipe da Comissão Nacional de Saúde enviada a Wuhan, disse à televisão estatal chinesa que havia fortes evidências de transmissão entre pessoas. O governo impôs restrições ao transporte em toda a cidade de Wuhan, uma megacidade com população de 11 milhões de habitantes, e depois expandiu as restrições para o restante da província. Uma região com o dobro do tamanho de Portugal, com aproximadamente 60 milhões de pessoas, agora estava sob confinamento.

“A cidade ficou totalmente deserta”, afirma ele. “Havia uma atmosfera sombria. Parecia o fim do mundo.”

Em seu apartamento, o quadro clínico de Wang piorou e ele discou 120, o telefone de emergência da China. Sinal de ocupado. Ele desligou o telefone e ficou sentado no escuro sozinho, aguardando — enquanto, do lado de fora, o novo coronavírus se espalhava como fogo em palha.

O relato de Wang é semelhante ao de tantos outros na linha de frente dessa batalha contra o vírus, que contam uma história muito familiar sobre o primeiro mês de qualquer emergência de saúde global.

Até a publicação dessa reportagem, o número de pessoas mortas em decorrência do vírus na China passava de 1,1 mil, além de cerca de 45 mil casos confirmados. O coronavírus é o germe causador da doença, mas essa nova cepa atingiu muito mais pessoas em um curto espaço de tempo. Mais de 200 pessoas em dezenas de países e territórios na Ásia, Europa e América do Norte foram contaminadas com a nova infecção e ocorreram as primeiras mortes fora da China na semana passada.

Um trabalhador retira uma salamandra gigante que havia acabado de ser recapturada no Mercado de Frutos do Mar de Huanan, fechado devido à sua relação com os primeiros casos de coronavírus.
Foto de Feature China/Barcroft Media via Getty Images

Detectando os primeiros casos

Zhang Li passou a maior parte do dia 1o de janeiro nas enfermarias do Hospital de Jinyintan em Wuhan, o principal centro de doenças contagiosas da cidade, tentando freneticamente salvar pacientes gravemente enfermos de uma pneumonia incomum. Os primeiros pacientes chegaram em 29 de dezembro, mas apareceram mais no dia seguinte. Dezenas vieram em seguida. O hospital lotou em uma semana. Zhang e seu marido, ambos especialistas em doenças respiratórias em Jinyintan, juntamente com o restante da equipe do hospital, trabalham incessantemente desde então.

“É uma batalha de vida ou morte”, conta Zhang.

Ela ecoa as palavras do presidente chinês Xi Jinping, que colocou a região em pé de guerra para evitar e conter a disseminação do novo coronavírus. Na véspera do Ano Novo Lunar, 450 equipes médicas militares — com experiência no combate à SRAG ou ao Ebola — aterrissaram em Wuhan, como parte da iniciativa do Partido Comunista para salvar vidas. O presidente Xi ordenou a pronta entrega de suprimentos médicos, como máscaras de proteção, aventais e ferramentas de diagnóstico, para as áreas sob isolamento e ameaçou os oficiais que fossem negligentes no enfrentamento à crise.

Os cientistas correram para decifrar os desdobramentos da doença. Um estudo dos 425 primeiros casos graves, publicado em 29 de janeiro no periódico New England Journal of Medicine, aponta que a idade média desses doentes graves era de 59 anos. O maior estudo epidemiológico conduzido até hoje sobre o novo coronavírus também apresenta evidências nítidas da transmissão entre pessoas, afirma Benjamin Cowling, autor principal do estudo, epidemiologista da Universidade de Hong Kong.

“É evidente”, afirma Cowling, salientando, entretanto, um consolo: a equipe não testemunhou casos em menores de 15 anos de idade.

O estudo dele e outro publicado na revista médica The Lancet — ambos liderados por Gabriel Leung, diretor da faculdade de medicina da Universidade de Hong Kong — estimam que cada paciente tenha transmitido a doença a uma média de 2,2 a 2,7 outras pessoas, respectivamente. Tudo indica que a nova infecção apresenta um período de incubação entre cinco e seis dias antes da manifestação dos sintomas, com base na pesquisa de Leung e em outras análises.

O contágio ocorre principalmente por contato próximo, sobretudo por meio de gotículas espalhadas pela tosse e espirros da pessoa infectada. Em um segundo estudo também publicado em 29 de janeiro no periódico New England Journal of Medicine, os cientistas encontraram indícios do vírus em fezes diarreicas do primeiro caso dos Estados Unidos, sugerindo que a doença também possa ser transmitida via matéria fecal.

Para conter a transmissão do vírus, milhões de pessoas que haviam deixado Hubei antes do confinamento como parte da migração em massa do Festival da Primavera estão sendo monitoradas e colocadas em quarentena obrigatória por duas semanas. Conforme orientações, o período de férias foi prolongado para que as pessoas em todo o país não se deslocassem e para que trabalhassem em casa o máximo possível. Excursões em grupo e todas as viagens nacionais de ônibus, trem e avião foram suspensas.

Embora sem precedentes e praticamente inflexíveis, as medidas são louváveis, afirmam alguns especialistas. “O governo chinês merece crédito por sua rápida reação” e por seu comprometimento em conter o vírus, afirma Ian Lipkin, diretor do Centro de Infecção e Imunidade da Universidade Columbia, em Nova York, cujo laboratório trabalhou em conjunto com autoridades chinesas para desenvolver testes diagnósticos precoces para a SRAG. “Está muito melhor do que foi” o combate à SRAG em 2003, segundo ele.

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), manifestou a mesma percepção logo antes de sua agência designar a nova epidemia de coronavírus como uma emergência de saúde global em 30 de janeiro. Essa designação é o nível mais alto de alerta da OMS, reservado para surtos que ameaçam aqueles que se encontram fora do país de origem do patógeno e que requerem uma resposta internacional coordenada. Nos próximos três meses, a OMS planeja gastar US$ 675 milhões em um plano de resposta para países vulneráveis.

“Essa declaração não significa um voto de desconfiança contra a China”, afirmou Ghebreyesus em entrevista coletiva em Genebra em 30 de janeiro. “Nossa maior preocupação é o potencial de disseminação do vírus a países com sistemas de saúde mais fracos.”

Uma fotografia aérea mostra o Hospital Huoshenshan em Wuhan, um hospital improvisado construído em 10 dias para abrigar pessoas acometidas com o coronavírus.
Foto de Getty Images

Mas Zhang sente que houve uma piora no Hospital de Jinyintan em Wuhan, designado para tratar os pacientes mais graves.

“A taxa de mortalidade parece estar subindo. Hoje, morreram três pacientes somente nas minhas enfermarias”, disse Zhang à National Geographic na noite de domingo. Ela parecia cansada, com a voz calma, uma sensação de tristeza e impotência evidente. “Será que é um sinal de que o vírus está ficando mais mortal?” Zhang tem cada vez menos colegas para ajudá-la devido a doenças: alguns estão infectados, outros adoeceram por exaustão total.

No estudo publicado na revista médica Lancet, Zhang e seus colegas indicam que 99 doentes graves confirmados internados em seu hospital entre 1o e 20 de janeiro apresentaram taxa de mortalidade de 11%. Em todo o país, as mortes entre os casos graves estão em torno de 15%.

O estudo identifica uma lista de fatores que podem ser indícios dos piores casos, como o histórico de tabagismo, infecção bacteriana, pressão alta, diabetes e velhice. “A identificação precoce desses fatores e o tratamento precoce são cruciais para impedir a evolução da doença para sintomas fatais”, afirma Zhang.

Outros especialistas duvidam que essa perspectiva sombria expanda além da zona crítica do epicentro do surto. O número total de mortes é de cerca de 560, cerca de 2% dos casos confirmados em todo mundo.

“A taxa real de letalidade provavelmente será muito menor”, afirma Linfa Wang, diretor do programa de doenças contagiosas novas da Faculdade de Medicina Duke-NUS, em Singapura. A razão é que os casos confirmados representam apenas uma fração do total de casos, já que muitos daqueles com sintomas leves podem nem ir ao hospital e a capacidade de realização dos testes é limitada, acrescenta ele.

Intervenções pela Internet

No entanto, Wang sentiu a morte, sozinho em seu apartamento em Wuhan. O temor de talvez não ver seus filhos crescerem ficou insuportável. Ele discou 120 mais uma vez. Ainda ocupado.

Depois de tentar sem êxito por várias vezes, Wang entrou em pânico e fez o que qualquer um faria nesta era digital: recorreu às mídias sociais.

Ele começou a enviar mensagens para seus amigos, colegas e alunos no WeChat, popular aplicativo de mensagens chinês. Dezenas responderam. Eles se ofereceram para ligar para o número de emergência por ele. Um amigo de um colega do Hospital Tianyou em Wuhan se ofereceu para reservar um leito para ele.

“O medo, a ansiedade e o desconhecimento sobre a doença são um pesado fardo às populações localizadas nas áreas de isolamento”, afirma Liu Hao, médico do Grupo de Check-up de Saúde Ciming em Wuhan. “Graças à internet, há muito que podemos fazer.”

Liu, nascido em Wuhan, reuniu quase uma centena de voluntários de todo o país, inclusive mais de trinta médicos, para oferecer amparo pela Internet a indivíduos negligenciados. O grupo fornece orientação médica e aconselhamento psicológico. Também fornece conselhos sobre como evitar infecções, como se alimentar bem e se manter saudável durante uma quarentena.

Sem perspectiva do fim do isolamento, “foram feitas preparações para uma grande duração”, afirma Liu. “As pessoas precisam sentir que alguém se importa com elas. Precisam saber que há alguém com quem contar, se necessário — ainda que os hospitais não possam lhes oferecer assistência no momento.”

Horas após pedir socorro pelo WeChat, uma ambulância chegou ao apartamento de Wang. Duas equipes médicas com máscaras e roupas de proteção o levaram ao hospital Tianyou. Apesar da febre alta, a radiografia não mostrou sinais de doença respiratória grave.

“Pelo menos não estou morrendo”, ele se recorda de ter pensado. Mas ele não pôde ser testado para o coronavírus porque os escassos reagentes médicos eram reservados aos pacientes com sintomas clássicos de pneumonia. Ele foi internado para acompanhamento, dividindo um quarto com dois pacientes idosos do sexo masculino. Uma cortina separava cada um dos leitos.

“Não conversamos. Estávamos bastante cautelosos uns com os outros. Cada um de nós provavelmente se indagava se os outros haviam contraído o vírus “, conta Wang. Mas a experiência dele foi uma das melhores.

Trabalhadores preparam leitos no Centro Internacional de Conferências e Exposições de Wuhan.
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Após o isolamento de Wuhan, os moradores lotaram os hospitais da cidade. Imagens caóticas de clínicas de tratamento de febre abarrotadas inundaram a televisão estatal, com inúmeras pessoas recusadas e orientadas a permanecer em casa em quarentena. Sem espaço e aconselhamento adequado sobre quarentena, muitos membros da mesma família relatam ter contaminado uns aos outros. E aqueles que morreram em casa podem não ser contabilizados nunca entre as mortes oficiais.

Os críticos afirmam que há uma necessidade urgente de colocar em quarentena os casos suspeitos. “Do contrário, haveria mais ‘fontes de contaminação em movimento’ e mais contaminações cruzadas”, afirma Lei Reipeng, vice-diretora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade de Ciência e Tecnologia Huazhong, em Wuhan. Ela e uma equipe de Huazhong vêm pressionando o governo da província a colocar em quarentena qualquer pessoa que apresentar sintomas, mas que não possa ser tratada imediatamente pelos hospitais designados para a epidemia.

“Não podemos simplesmente deixá-los vagando por aí, possivelmente contaminando outras pessoas”, afirma Lei. “A maioria dos hotéis em Wuhan está vazia. Também há espaço em muitos hospitais gerais. Por que não podemos utilizá-los para isolar as fontes de contaminação?”

Felizmente, o desamparo sentido por muitos daqueles confinados em Wuhan poderá em breve encontrar alívio. No início desta semana, o governo da província anunciou que identificar e colocar em quarentena os casos suspeitos será uma das principais prioridades nas próximas semanas, segundo o jornal Hubei Daily.

E, para atender à demanda médica sem precedentes, o governo rapidamente construiu dois novos hospitais em Wuhan. A televisão estatal mostrou dezenas de operários vestidos com cores fortes escavando o chão nos canteiros de obras. Mais de 6,3 mil operários se revezaram em turnos dia e noite para garantir uma construção rápida.

O primeiro hospital — chamado Huoshenshan, ou “montanha do deus do fogo” — foi erguido em 10 dias e aberto na terça-feira. O Hospital Leishenshan, a montanha do deus do trovão, deve ser inaugurado ainda nesta semana. Juntas, as novas instalações contarão com 3,4 mil médicos militares e abrigarão 2,6 mil leitos.

Enquanto isso, 24 hospitais gerais da cidade estão sendo reformados para receber pacientes com doenças respiratórias contagiosas. Um total de 13 mil novos leitos será criado por meio desse processo até o final desta semana, afirmou à televisão estatal Sun Fenghua, integrante do projeto.

“Vamos decidir se modernizaremos mais hospitais com base na evolução da epidemia”, afirmou ela.

Rota de recuperação

Passados alguns dias de tratamento no Hospital Tianyou em Wuhan, após tomar medicamentos antivirais, Wang se sentiu muito melhor. Sua febre baixou. Ele conseguia respirar bem novamente. O nó no peito se desfez e o hospital lhe deu alta. Embora sua recuperação esteja em andamento, a China ainda está atordoada.

“É cedo demais para saber quando isso terá fim”, afirma Zhang, especialista em doenças respiratórias do Hospital de Jinyintan em Wuhan. “Haverá mais casos.”

Um estudo publicado na revista médica Lancet na última sexta-feira, estimou que cerca de 76 mil pessoas em Wuhan provavelmente contraíram o novo coronavírus até 25 de janeiro, com base em modelos baseados no número conhecido de casos e no modo de transmissão da doença. Os autores calculam que a epidemia vinha dobrando a cada 6,4 dias. Mas o crescimento da epidemia agora pode estar desacelerando por causa das “grandes medidas de isolamento social sem precedentes implantadas desde então”, afirma por e-mail Leung, líder do estudo.

Até o momento, nenhum supertransmissor (pacientes que transmitem um patógeno para muitas pessoas ao mesmo tempo) foi relatado nos estudos analisados por especialistas. Ao menos um artigo, publicado em 24 de janeiro na revista The Lancet, indica que pacientes podem transmitir a doença com sintomas leves ou mesmo sem sintomas. Na terça-feira, a Comissão Nacional de Saúde da China confirmou a existência de muitos desses casos, sobretudo entre familiares.

“É diferente da SRAG, em que o contágio ocorre apenas com a presença de sintomas”, afirma Jeremy Farrar, diretor da Wellcome Trust, instituição beneficente com enfoque em pesquisas médicas, com sede em Londres. “Essa forma de contágio torna o controle extremamente difícil.”

Por ora, Wang permanece em quarentena em seu apartamento na Universidade de Hubei, por precaução caso esteja infectado e ainda possa transmitir a doença. Seus alunos se revezam fazendo compras de mantimentos para ele.

“Eles deixam os mantimentos do lado de fora do apartamento e depois me mandam uma mensagem”, conta Wang. “Não temos contato direto. Não podemos arriscar.”

E ele “vê” sua família todos os dias por meio de videochamadas no WeChat: “Só quero que isso acabe logo. Mal posso esperar para abraçar meus filhos novamente.”

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