Onde estará o próximo vírus mortal? Cientistas estão seguindo as pistas

Ao procurar por novos vírus e rastrear a origem das pandemias, cientistas formam a base para ajudar no combate às doenças nas quais ocorre o evento “spillover”.

Por Fran Smith
Publicado 25 de jun. de 2020, 07:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

Um morcego frugívoro recebe um pouco de alimento após veterinários coletarem uma amostra de seu sangue e antes de ser solto. Como parte do projeto PREDICT, patrocinado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, pesquisadores coletam amostras de morcegos, porcos e pessoas em Chonburi, na Tailândia, na tentativa de identificar vírus perigosos em animais antes que eles possam infectar os humanos.

Foto de Montakan Tanchaiswat, Usaid

AS ENCOMENDAS ESPECIAIS chegaram em janeiro ao laboratório de uma especialista em vírus chamada Supaporn Wacharapluesadee, em Bangkok. Elas continham tubos com amostras de saliva e muco de cinco pessoas que haviam acabado de desembarcar no principal aeroporto da cidade de Wuhan, na China. Dias antes, as autoridades chinesas haviam anunciado alguns casos misteriosos de pneumonia na cidade chinesa. As autoridades da Tailândia, um dos principais destinos dos turistas chineses, disponibilizaram equipes de enfermagem nos aeroportos para rastrear passageiros que desembarcavam a fim de detectar febre ou tosse. As autoridades de saúde temiam que o culpado pudesse ser algum micro-organismo totalmente desconhecido.

“Eles me perguntaram se eu seria capaz de detectar o desconhecido”, conta Wacharapluesadee.

Em mamíferos e aves, existem cerca de 1,6 milhão de vírus dos quais nada sabemos, sendo que metade pode migrar para os humanos e nos infectar. Essa é uma estimativa baseada em modelos matemáticos, mas a ameaça é clara. Seis em cada dez doenças infecciosas que nos atingem originaram-se nos animais. A lista inclui HIV/AIDS, ebola, MERS, SRAG e, provavelmente, a covid-19.

Pesquisadores do PREDICT passaram vários dias coletando sangue e outras amostras de morcegos em uma colônia perto do templo de Wat Luang Phrommawatin, em Chonburi, a cerca de uma hora de carro a sudeste de Bangkok. Para não testar os morcegos mais de uma vez, os pesquisadores pintaram suas unhas de roxo.

Foto de Montakan Tanchaisawat, Usaid

Nas pandemias mais recentes, os cientistas apenas identificaram os patógenos responsáveis depois que eles começaram a provocar mortes em pessoas. Pesquisadores como Wacharapluesadee dizem que é tarde demais. Ela faz parte de uma iniciativa internacional que visa identificar vírus mortais antes que eles sejam transmitidos aos humanos, na esperança de impedir surtos letais.

Essa esperança acabou levando Wacharapluesadee para florestas, vilarejos remotos e cavernas com cheiro de almíscar em toda a Tailândia. Usando luvas grossas de couro e segurando redes de malha fina e cabo longo, ela e seus colegas capturaram 932 morcegos no início dos anos 2000, coletaram amostras de sangue dos animais, os soltaram e retornaram ao laboratório para testar o material quanto à presença do vírus da raiva. Ela então passou a se concentrar no vírus mortal nipah, que migrou de porcos para humanos na Malásia e Singapura em 1998. Ela testou milhares de amostras de saliva, urina e sangue de 12 espécies de morcegos e descobriu assinaturas preocupantes de infecção por nipah na sociável raposa-voadora-de-lyle.

A maioria dos morcegos está sob proteção na Tailândia, mas seu sangue fresco é considerado afrodisíaco. Com base em sua pesquisa, Wacharapluesadee alertou em uma carta de 2006 enviada a uma revista científica chamada Clinical Infectious Diseases que: “Beber sangue de morcego pode ser prejudicial à saúde.”

Um novo coronavírus à solta

Ao longo da última década, Wacharapluesadee colabora com o projeto PREDICT, uma iniciativa da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional que visa acelerar e coordenar a descoberta e vigilância global de diferentes vírus. O projeto identificou 949 novos vírus, criou um extenso banco de dados de vírus conhecidos na vida selvagem e treinou cerca de sete mil cientistas, técnicos de laboratório e trabalhadores de campo em 30 países para que ficassem alerta em relação a doenças emergentes.

O PREDICT também desenvolveu ferramentas de baixo custo para testar sangue e outras amostras de animais ou humanos a fim de verificar a presença de assinaturas genéticas de uma família de vírus. Os testes convencionais procuram por um vírus específico conhecido. Esses testes mais amplos permitem identificar um vírus misterioso analisando partes de seu DNA e combinando os resultados com os perfis genéticos de micro-organismos relacionados que já foram extensivamente estudados.

Eram 10 horas da noite em Bangkok quando conversei com Wacharapluesadee pelo Skype. Ela estava vestindo um jaleco branco e havia chegado ao fim de um longo dia de trabalho no Centro de Ciências da Saúde em Doenças Infecciosas Emergentes da Cruz Vermelha da Tailândia. Ela me contou que planejava começar o ano com uma expedição de caça ao vírus ebola na famosa caverna de morcegos em Wat Khao Chong Pran, onde enxames desses mamíferos saem no pôr do sol, formando uma massa ondulante espetacular no céu, conforme buscam por alimento. Quando foi alertada sobre as amostras coletadas no aeroporto, cancelou sua viagem. Ela testou as amostras em busca de 33 patógenos que causam doenças respiratórias, provenientes de duas famílias de vírus: influenza e coronavírus, que incluem os vírus responsáveis pela pandemia de SRAG em 2002-2003 e MERS nove anos depois.

Nada foi detectado nas amostras dos quatro primeiros passageiros. Então, na amostra do passageiro de número cinco, ela detectou um coronavírus. Wacharapluesadee sequenciou o genoma e inseriu os resultados no GenBank, um banco de dados de DNA utilizado para identificar novos patógenos. O vírus se parecia muito com um vírus SARS encontrado no morcego chinês da espécie Rhinolophus rouxii, mas era diferente de qualquer coisa anteriormente detectada em humanos.

Em 9 de janeiro, ela alertou as autoridades de saúde da Tailândia que um novo coronavírus estava à solta — dois dias antes de a China informar à Organização Mundial da Saúde que um novo coronavírus havia infectado 41 pessoas em Wuhan e provocado a morte de uma. Quando a China publicou o genoma do vírus na internet, Wacharapluesadee constatou que era idêntico à sequência que ela havia encontrado. Foi o primeiro caso confirmado do novo coronavírus fora da China.

Rastreando hospedeiros virais

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    Os pesquisadores também testaram porcos em fazendas localizadas perto da colônia de morcegos. Esse tipo de atividade pode detectar vírus que passaram de morcegos para suínos e que também podem ameaçar a saúde humana. Em 1998, o mortal vírus nipah migrou de porcos para humanos na Malásia e Singapura.

    Foto de Richard Nyberg, Usaid

    Os caçadores de vírus são os aventureiros da ciência, pois entram em contato com a natureza e se expõem a doenças perigosas para desvendar os mistérios das nanopartículas infecciosas. Vejamos o exemplo dos médicos do exército norte-americano que montaram acampamento em uma selva cubana durante um surto de febre amarela no início do século 20. Eles eclodiram ovos de mosquitos, permitiram que os insetos sugassem o sangue de pessoas doentes e depois picassem voluntários saudáveis, incluindo os próprios médicos, para provar que a doença não era causada por bactérias disseminadas pela falta de saneamento, mas sim por um vírus transmitido por mosquitos fêmeas da espécie Aedes aegypti.

    Analisemos também o caso de Beatrice Hahn, microbiologista nascida na Alemanha que agora atua na Universidade da Pensilvânia e cuja longa busca pela origem do HIV (vírus da imunodeficiência humana) a levou a visitar colônias de chimpanzés da Tanzânia ao rio Congo e ao sul de Camarões. Ela e sua equipe acordavam cedo todas as manhãs, seguravam cestas sob as árvores, onde os chimpanzés dormiam em segurança fora do alcance dos tigres, coletavam o primeiro jato de urina do dia e depois coletavam fezes do chão da floresta. A pesquisa de Hahn confirmou suspeitas de que os chimpanzés são o reservatório natural do parente viral mais próximo do HIV. Provavelmente foi transmitido às pessoas por meio da carne de animais selvagens, causando uma pandemia que já matou 32 milhões de pessoas e que ainda está em curso.

    O risco de doenças zoonóticas — infecções transmitidas de animais para humanos — aumenta à medida que perturbamos a natureza. Quanto mais destruímos habitats em prol da agricultura e cidades, caçamos e comercializamos animais silvestres, passamos férias em florestas remotas e caminhamos por cavernas antes inacessíveis, maiores são as chances de eventos de “spillover”, nome dado pelos cientistas ao fenômeno de troca de hospedeiro que ocorre quando um vírus migra de uma espécie, a qual é inofensivo, para uma outra, a qual pode causar danos, como a nossa.

    Os cientistas identificaram cerca de 260 vírus que infectam pessoas — uma pequena fração do que está por aí. Os vírus são onipresentes. Combinando todos, eles pesarão mais do que todas as plantas e animais juntos, embora sejam microscópicos. Uma cabeça de alfinete pode abrigar cerca de 100 milhões de partículas do novo coronavírus, o SARS-CoV-2, segundo declaração do virologista Peter Piot a um entrevistador do TEDMED no início deste ano.

    Cientistas em uma iniciativa de colaboração internacional anunciaram o incrível objetivo de encontrar, identificar e mapear 99% das ameaças virais à saúde humana e à segurança alimentar nos próximos 10 anos. Mas o esforço deles, The Global Virome Project, enfrenta a tarefa igualmente incrível de arrecadar os cerca de US$ 3,7 bilhões necessários para atingir uma meta tão ambiciosa.

    Em busca do próximo vírus mortal

    Caçar vírus é um desafio, mas pode ser a parte mais fácil. O difícil é descobrir com quais devemos nos preocupar.

    Simon Anthony, professor assistente de epidemiologia na Universidade de Columbia questiona: “De todos os vírus existentes, quais têm os pré-requisitos genéticos para infectar pessoas?”

    E se um vírus puder infectar pessoas — isto é, se o vírus conseguir se ligar aos receptores de uma célula humana e penetrá-la — será que a infecção provocará a nossa morte, causará uma doença leve ou não causará nenhum sintoma? Quais vírus potencialmente perigosos têm mais probabilidade de migrar de um hospedeiro animal para os humanos? E em qual lugar do mundo seria mais provável que isso acontecesse?

    Um leitão curioso observa os pesquisadores coletarem amostras de porcos em uma baia próxima.

    Foto de Richard Nyberg, Usaid

    Em Champasak, Laos, pesquisadores coletam amostras de animal selvagem para teste.

    Foto de Montakan Tanchaisawat, Usaid

    Essas perguntas impulsionam a pesquisa de Anthony. Ao procurar pelas respostas, ele se concentrou em duas famílias de vírus: filovírus, que incluem o ebola, e coronavírus, que incluem diversos vírus comuns que causam resfriados ou tosse. Ninguém reconheceu a família dos coronavírus como um grande problema até o surgimento da SRAG (síndrome respiratória aguda grave) no sul da China, que infectou cerca de 8,1 mil pessoas em 26 países e causou 774 mortes.

    Anthony participou de um estudo importante sobre os coronavírus na natureza, testando mais de 19 mil animais — morcegos, macacos, bonobos, gorilas, mandris, ratos, camundongos, porcos-espinhos, esquilos e outros — em 20 países ao longo de cinco anos. A pesquisa, publicada em 2017, descobriu 100 coronavírus diferentes, encontrados predominantemente em morcegos, e ajudou os cientistas a entender por que alguns vírus podem infectar pessoas e outros não.

    Em 2018, ele fazia parte de uma equipe do PREDICT que identificou um novo vírus ebola, chamado bombali, em morcegos-de-cauda-livre que se abrigavam em casas de pessoas na Serra Leoa. É o sexto vírus ebola conhecido e o primeiro a ser descoberto antes de desencadear um surto mortal. Pouco tempo depois, outro grupo de pesquisa encontrou o vírus em morcegos no Quênia, e uma equipe do PREDICT o isolou de morcegos na Guiné. “Isso nos diz que esse vírus possui ampla distribuição e que precisamos estar preparados”, disse Tracey Goldstein, líder de pesquisa do PREDICT, diretora do One Health Institute da Universidade da Califórnia, em Davis, e líder de pesquisa em Serra Leoa e Guiné.

    Impulsionada pelas descobertas, a EcoHealth Alliance, parceira do projeto PREDICT, criou um livro ilustrado, Living Safely With Bats (Convivendo com morcegos de forma segura, em tradução livre), em 12 idiomas. As equipes de campo do PREDICT usaram o livro em campanhas educacionais em vilarejos na Serra Leoa e na região florestal da Guiné. A mensagem: não se alimente dos animais e não ingira frutas que eles possam ter contaminado. Mas também não os extermine porque são polinizadores importantes, protegem as plantações se alimentando de besouros e outras pragas e podem disseminar infecções se forem perturbados. O Ministro da Educação da Serra Leoa levou a campanha às escolas. O esforço do PREDICT alcançou milhares de pessoas, mas não se sabe se foi suficiente para mudar o comportamento.

    A descoberta do bombali levantou mais questões científicas do que respostas. “Por um lado, você pensa, ‘certo, isso é realmente assustador. Temos um vírus ebola muito próximo das pessoas’”, lembrou Anthony recentemente. “Por outro lado, você pensa, ‘bem, se o vírus ebola está muito próximo das pessoas e ele é extremamente prejudicial, então por que não estão ocorrendo surtos?’”

    Em estudos de laboratório, Anthony demonstrou que o vírus pode infectar células humanas, mas com menos eficiência que o ebola zaire. Essa cepa foi responsável pela maioria dos surtos de ebola, incluindo a epidemia que devastou a África Ocidental de 2014 a 2016. Mas três das outras quatro cepas também podem causar doenças graves em humanos, e a quarta é conhecida por atingir porcos e primatas não humanos.

    Em 2019, Anthony e colegas encontraram evidências genéticas do ebola zaire em um morcego da espécie Myotis capaccinii, em uma mina abandonada no nordeste da Libéria. Nenhum caso foi relacionado à descoberta, mas o país ainda tinha na memória o surto de ebola ocorrido cinco anos antes, que atingiu a região de forma tão brutal, que corpos se acumularam na capital Monróvia. Os pesquisadores alertaram o governo. As autoridades anunciaram imediatamente as descobertas e solicitaram que as pessoas evitassem contato com esses morcegos, em especial nas cavernas e florestas.

    O PREDICT foi criado em 2009 para fortalecer e coordenar o que havia sido uma abordagem de acertos e erros à descoberta de ameaças virais e para melhorar a capacidade científica e técnica de monitoramento do perigo em regiões de alto risco. O nome sugeria um sistema de alerta precoce, como uma sirene que soa após detecção de um ataque aéreo iminente, nos pedindo para procurar abrigo das bombas. Contudo, essa é uma ambição fantasiosa.

    Com US$ 207 milhões obtidos em financiamento ao longo de uma década e um vasto universo de vírus a serem descobertos, algo além de nossa imaginação, o projeto teve que escolher. O PREDICT se concentrou em cinco das 71 famílias de vírus, em algumas regiões mais propícias e em fatores básicos que promovem eventos de spillover — a complexa relação entre atividade humana, degradação ambiental, comportamento animal e microbiologia viral.

    Supaporn Wacharapluesadee, especialista em vírus, e sua equipe se preparam para coletar amostras de sangue de morcegos. Sua busca por vírus ainda desconhecidos na natureza a levou a florestas, vilarejos remotos e cavernas na Tailândia. Ela foi a primeira cientista a confirmar que o novo coronavírus havia saído de Wuhan, na China.

     

    Foto de Montakan Tanchaisawat, Usaid

    “Estamos literalmente apenas iniciando a geração do conhecimento fundamental de que precisamos para tentar melhorar a nossa capacidade de previsão”, disse Anthony.

    Previsões de um cientista se tornam realidade

    Em fevereiro de 2019, um conhecido caçador de vírus, Linfa Wang, publicou uma lista de tipos de vírus na revista científica Current Opinion in Virology para servir como alerta. O documento avaliou os vírus com maior probabilidade de migrar de morcegos para humanos, diretamente ou por meio de um hospedeiro intermediário, e causar uma pandemia. Ele classificou os coronavírus no topo da lista por diversas razões. Eles se espalham rapidamente, geralmente por meio de tosse ou espirro. Adaptam-se a uma grande variedade de hospedeiros, incluindo porcos, roedores, vacas, civetas e camelos — sendo que qualquer um desses animais pode se tornar o intermediário entre morcegos e humanos. E os coronavírus frequentemente sofrem mutações e outras alterações genéticas que podem transformar uma cepa benigna em um patógeno prejudicial.

    Wang dirige o Programa de Doenças Infecciosas Emergentes na Duke-NUS Medical School, em Singapura. Quando conversei com ele por Skype recentemente, conforme os casos de covid-19 inundavam os hospitais nos Estados Unidos, disse a ele que sua avaliação parecia assustadoramente presciente. “Fiz uma previsão melhor e mais robusta em 2013”, disse ele alegremente. “Um jornal local me entrevistou.” Ele prontamente me enviou a matéria do Straits Times com sua citação: “Estou quase certo de que nos próximos 10 anos surgirá um novo vírus mortal disseminado pelos morcegos.”

    Wang apareceu no noticiário na época porque ele e Shi Zhengli, do Instituto de Virologia de Wuhan, haviam acabado de publicar um artigo confirmando que os morcegos-ferradura eram os portadores originais do vírus que causou a SRAG uma década antes. Civetas da espécie Paguma larvata, inicialmente consideradas a origem, eram apenas o hospedeiro intermediário. Embora os camelos estivessem envolvidos no surto de MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), Wang tinha certeza de que eram apenas os intermediários e que esse vírus também teria sua origem rastreada aos morcegos.

    “Isso realmente me assustou porque sabíamos que havia centenas de milhares de coronavírus circulando em morcegos em todo o mundo”, ele me contou, “e agora tivemos dois grandes surtos no período de nove anos”.

    Wang estuda vírus transmitidos por morcegos há 25 anos, procurando entender por que esses mamíferos abrigam tantos vírus e o que sua resistência a doenças virais pode nos ensinar em termos de proteção à saúde humana. Seu currículo lista 301 citações em periódicos. Muitas alertam para a possibilidade de pandemias, na linguagem técnica da sorologia e genética.

    Wang e Shi — a primeira cientista a isolar o vírus que causa a covid-19 — continuaram suas pesquisas sobre o SARS e os morcegos, investigando uma pergunta óbvia: com que frequência as pessoas são infectadas diretamente de morcegos? Os pesquisadores coletaram amostras de sangue de 218 pessoas que moravam perto de cavernas de morcegos na província de Yunnan. Seis pessoas tinham anticorpos para vírus do tipo SARS — evidência de infecção prévia. Ninguém nunca havia contraído SRAG ou tido contato com pacientes com SRAG, mas todos tinham visto morcegos voando em seus vilarejos. O estudo, publicado em 2018, apresentou a primeira evidência de que pessoas poderiam ser infectadas com vírus do tipo SARS transmitido diretamente de morcegos.

    Milhares de morcegos voam ao entardecer para se alimentar de frutas nos pomares próximos em Chonburi, na Tailândia.

    Foto de Montakan Tanchaisawat, Usaid

    Perguntei a Wang como é ver suas previsões mais terríveis se concretizarem.

    “Como cientista, tenho sentimentos muito ambíguos”, afirma ele. “Venho alertando as pessoas e prevendo o que vai acontecer. Mas agora que foi comprovado, sinto que não deveria ter previsto.”

    Mais investimento para a caça aos vírus

    Mais de dois meses se passaram entre o dia em que Wacharapluesadee identificou o novo coronavírus e o governo da Tailândia anunciou um dos mais rígidos bloqueios nacionais. As autoridades foram criticadas por não agirem com mais rapidez, mas a Tailândia conteve o vírus com mais eficiência do que a maioria dos países, segundo o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

    O centro dá crédito ao sistema de saúde exemplar do país e seus investimentos em segurança da saúde, incluindo relatórios de doenças infecciosas, treinamento epidemiológico e testes de laboratório. Com uma população de mais de 69 milhões, a Tailândia tinha 3.125 casos confirmados de covid-19 e 58 mortes em 10 de junho. Por outro lado, a cidade de Nova York, com 8,4 milhões de habitantes, teve 205.011 casos confirmados, 17.255 mortes confirmadas e 4.705 mortes suspeitas.

    O trabalho de campo que envolve a caça a vírus está suspenso em todo o mundo devido às medidas de bloqueio e porque Wacharapluesadee não sabe quando voltará às cavernas de morcegos. Mas seu laboratório está funcionando quase que integralmente, testando amostras enviadas por hospitais. Ela estuda a biologia e a atividade do novo coronavírus na esperança de que o conhecimento possa nos fortalecer contra outro ataque viral inevitável. “Não foi possível prever a pandemia seguinte, mas podemos nos preparar e desacelerar o surto”, afirma ela.

    Conforme Singapura enfrentava duas ondas de covid-19, Wang e sua equipe de laboratório se revezavam em turnos para manter o distanciamento social e trabalhavam arduamente para desenvolver um teste de anticorpos capaz de verificar a imunidade viral. Eles recentemente anunciaram a criação de um exame de sangue rápido para dois anticorpos responsáveis pela eliminação da infecção viral.

    O PREDICT estava previsto para ser encerrado em março, mas receberá mais US$ 2,26 milhões durante seis meses para ajudar laboratórios na Ásia, África e América Latina a testar a covid-19. O governo dos Estados Unidos anunciou uma iniciativa sucessora, o Stop Spillover, com foco principal em vírus zoonóticos específicos, como ebola, nipah e coronavírus, em países de alto risco selecionados na Ásia e na África. A iniciativa de cinco anos e US$ 100 milhões concederá financiamento em setembro.

    Cientistas que dedicam suas vidas à descoberta e compreensão de vírus afirmam que o conhecimento é essencial para reduzir o risco e evitar a próxima pandemia. Como é possível convencer as pessoas a parar de beber sangue de morcego ou convencer os governos a restringir o comércio de animais silvestres se não for possível afirmar quais vírus existem e qual a probabilidade de eles nos prejudicarem?

    “O conhecimento também pode impulsionar o desenvolvimento de testes e tratamentos quando novos vírus surgirem — ou melhor, antes de eles surgiram”, disse Jonna Mazet, diretora global do PREDICT por 10 anos, que atualmente dirige o One Health Institute da Universidade da Califórnia, em Davis. “Se estudarmos todos eles, aqueles que nos afetam e os inofensivos, e se soubermos o que faz um vírus migrar de uma espécie a outra, podemos melhorar nosso diagnóstico e aprimorar nossa classificação de risco para que possamos começar a direcionar estudos para tratamentos e talvez até mesmo para uma vacina”, explica ela.

    O governo federal dos Estados Unidos fez investimentos ínfimos no PREDICT e Stop Spillover em comparação com os US$ 3 trilhões que o Congresso autorizou em março e abril como resposta à covid-19 e auxílio econômico, em meio a uma pandemia que ainda não tem previsão para acabar. Mas é difícil atrair interesse público ou grandes financiamentos para ameaças invisíveis antes que elas resultem em crise.

    “Nessa área de doenças infecciosas emergentes, as pessoas nunca percebem que há um retorno enorme”, disse Wang. “Bom, agora elas percebem. Mas dizem, ‘Você não impediu.’ Porém quando evitamos pequenos surtos, as pessoas não se importam. Os casos não recebem atenção da mídia. Em Wuhan, se três pessoas morressem e a situação fosse controlada, nós saberíamos? Não. Isso acontece o tempo todo, as pessoas morrem apenas em vilarejos remotos. Você os enterra e pronto, não é assim?”

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