Talvez saibamos menos sobre o apocalipse anfíbio do que acreditávamos

Cientistas concordam que os anfíbios estão em apuros, mas divergências pela falta de informações destacam debate maior dentro da comunidade científica.

Por Jason Bittel
Publicado 28 de abr. de 2020, 16:47 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Muitos anfíbios, como o da espécie Dendropsophus ebraccatus, mostrado na foto na Costa Rica, carecem de ...

Muitos anfíbios, como o da espécie Dendropsophus ebraccatus, mostrado na foto na Costa Rica, carecem de dados populacionais robustos, dificultando a determinação do grau de declínio da população.

Foto de Robin Moore, Nat Geo Image Collection

EM MARÇO DE 2019, os cientistas informaram uma descoberta sombria.

Depois de reunir dados em todo o mundo, os pesquisadores descobriram que os fungos assassinos conhecidos como quitrídios haviam causado declínios em ao menos 501 espécies de anfíbios. Para piorar, 90 das espécies afetadas haviam sido completamente dizimadas — extintas ou em níveis populacionais tão baixos que os cientistas não conseguem mais encontrar indícios de que ainda existam. O quitrídio já foi até descrito como o “patógeno mais destrutivo” da biodiversidade de todos os tempos.

A equipe, que contou com 41 cientistas, publicou suas descobertas na revista científica Science. A notícia virou manchete nos meios de comunicação, inclusive na National Geographic.

Contudo, outro grupo de cientistas questionou essas constatações. No que se conhece na comunidade científica como um comentário técnico, também publicado pela Science, os pesquisadores argumentam que existem muitas lacunas no conjunto de dados do estudo. Além disso, ao tentar reproduzir os resultados do estudo utilizando os dados fornecidos, não conseguiram.

Não há recursos suficientes para monitorar as populações de todas as espécies de anfíbios, o que gera lacunas no conhecimento dos cientistas sobre alguns anfíbios, como esse da espécie Smilisca sordida.

Foto de George Grall, Nat Geo Image Collection

“Quando esse artigo foi publicado, fiquei bastante empolgado em lê-lo”, afirma  Max Lambert, biólogo da conservação da Universidade da Califórnia em Berkeley e principal autor do comentário. “Na biologia populacional, é extremamente difícil monitorar a situação de populações e ainda mais difícil ainda detectar uma tendência de declínio e identificar sua causa exata. Por isso eu havia ficado muito animado por terem tamanha abundância de dados sobre tantas espécies.”

Entretanto, ao analisar os dados, Lambert afirma que ficou confuso ao encontrar células em branco praticamente em toda parte que olhava. Para tentar entender o que via, pediu a colegas e outros especialistas que dessem uma olhada e, em minutos, “todos haviam encontrado dezenas e dezenas de dados ausentes e questionáveis”, conta ele.

“A falta de dados era enorme”, afirma Lambert.

O processo científico

Não é incomum cientistas discordarem. Debates e críticas são partes saudáveis do processo científico. E, com essa mentalidade, a Science permitiu aos autores originais do artigo fornecer uma resposta técnica ao comentário.

Respostas e comentários técnicos são publicados quando os revisores acreditam que uma discussão mais aprofundada seria proveitosa para a comunidade científica, escreveu por e-mail um porta-voz da Science em uma declaração. “Não representam uma declaração de erro da revista”, informa o documento.

“Fomos muito claros em nosso artigo original. Muitas dessas espécies possuem diversas causas de declínio”, afirma Ben Scheele, biólogo de conservação da Universidade Nacional da Austrália e principal autor do artigo em questão. “E, portanto, nunca afirmamos que o quitrídio seja a única causa de declínio para essas 501 espécies. Afirmamos simplesmente que o quitrídio influencia o declínio dessas espécies. E acredito que temos 454 referências. Dessa forma, há uma quantidade enorme de informações citadas por nós.”

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    Nas montanhas de Sierra Nevada, na Califórnia, os sapos estão definhando em razão dos fungos quitrídios.

    Foto de Joël Sartore, Nat Geo Image Collection

    No entanto também está em jogo a qualidade das fontes citadas por Scheele e seus coautores. Em muitos casos, a única evidência do declínio ou desaparecimento de uma espécie de sapo ou salamandra é o testemunho de um especialista. E, embora a opinião de especialistas seja evidentemente parte integrante do entendimento científico, não é tão rigorosa quanto, por exemplo, um estudo detalhado que testa uma hipótese.

    Scheele alega que confiou na opinião de especialistas porque o fungo quitrídio parece sempre estar um passo à frente dos cientistas. “Analisamos os declínios descritos nas décadas de 1970, 1980 e 1990”, conta ele.

    Por exemplo, a linhagem de fungos que infecta principalmente sapos, da espécie Batrachochytrium dendrobatidis, conhecida como Bd, nem sequer havia sido descrita até 1998. Além disso, ele acredita que as conclusões de seu artigo indicam “uma estimativa conservadora”. Em outras palavras, ele afirma que provavelmente estão em risco ainda mais anfíbios do que aqueles documentados por ele.

    A divergência traz à luz um problema não muito discutido sobre a forma de publicação de estudos científicos, afirma Jonathan Kolby, Explorador da National Geographic e consultor técnico da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), tratado que regulamenta o comércio internacional de plantas e animais silvestres. Kolby também é um dos coautores de Scheele.

    O fato é que ele testemunhou pessoalmente muitos declínios, mas nem sempre possui pesquisas populacionais em longo prazo para confirmar essas observações. Segundo lhe consta, atualmente não há meios de publicação interessados nesses “relatos graves sem dados”, apesar de seu valor nítido.

    “Por exemplo, há um homem que mora legalmente na região central da floresta tropical no meu campo de estudos no Parque Nacional de Cusuco, em Honduras”, escreveu Kolby por e-mail. “Ele morou lá durante toda a sua vida e tem uns 80 anos. Ele nos contou que o clima e as espécies dessa floresta mudaram bastante em sua vida, e muitos dos sapos que antes eram comuns desapareceram. Apesar dos dados imperfeitos, esse tipo de observação importante não dispõe de um registro uniforme na literatura científica de anfíbios.”

    Qual é a importância disso?

    Para deixar claro, Lambert e seus coautores não estão tentando afirmar que o fungo quitrídio, que se alimenta da pele dos anfíbios, não seja um problema.

    “É evidente que é muito prejudicial”, afirma Lambert.

    Mas os autores do comentário afirmam que, para a conservação das espécies de sapos e salamandras que restam, é crucial identificar em que medida e intensidade o fungo é prejudicial. Em outras palavras, é fundamental obter um diagnóstico correto para não jogar por terra iniciativas de conservação que dediquem recursos e esforços ao combate do quitrídio quando a verdadeira causa do desaparecimento poderia ser a perda de habitat.

    “É como a covid-19 para esses animais”, afirma Lambert. “É como se você fosse ao médico e o médico dissesse: ‘você está com a gripe comum’, quando, na verdade, você estivesse com a covid-19 e se prejudicasse por isso.”

    No entender de Priya Nanjappa, coautora do comentário, a resposta publicada por Scheele e seus colegas parece mais uma reafirmação e não aborda as preocupações sobre a qualidade dos dados.

    “A questão é que, se você é o único que pode reproduzir seus resultados, existe um problema com seus métodos, dados ou explicações”, afirma Nanjappa, diretora de operações da Conservation Science Partners, organização de conservação sem fins lucrativos.

    “A ciência está sendo criticada agora no mundo todo, sobretudo nos Estados Unidos”, afirma Nanjappa. “E se não pudermos sequer refletir sobre o nosso próprio estudo e aceitar certas falhas ou ao menos oportunidades de melhorá-lo, não estaremos fazendo nenhum favor à ciência”.

    ‘O triste estado de nosso conhecimento’

    Joyce Longcore, micologista que estudou extensamente o fungo quitrídio, afirma que respeita e trabalhou com pessoas com ambos os pontos de vista.

    “O uso de evidências concretas e passíveis de reprodução na ciência é importante, mas talvez não seja a melhor forma direta de resolver uma pandemia em seu auge antes da identificação da causa”, afirma Longcore, que não participou do estudo nem do comentário.

    James Gibbs, biólogo de conservação na Faculdade de Ciências Ambientais e Silvicultura da Universidade do Estado de Nova York, afirma já ter visto polêmicas como essa no mundo dos anfíbios. Quando o debate se volta para comentários e respostas formais, “há méritos em ambos os lados”, afirma ele.

    Por exemplo, Gibbs caracterizou o estudo original como “bem analisado e estruturado”, mas a incerteza em alguns de seus dados também é nítida. O verdadeiro problema? Existem muitas maneiras bem consagradas pelas quais Scheele e seus coautores poderiam ter delineado melhor essa incerteza e a incorporado de modo mais significativo em suas estimativas.

    Em um e-mail posterior, Scheele e seus coautores alegam ter feito de fato um esforço para tratar dessa incerteza. E assim prossegue o debate sobre os métodos.

    “Para mim, essas trocas revelam dois grupos de cientistas tentando enfrentar nosso precário conhecimento sobre a biodiversidade”, afirma Gibbs. “Todos sentimos necessidade de tentar compreender o que está acontecendo na crise do declínio dos anfíbios, mas existem grandes limitações sobre o que sabemos e o que podemos deduzir”.

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