Como impedir que o novo coronavírus vença a batalha?

Aumento dos casos, hospitais em colapso e um segundo bloqueio no segundo semestre podem causar um forte impacto nos Estados Unidos. Veja o que é preciso fazer para reverter a situação.

Por Nsikan Akpan
Publicado 29 de jun. de 2020, 10:59 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

Pessoas participam de uma aula de ioga ao ar livre no Hotel X, dentro de cúpulas para cumprir as medidas de distanciamento social e controlar a propagação da covid-19, em 23 de junho de 2020, em Toronto.

Foto de Cole Burston, Getty Images

OS HUMANOS CONSEGUEM COMBATER a covid-19 porque os vírus são organismos rudimentares. Eles não conseguem se mover sem ajuda. Quando ficam ao ar livre por muito tempo, muitos se desintegram. Multiplicar-se é tudo o que eles sabem fazer. O problema é que o coronavírus realiza essa simples tarefa muito bem e países que tentaram afrouxar seus bloqueios e restrições, como os Estados Unidos, foram atingidos por novas ondas da pandemia.

Após meses de estabilização, com 20 mil a 30 mil novos casos por dia em todo o país, os números nos Estados Unidos estão subindo drasticamente em 30 estados e os hospitais lotados estão fazendo o possível para disponibilizar leitos. Em Houston, no Texas, onde os casos diários aumentaram de 15 mil para 25 mil em duas semanas, os profissionais de saúde estão transferindo pacientes adultos para os hospitais infantis numa tentativa desesperada de atender o aumento no número de casos. Outros estados estão enfrentando desafios semelhantes.

“Em um curto espaço de tempo, estamos chegando a níveis críticos em termos de capacidade de leitos de UTI e ventiladores nos hospitais das áreas mais atingidas”, diz Purnima Madhivanan, epidemiologista de doenças infecciosas e professora associada da Universidade do Arizona em Tucson. “No momento, acredito que devemos pelo menos iniciar medidas de redução de danos.”

Redução de danos é um conjunto de ferramentas e práticas de saúde pública — como programas que oferecem seringas a usuários de drogas ou campanhas para sexo seguro com preservativos — destinadas a reduzir o risco em vez de esperar que todos cumpram orientações rígidas. Essa abordagem reconhece que os níveis de risco variam de acordo com a pessoa e as circunstâncias, e que as soluções devem ser adaptadas para cada cenário individualmente.

No enfrentamento do coronavírus, as técnicas de redução de danos incluem convencer as pessoas a usar máscaras quando expostas a situações de maior risco, como espaços lotados, mas flexibilizar essas recomendações em locais onde as pessoas possam manter uma distância segura, como parques. Essas abordagens podem ir além das decisões tomadas individualmente, e seus princípios já ajudaram algumas nações e estados, incluindo a Nova Zelândia, Coreia do Sul e o estado de Nova York, a combater com êxito o coronavírus.

 “Há cerca de seis semanas, ficamos presos numa falsa dualidade que envolvia ficar em casa por tempo indefinido ou voltar às atividades normais”, diz Julia Marcus, epidemiologista e professora da Harvard Medical School em Boston, Massachusetts, que pressionou pela expansão das práticas de redução de danos durante a crise. “O risco não é binário e não podemos esperar que as pessoas fiquem em casa para sempre e se abstenham de contato social para sempre.”

Mais de seis epidemiologistas, virologistas e psicólogos contatados pela National Geographic concordam e disseram que os governos que enfrentam dificuldades são capazes de vencer a guerra contra a covid-19 — e talvez evitar bloqueios adicionais — por meio de planejamento e mensagens mais unificados, acompanhados de redução de danos. De acordo com os profissionais contatados, grande parte da incapacidade dos Estados Unidos de combater a covid-19 provém de pessoas que ignoram as importantes vantagens que temos em relação ao vírus: comunicação, cooperação e compromisso.

“Os países que obtiveram sucesso uniram a política e a população”, diz Jeffrey Shaman, epidemiologista da Mailman School of Public Health, da Universidade da Columbia, cujo laboratório está trabalhando com modelos de sobrecarga dos hospitais durante a crise. Nenhum desses especialistas acredita que a guerra contra a covid-19 esteja perdida, mas líderes do governo, a mídia, cientistas e o público em geral precisam mudar sua mentalidade e as mensagens porque se o vírus vencer, a devastação será muito pior do que a que estamos testemunhando agora.

Na quinta-feira, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos realizaram uma estimativa que demonstrou que entre 5 e 8% da população do país — cerca de 26 milhões de pessoas — já foi infectada com o coronavírus. Embora o encarregado dos CDCs, Robert Redfield, não tenha fornecido dados, sua afirmação reflete o que pesquisas semelhantes já revelaram: fora da cidade de Nova York, o maior epicentro da pandemia no planeta, o número total de infecções ainda é relativamente baixo. Mesmo supondo que todas as infecções mencionadas por Redfield resultem em imunidade duradoura — o que não é necessariamente o caso — a exposição ao vírus precisaria aumentar dez vezes na maioria das regiões norte-americanas para produzir imunidade de rebanho.

Em outras palavras, o vírus ainda tem espaço suficiente para continuar se propagando, mas a redução de danos pode ajudar a impedir que isso aconteça.

Gerando descrença

Desde o início do surto no país, os Estados Unidos têm contado com duas opções: mitigação por meio de ordens draconianas para que as pessoas fiquem em casa e contenção da propagação do vírus por meio de testes, isolamento voluntário e rastreamento de contatos. Essa estratégia dualista é como usar uma serra elétrica ou um bisturi para fabricar móveis da loja Ikea. Não é flexível o suficiente para se adaptar ao coronavírus, que sempre nos surpreendente, e pode ser facilmente prejudicada pela desinformação.

Por um lado, os governadores e as agências de notícias têm culpado repetidamente adultos com menos de 50 anos pelos recentes aumentos no número de casos de covid-19. Mas os jovens adultos representam cerca de 25% das internações por covid-19, de acordo com pesquisas semanais realizadas nos Estados Unidos desde o início de março, sugerindo que as taxas de infecção não aumentaram drasticamente. No Texas, uma das regiões com aumento mais expressivo de casos, a proporção de infecções entre jovens adultos era de 50% antes do início das medidas de isolamento social, em 1 de maio, e subiu apenas 3 pontos percentuais desde então. Da mesma forma, no Condado de Maricopa, epicentro da covid-19 em Phoenix e no Arizona, a proporção de casos entre jovens adultos aumentou apenas 15%.

“Quando se analisa todos os aspectos, faz sentido que essa seja a faixa etária com as taxas mais altas”, diz Madhivanan, considerando que a força de trabalho dos Estados Unidos é composta por pessoas mais jovens. “As taxas de infecção no início de qualquer surto sempre se concentram nas faixas etárias mais jovens e mais ativas, que mantêm maior contato social... Essas pessoas são os trabalhadores essenciais. Elas são a classe trabalhadora... São elas que precisam estar fisicamente presentes em seus empregos.”

No entanto, ao mesmo tempo, as mensagens à população tendem a dizer aos grupos mais jovens que eles serão poupados dos sintomas da covid-19 e de suas consequências mais graves, o que não é correto. Nenhum estudo rigoroso fundamenta a alegação de que pessoas mais jovens têm mais chances de serem assintomáticas. Em 25 de junho, os CDCs expandiram a lista de pessoas em risco de contrair a forma grave da covid-19, passando a incluir todos os adultos — e não apenas aqueles com mais de 65 anos — com a ressalva de que o risco aumenta com a idade. E embora as mortes sejam mais comuns entre os idosos, relatos clínicos de lugares fortemente atingidos, como a cidade de Nova York e a China, mostram que pessoas com menos de 50 anos normalmente sofrem sérias consequências da covid-19 e permanecem hospitalizadas pelo mesmo intervalo de tempo que pessoas mais velhas.

Os jovens sempre fizeram parte dessa crise, mas a dificuldade em transmitir mensagens referentes aos riscos e aos papéis desse grupo na pandemia tem gerado confusão.

“O que eles precisam entender é que fazem parte do processo da dinâmica de um surto”, afirmou Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, perante o Comitê de Energia e Comércio da Câmara dos Estados Unidos em 23 de junho, quando questionado sobre formas de fazer os adultos mais jovens seguirem as recomendações. “Voltar à normalidade será um processo gradual e progressivo e não devemos brincar com a sorte.”

O problema é transmitir a mensagem da maneira certa porque sinais ambíguos podem prejudicar a capacidade das pessoas de seguir conselhos de saúde pública. Pesquisas mostram que mensagens conflitantes podem causar dificuldades mentais e, na ausência de informações confiáveis e consistentes, as pessoas geralmente ouvem o que querem ouvir e se tornam propensas a buscar informações erradas.

“Quando as autoridades não transmitem mensagens consistentes, muitos rumores e teorias da conspiração podem acabar preenchendo o vazio e, com isso, as pessoas têm mais dificuldade para saber o que devem fazer”, observa Roxane Cohen Silver, professora de ciência da psicologia na Universidade da Califórnia em Irvine.

Seu laboratório mostrou como ciclos constantes de notícias que se concentram demasiadamente em questões negativas, como aquelas referentes à crise do ebola de 2014 ou aos tiroteios em massa, podem traumatizar coletivamente o público e até provocar sintomas de estresse pós-traumático. Embora sejam necessárias mais pesquisas, isso já está acontecendo em relação à covid-19, inclusive com o chamado “doomscrolling”, o consumo em excesso de publicações negativas nas redes sociais. A equipe de Cohen Silver alertou em maio que tanto a mídia quanto os especialistas em saúde têm um importante papel a desempenhar em relação às recomendações práticas sobre os riscos da pandemia, sem amplificar a histeria e a confusão.

“Seria bom se as pessoas monitorassem o tempo que passam consumindo notícias na mídia para garantir que estejam verificando fontes confiáveis e precisas”, afirma Cohen Silver.

30 milhões de testes ou nada?

A realização de testes seria uma área na qual mensagens claras poderiam ajudar, mas os Estados Unidos demoraram para encontrar o caminho certo. As falhas iniciais nos kits covid-19 dos CDCs retardaram o diagnóstico de novos casos no país, o equivalente a tentar apagar um incêndio sem água. Um relatório elaborado no fim do primeiro semestre por pesquisadores conceituados, reunidos pela Fundação Rockefeller, fazia um apelo por “uma drástica expansão” no número de testes, de um milhão por semana para três milhões por semana ao longo de dois meses. A Fundação fez uma previsão de reabertura de parte da economia se cerca de 1% da população norte-americana fosse testada e a medida fosse combinada com rastreamento de contatos “altamente preciso”.

No entanto, essa abordagem exigiria que 70% dos contatos estivessem cumprindo quarentena, diz Crystal Watson, pesquisadora sênior do Centro Johns Hopkins de Segurança da Saúde, que não participou do relatório. Se a epidemia avançar muito, o rastreamento de contatos não será bem-sucedido e, sem um rastreamento adequado, o relatório Rockefeller afirma que o país precisaria realizar 30 milhões de testes por semana para controlar a covid-19 sem uma vacina. O relatório apelidou o plano de “1-3-30”.

De acordo com o COVID Tracking Project (Projeto de Rastreamento da Covid, em tradução livre), os Estados Unidos ultrapassaram a marca de três milhões de testes no início de junho, depois de uma estabilização perto desse número desde meados de maio. E, no entanto, os casos estão aumentando novamente. O que houve de errado?

“Sim, ficamos repetindo o mantra ‘testes, testes, testes’ sem realmente entender o significado deles”, diz Michael Osterholm, diretor do Centro de Pesquisa e Políticas em Doenças Infecciosas (CIDRAP) da Universidade de Minnesota e coautor do plano 1-3-30. “Precisamos colocar menos ênfase no número de testes realizados em uma determinada região e nos perguntar quais testes são necessários.”

É aí que a redução de danos pode entrar em cena novamente. Mesmo os melhores testes de diagnóstico podem produzir resultados falso positivos. Portanto, se uma cidade, estado ou nação testar aleatoriamente uma grande parte da população, poderá colocar as pessoas erradas em quarentena. Em vez de testar às cegas, a prioridade deveria ser procurar indivíduos com sintomas da covid-19 o mais rápido possível e processar seus testes mais rapidamente, para que os casos confirmados possam entrar em quarentena mais cedo. É assim que lugares como Nova York, Coreia do Sul e União Europeia estão combatendo seus surtos.

“Estou muito preocupada com abordagens que afirmam que devemos testar pessoas que não apresentam sintomas ou que não atendam aos critérios epidemiológicos para o teste”, diz Jennifer Nuzzo, epidemiologista que lidera a Iniciativa Johns Hopkins Testing Insights no Centro de Segurança da Saúde.

Nuzzo recomenda mais de três milhões de testes por semana para erradicar a covid-19 das populações de maior risco, instituindo testes universais e regulares em casas de repouso, prisões e penitenciárias. Mas realizar 30 milhões de testes por semana seria impraticável, diz ela, porque não existem laboratórios suficientes no país capazes de processar as amostras.

“Para mim, se tivermos que realizar testes nesse nível, isso representaria um fracasso... porque significa que deixamos a epidemia avançar a ponto de ficar totalmente descontrolada”, afirma ela.

De acordo com ela, a melhor referência para monitorar o progresso é a taxa de positividade dos testes, isto é, a porcentagem de testes com resultados positivos. A Organização Mundial da Saúde recomenda aos estabelecimentos, antes da reabertura, que registrem uma porcentagem de testes com resultados positivos abaixo de 5% por pelo menos 14 dias seguidos, como fizeram muitos países onde o surto foi contido. Quando essa marca é ultrapassada, fica mais difícil impedir que a covid-19 seja transmitida de um grupo para outro. Uma alta taxa de positividade também pode significar que o surto esteja avançando incontrolavelmente e, como os hospitais tendem a priorizar pacientes com sintomas mais graves, muitos casos mais leves passam despercebidos, agravando a disseminação.

Mas, em vez de seguir a recomendação da Organização Mundial da Saúde, desenvolvida por um painel internacional de especialistas renomados, os CDCs e a Casa Branca disseram que os estados podem começar a reabrir assim que apresentarem uma taxa de positividade abaixo de 20%. “É um número escandalosamente alto”, diz Nuzzo. Dos 30 estados com casos em alta no momento, 16 estão com as taxas de positividade acima de 5%, e outros nesse infeliz grupo também apresentam tendência ascendente.

Maior clareza nas mensagens de saúde pública

O mundo teve grandes avanços no que diz respeito ao conhecimento sobre o coronavírus, mas essas conclusões levam tempo. Em poucos meses, os cientistas que ainda não tinham certeza sobre o uso de máscaras passaram a apoiar totalmente sua utilização. A opinião deles sobre uma “segunda onda” também está mudando — um conceito originalmente emprestado da história das pandemias de influenza. Do ponto de vista epidemiológico, as verdadeiras ondas se dissipam naturalmente sem muita intervenção humana, mas o coronavírus não segue esse padrão tradicional.

“Não vejo mais como uma onda. As ondas estão desatualizadas. Temos picos e depressões”, diz Osterholm, cujo centro expôs esses cenários em abril.

Tais observações produziram intervenções baseadas em evidências que podem restringir o coronavírus a níveis baixos, ganhando tempo para o desenvolvimento de uma vacina ou de outros medicamentos necessários para combater a covid-19. No entanto, falhas nas mensagens estão ameaçando esse progresso. Poucas pessoas notaram na semana passada quando os CDCs divulgaram diretrizes detalhadas sobre restaurantes porque a agência de saúde pública deixou de se fazer presente à população. A hesitação em relação ao uso de máscaras também foi assunto entre a população devido a diferenças políticas.

“A verdade é que realmente se trata de liderança”, diz Aileen Marty, professora da Universidade Internacional da Flórida, que atuou como consultora de doenças infecciosas em nível local, nacional e internacional. Todos os especialistas entrevistados para esta matéria concordaram com esse ponto, mas também disseram que a responsabilidade não é apenas da Casa Branca, mas também do Congresso, dos repasses feitos a agências de saúde e das anulações de veto, bem como dos governadores e sua capacidade de coordenar condados e cidades, além de todos os demais políticos nas outras esferas.

Nenhum dos especialistas acredita que um segundo bloqueio seja inevitável, mas os Estados Unidos enfrentam, mais uma vez, a perigosa perspectiva de sobrecarregar os hospitais, impedindo que os serviços de rotina avancem. Grande parte do auxílio emergencial oferecido durante a pandemia termina em julho e nosso retorno a ambientes fechados onde a doença pode avançar está cada vez mais perto à medida que o verão chega ao fim e o outono se aproxima no Hemisfério Norte.

“A realidade é que o vírus não se importa”, diz Shaman. “Ele apenas irá fazer o que sabe fazer.”

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