Na pandemia, médicos têm de lidar todos os dias com decisões que podem custar vidas

O objetivo da triagem é prestar atendimento ao maior número de pessoas, mas as equipes médicas lutam para se manter fiel a esse princípio à medida que o coronavírus avança.

Por Lois Parshley
Publicado 28 de jul. de 2020, 17:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Profissionais de saúde transferem um paciente na Unidade de Tratamento da Covid-19 no United Memorial Medical ...

Profissionais de saúde transferem um paciente na Unidade de Tratamento da Covid-19 no United Memorial Medical Center, em Houston, Texas, quinta-feira, 2 de julho de 2020. Apesar dos renomados hospitais e de ter a maior concentração de hospitais e laboratórios de pesquisa do mundo, a cidade de Houston está prestes a ficar sobrecarregada com o aumento exponencial de casos de coronavírus no Texas.

Foto de Mark Felix, AFP via Getty Images

A palavra “triagem” deriva de trier em francês, que significa “classificar”. A ideia se popularizou no fim dos anos 1700, durante a Revolução Francesa, quando a campanha de Napoleão Bonaparte no Egito e na Síria deixou muitos feridos.

Um cirurgião militar francês, Dominique Jean Larrey, teve a ideia de classificar os feridos para que o atendimento considerasse a gravidade dos ferimentos dos soldados, independentemente do posto ocupado. (Larrey chegou a prestar atendimento a soldados inimigos — conferindo a ele uma reputação que salvou sua vida ao ser capturado pela cavalaria prussiana.)

Dois séculos depois, o objetivo da triagem no atendimento médico de emergência permanece o mesmo: prestar atendimento ao maior número de pessoas. Porém, como grande parte dos Estados Unidos enfrenta um número crescente de casos de coronavírus, as equipes médicas lutam para se manter fiel a esse princípio.

Atualmente, dezoito estados estão na “zona vermelha”, classificação conferida pela força-tarefa da Casa Branca para o coronavírus, o que significa que tiveram mais de 100 novos casos a cada 100 mil pessoas na semana passada. Além disso, 14 estados estão atualmente com a ocupação de leitos de UTI acima de 70%.

O Texas parou de informar quais de seus hospitais excederam a capacidade de atendimento de pacientes com covid-19. Mas os sinais apontam para uma crise envolvendo alto número de casos: um hospital infantil em Houston agora está atendendo pacientes adultos, e o exército dos Estados Unidos está enviando equipes médicas para ajudar os médicos sobrecarregados no estado.

Nesta semana, um condado do Texas anunciou que sua unidade de tratamento de covid-19 estava cheia e que transferências para outros hospitais também lotados estavam cada vez mais difíceis. “Nossos médicos terão que decidir quem receberá tratamento e quem voltará para casa para morrer na companhia de seus entes queridos”, declarou o Memorial Hospital do Condado de Starr em um comunicado à imprensa.

No Arizona, os leitos das unidades de terapia intensiva estão com 90% da capacidade de ocupação, os necrotérios estão sem espaço e os condados estão encomendando caminhões refrigerados para armazenar corpos. Em meio ao surto, o Arizona foi o primeiro estado a adotar padrões de atendimento médico de crise — protocolos estabelecidos quando os sistemas de saúde ficam tão sobrecarregados por um evento catastrófico que não conseguem prestar atendimento normal aos pacientes.

Essas situações trágicas levantam questões importantes: qual a melhor forma de atender os pacientes quando não há recursos suficientes — e quem será responsável por tomar as decisões de triagem.

Imagens: Entre esperança e frustração, o dia a dia de hospitais na pandemia

Equilíbrio

A triagem envolve basicamente equilibrar as consequências, segundo Nathaniel Raymond, professor do Instituto Jackson para Assuntos Globais da Universidade de Yale, onde leciona resposta a desastres. Uma das terríveis realidades da triagem, diz ele, é que o ganho envolve uma perda: tratar uma pessoa geralmente significa deixar de tratar outra. Portanto, é importante que antes de uma emergência, os sistemas médicos tenham definido uma tomada justa de decisões e tenham comunicado essas diretrizes de forma transparente, tanto aos profissionais de saúde quanto ao público.

O primeiro princípio da triagem é tomar decisões éticas. Raymond chama isso de “problema Star Trek, entre Kirk e Spock”, referindo-se ao filme de 1982 em que os oficiais das naves estelares tiveram que escolher entre servir “as necessidades de muitos” contra as necessidades de apenas uma pessoa.

“A ética, em qualquer cenário, mas principalmente na triagem, existe para uma finalidade: identificar conflitos”, diz Raymond. “A ética não eliminará a tragédia. Em alguns casos, o exercício da ética contribuirá com a tragédia.”

Durante a pandemia, a primeira medida tomada pela equipe médica foi ampliar a capacidade do hospital rapidamente. O Sistema de Saúde para Veteranos do Exército em Ann Arbor, Michigan, implementou a medida com a construção de paredes, tubulações e dutos para manter a pressão negativa nas alas de tratamento de covid-19, um sistema que captura o ar a fim de reduzir a propagação viral. Mas a médica especialista em pneumologia Hallie Prescott diz que as melhorias não foram suficientes. Para dar certo, os planos de triagem devem ser avaliados e empregados com antecedência. Caso contrário, os responsáveis pelas decisões ficam sob alto nível de estresse.

Em março, quando os casos começaram a surgir em Michigan, Prescott fazia parte da equipe de triagem responsável pela alocação de recursos escassos, caso houvesse necessidade. A equipe simulou diversos cenários, como a falta de ventiladores, e preparou o sistema para ativar os padrões de atendimento de crise. Felizmente, eles ainda não tiveram que empregá-los.

“Ter que dizer a uma família que, devido às circunstâncias, não conseguiremos oferecer determinado tratamento — só de pensar em uma conversa dessas, já é uma forte motivação para fazer tudo o que for possível para evitar a escassez”, diz ela.

Planejar com antecedência também ajuda os hospitais a inovar. Quando a covid-19 atingiu Nova York, Kathy Hibbert, diretora das unidades de terapia intensiva do Hospital Geral de Massachusetts (MGH) em Boston, definiu um sistema bastante incomum: o MGH e outros hospitais regionais trabalharam juntos para transferir não apenas pacientes doentes, mas também recursos como ventiladores entre diferentes hospitais, com base na capacidade e necessidade. Durante o pico de contágio em Boston, essa medida ajudou o MGH a tratar 500 pacientes internados na UTI. Esse tipo de cooperação entre instituições concorrentes é raro.

“Que eu saiba, isso nunca aconteceu antes”, diz Hibbert. Ela recomenda que os médicos de outras áreas fortemente atingidas comecem a entrar em contato com seus pares imediatamente, “mesmo que ainda não estejam com a capacidade reduzida, para que os canais de comunicação já fiquem disponíveis”.

Fotos: Um dia e uma noite de trabalho no maior cemitério da América Latina

Um plano para os momentos mais difíceis

Prescott sabia que havia uma chance de seu hospital em Michigan ficar sobrecarregado com pacientes com covid-19 — com isso, a equipe precisaria de um plano para decidir quem receberia tratamento primeiro.

Nos Estados Unidos, a Associação Nacional de Profissionais de Atendimento Médico de Emergência incorporou em 2006 as melhores práticas amplamente aceitas no Algoritmo de triagem em massa de pacientes SALT (classificar, avaliar, intervir para salvar vidas, tratar e/ou transportar). Esse método classifica os pacientes em três categorias com base na gravidade do estado de saúde, avalia a necessidade dos pacientes de cada categoria e, em seguida, emprega intervenções que salvam vidas. Para ajudar a eliminar qualquer tipo de viés, o hospital de Prescott decidiu que os pacientes receberiam uma pontuação para entrar em uma das três categorias, mas dentro de cada categoria, eles seriam tratados em ordem aleatória. Ela diz que a equipe de triagem tentou ser especificar ao máximo as regras e suas implicações “para que todos possam ver que foram aplicadas de maneira justa”.

Mas mesmo com planos estabelecidos, a angústia moral de precisar escolher pacientes afeta muito o psicológico dos médicos, muitos dos quais já estão sofrendo com o desgaste causado por essa crise prolongada. Mesmo antes da pandemia, nos Estados Unidos já havia carência de profissionais de enfermagem, além da baixa disponibilidade de terapeutas respiratóriosfisioterapeutas, e médicos.

“O recurso mais escasso não é material, o recurso mais escasso é, de fato, humano”, diz Julia Lynch, professora de ciências políticas da Universidade da Pensilvânia que pesquisa políticas de saúde.

Entre março e maio deste ano, Lynch examinou 68 documentos de orientação de triagem em todo o país; apenas 37 relataram a falta de profissionais. Profissionais de saúde no Texas, Michigan, Pensilvânia e Massachusetts disseram à National Geographic que essa carência de profissionais está limitando sua capacidade de prestar atendimento e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos preveem carência de pessoal nos hospitais durante a pandemia.

“É mais fácil fabricar um ventilador do que capacitar um profissional de enfermagem para trabalhar na UTI”, explica Deena Kelly Costa, professora assistente da Escola de Enfermagem da Universidade de Michigan. “São entre dois a quatro anos para se formar e pelo menos seis meses de experiência para se tornar proficiente. É bastante tempo.”

Para piorar a situação, os vistos de centenas de médicos estrangeiros foram a princípio suspensos pelo governo Trump, apesar de haver uma isenção que deveria permitir a entrada desses profissionais. “Essa medida atinge mais fortemente os hospitais que dispõem de menos recursos, pois contam com profissionais que dependem dos vistos para atendimento em áreas carentes”, diz Hibbert.

Como calcular o valor de uma vida

Essa desigualdade de recursos afeta diretamente o atendimento aos pacientes. Como os Estados Unidos enfrentam uma curva crescente de casos de covid-19, Raymond afirma ser essencial considerar como “décadas de disparidade racial exacerbada contribuem com a vulnerabilidade”.

“É muito importante reconhecer que racionamos a assistência médica o tempo todo — nos Estados Unidos, esse racionamento acontece principalmente de acordo com a capacidade de pagamento”, diz Lynch. Ela acredita que as disparidades de longa data no acesso à assistência médica provavelmente agravaram a pandemia, porque a falta de atendimento médico regular e adequado deixou muitos norte-americanos com condições pré-existentes que os colocam no grupo de risco da covid-19.

No Arizona, por exemplo, as decisões de triagem envolvem a pontuação de cada paciente com base em uma avaliação médica que considera a probabilidade de o paciente morrer dentro de um a cinco anos. Embora essa decisão seja tomada hipoteticamente sem considerar raça ou etnia, as pessoas de cor são mais propensas apresentar condições, como doenças cardíacas, que reduzem a expectativa de vida.

Assim como diversos pesquisadores da área de saúde, Lynch ficou desanimada ao observar como o coronavírus intensificou as desigualdades estruturais. “Eu tinha certeza de que se outras pessoas soubessem que a desigualdade estava resultando na morte das pessoas, elas levariam essa questão mais a sério”, diz Lynch. Ela espera que o coronavírus esteja finalmente mostrando “como são terríveis as consequências da desigualdade”.

Diante da desigualdade, Raymond diz que é especialmente importante haver uma liderança nacional coordenada, que atualmente não existe. Ele se preocupa com padrões conflitantes de triagem, acrescentando que “já vimos isso acontecer com os testes” — por exemplo, com a alocação preferencial dos poucos testes disponíveis para atletas profissionais. Raymond acredita que com um sistema nacional baseado em regras e padrões transparentes, é mais possível tratar todos os pacientes de forma justa, garantindo que o atendimento não contemple apenas os mais ricos ou as pessoas mais bem relacionadas.

Em meio à crise dos Estados Unidos, os médicos que trabalham em locais com poucos recursos podem oferecer lições valiosas, segundo Tammam Aloudat, médico sírio e vice-diretor executivo da Access Campaign da organização sem fins lucrativos de assistência médica Médicos Sem Fronteiras/Médecins Sans Frontières (MSF).

“Minha última missão foi em um hospital pediátrico no sul do Níger, onde tínhamos 700 leitos e quase todos os pacientes tinham desnutrição grave ou malária e a mortalidade era bastante alta”, diz Aloudat. “Os médicos em campo precisavam tomar decisões que resultava na sobrevivência de alguns pacientes e na morte de outros, dependendo da situação e dos tratamentos disponíveis — esse é um cenário extremamente difícil e traumático”.

Ele sugere que a administração dos hospitais consulte os médicos e a comunidade para ajudar os profissionais a tomar decisões justas. Os profissionais de saúde também devem conversar sobre seus pacientes regularmente e tomar decisões em conjunto. Ao tentar decidir se deve remover um paciente com covid-19, cujo quadro não está melhorando, de um ventilador concorrido, ter várias opiniões pode ajudar a distribuir a carga moral e mental da decisão.

Aloudat concorda com Raymond sobre a importância de ter um sistema baseado em regras, mas enfatiza a importância de não ser muito prescritivo. Regras rígidas podem se tornar excessivamente restritivas quando empregadas em pandemias em curso, porque nem sempre está claro quais pacientes apresentarão melhora ou piora, diz ele: “Os profissionais em campo são os que mais conhecem o quadro de saúde de seus pacientes.”

Aloudat sugere a adoção de uma abordagem orientada pela justiça, mas utilitária. Ele conta que durante o surto de ebola de 2015 na África Ocidental, a capacidade de testagem ficou defasada, mas os médicos tinham que decidir quais pacientes seriam admitidos no hospital onde certamente ficariam expostos se já não estivessem doentes. A solução da MSF foi criar uma nova ala, onde as pessoas que aguardavam os resultados dos testes pudessem ficar em quarentena longe da comunidade.

“Gerações anteriores de médicos nos Estados Unidos não precisaram fazer esse tipo de equilíbrio”, diz Aloudat. Mas agora, toda decisão parece ter um preço: “Em um cenário de poucos recursos, em todos os níveis de atendimento, há sempre mais demanda do que oferta. É preciso escolher.”

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