Como mutações do coronavírus podem ajudar a traçar rota de propagação e refutar conspirações

Mudanças no patógeno auxiliam cientistas a acompanhar casos sem a realização de testes em massa — e mostram que o vírus não é uma arma biológica.

Por Sarah Elizabeth Richards
Publicado 3 de abr. de 2020, 12:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Imagem de um microscópico eletrônico de uma amostra do primeiro caso nos Estados Unidos do coronavírus ...

Imagem de um microscópico eletrônico de uma amostra do primeiro caso nos Estados Unidos do coronavírus que causa a Covid-19, anteriormente conhecido como 2019-nCoV. As partículas virais esféricas, de cor azul, contêm seções transversais no genoma viral, vistas como pontos pretos.

Image by Cdc, Hannah A Bullock, Azaibi Tamin

Imagine o projeto de código aberto Nextstrain.org como um museu de epidemias. Laboratórios em todo o mundo contribuem com sequências genéticas de vírus coletados de pacientes e o Nextstrain utiliza esses dados para descrever a evolução das epidemias com mapas globais e gráficos filogenéticos, que são as árvores genealógicas dos vírus.

Até o momento, o Nextstrain processou quase 1,5 mil genomas do novo coronavírus e os dados já mostram como esse vírus está sofrendo mutações — a cada 15 dias, em média — conforme a pandemia de Covid-19 assola o mundo todo.

Por mais alarmantes que pareçam, as mutações não significam que o vírus esteja se tornando mais prejudicial. Em vez disso, essas mudanças sutis no código genético do vírus estão ajudando os pesquisadores a descobrir onde ele esteve, além de dissipar mitos sobre suas origens.

“Essas mutações são completamente benignas e úteis como uma peça do quebra-cabeça para descobrir como o vírus está se espalhando”, diz Trevor Bedford, cofundador do Nextstrain e biólogo computacional do Fred Hutchinson Cancer Research Center, em Seattle.

Essa primeira abordagem genética para rastrear o coronavírus surgiu como uma luz no fim do túnel em meio a uma enxurrada de manchetes devastadoras sobre a pandemia. Estudos científicos semelhantes foram fundamentais para decodificar epidemias anteriores, como a de zika e ebola. Contudo especialistas afirmam que o custo cada vez menor e o aumento da velocidade e eficiência das ferramentas de sequenciamento genético tornaram possível a documentação ainda mais rápida do caminho destrutivo do coronavírus, realizada por um pequeno exército de pesquisadores em todo o mundo. As informações obtidas podem ajudar as autoridades a alterar suas estratégias de contenção para mitigação, especialmente em locais onde não há testes disponíveis.

“Se voltarmos cinco anos ao vírus ebola, foi um processo que durou um ano, desde a coleta de amostras até o sequenciamento de genomas e seu compartilhamento público”, diz Bedford. “Agora, o tempo é muito mais curto — de dois dias a uma semana — e a capacidade em tempo real de utilizar essas técnicas de forma a impactar positivamente o surto é nova.”

Utilizando as mutações para acompanhar os casos

O laboratório de Bedford utiliza genética para rastrear o novo coronavírus, conhecido como SARS-CoV-2, desde que os primeiros casos nos Estados Unidos começaram a se multiplicar no estado de Washington, em fevereiro e março. Naquela época, as autoridades de saúde pública se concentravam em rastrear o histórico de viagens dos pacientes e estabelecer conexões entre as pessoas potencialmente infectadas que haviam encontrado ao longo do caminho.

Enquanto isso, Bedford e sua equipe se concentravam em conhecer o código genético do vírus, analisando amostras nasais coletadas de cerca de duas dúzias de pacientes. A descoberta deles foi esclarecedora: ao rastrear como e onde o vírus sofreu mutações ao longo do tempo, Bedford demonstrou que o SARS-CoV-2 estava incubado silenciosamente na comunidade há semanas desde o primeiro caso documentado em Seattle, em 21 de janeiro. O paciente tinha 35 anos e havia estado recentemente no primeiro epicentro do surto em Wuhan, na China.

Em outras palavras, Bedford tinha provas científicas de que as pessoas poderiam, sem saber, espalhar o coronavírus se apresentassem o quadro leve da doença e não procurassem atendimento, ou se não tivessem sido testadas por descuido do processo de vigilância tradicional. Essa revelação impulsionou os exaltados bloqueios, fechamentos e recomendações de distanciamento social em todo o mundo, na tentativa de retardar a disseminação.

“O que ficou claro é que os dados genômicos oferecem uma história muito mais rica sobre como o surto está ocorrendo”, diz Bedford.

As ferramentas de visualização do Nextstrain também ajudaram a envolver um público que tem muita vontade de aprender sobre a ciência do coronavírus, diz Kristian Andersen, bióloga computacional da Scripps Research em La Jolla, na Califórnia, cujo laboratório contribuiu com o projeto oferecendo mais de mil genomas, incluindo o do vírus da Febre do Nilo Ocidental e o do vírus da zika.

“Gosto dessas ferramentas porque, durante muito tempo, apenas nerds como eu olhavam para essas árvores e agora elas estão espalhadas pelo Twitter”, diz Andersen. O ethos de código aberto do site também gerou entusiasmo no compartilhamento de genomas entre pesquisadores de todo o mundo, que se oferecem para enviar amostras virais ao seu laboratório ou que o contatam para obter orientações específicas sobre como sequenciar o vírus. “Eles observam os dados exibidos e dizem ‘Temos pacientes também. Gostaríamos de sequenciá-los.’”

Embora tais gráficos e árvores sejam úteis para se ter uma visão geral de como a pandemia se desenvolve, Andersen adverte que visitantes aleatórios do site não devem tirar conclusões precipitadas, porque eles não conseguem analisar dados históricos mais extensos. Caso em questão: Bedford teve que voltar atrás no Twitter depois de sugerir que dados de sequenciamento semelhantes provenientes de um paciente alemão infectado na Itália e de um paciente de Munique infectado um mês antes mostravam que o surto europeu havia começado na Alemanha.

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    “A árvore pode sugerir uma conexão, mas há tantas peças ausentes na cadeia de transmissão que pode haver outras explicações sobre o que poderia ter acontecido”, afirma Andersen.

    E em lugares onde os testes e a vigilância baseada em casos são limitados, Bedford diz que os dados genéticos continuarão fornecendo pistas para dizer se todas essas intervenções de distanciamento social estão funcionando.

    “Poderemos dizer o quanto a transmissão foi reduzida e responder à pergunta: ‘Podemos tirar o pé do acelerador?’”, diz ele.

    Não é uma arma biológica

    Além disso, a capacidade de revelar a história evolutiva do vírus ajudou os pesquisadores a refutar teorias da conspiração, de que o SARS-CoV-2 havia sido secretamente produzido em laboratório para ser usado como arma biológica.

    Um artigo de 17 de março publicado na revista científica Nature Medicine, também de autoria de Andersen, abordou o assunto comparando as características genômicas do SARS-CoV-2 com as de todos os seus parentes mais próximos, incluindo o SARS, o MERS e cepas isoladas de animais, como morcegos e pangolins.

    Primeiramente, grande parte da estrutura básica do SARS-CoV-2 é diferente de qualquer outro coronavírus estudado anteriormente em laboratório. O novo coronavírus também contém características genéticas que sugerem que o vírus teve contato com um sistema imunológico vivo e não foi cultivado em uma placa de Petri.

    Além disso, um responsável por criar armas biológicas desejaria um grande impacto e poderia contar com a história para obtê-lo, mas o novo coronavírus apresenta falhas sutis que indicam seleção natural. Por exemplo, os coronavírus utilizam proteínas da espícula, que se parecem com brócolis, para se ligar a “portas” celulares chamadas de receptores e então as acessarem. É assim que os vírus infectam as células animais. Experimentos demonstraram que o novo coronavírus se liga a um receptor humano chamado ECA2, mas a interação não é eficiente, explicam os autores.

    “Alguém que quisesse criar o vírus perfeito não teria escolhido essa atividade viral”, afirma Andersen. No geral, suas análises sugerem que o vírus foi transmitido de um animal aos humanos em novembro.

    No futuro, o sequenciamento genético se tornará uma ferramenta ainda mais importante para identificar surtos virais locais ou regionais antes que eles se espalhem.

    “Se um possível vírus surgir em uma comunidade na África, por exemplo, agora podemos levar amostras para o laboratório e realizar um sequenciamento shotgun”, diz Phil Febbo, médico e diretor médico da Illumina, a maior fabricante de máquinas de sequenciamento genético do mundo, com sede em San Diego, na Califórnia. A técnica shotgun permite que os pesquisadores sequenciem filamentos genéticos aleatórios para identificar um vírus mais rapidamente, permitindo que as autoridades determinem com mais agilidade as medidas apropriadas de contenção e, assim, interrompam a transmissão.

    Ainda há muito trabalho a ser feito para criar uma rede de vigilância global de resposta rápida: laboratórios precisam ser construídos. É necessário o apoio dos governos. É preciso recrutar e treinar funcionários para operar máquinas de sequenciamento e interpretar os resultados.

    “Não se trata de limitação tecnológica”, diz Febbo. “Trata-se de encontrar a resolução certa como comunidade internacional.”

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