Anticorpos podem não ser a chave no combate ao coronavírus – entenda por quê
As preocupações com o declínio de anticorpos podem ser exageradas, já que cada vez mais evidências mostram papel vital das células T na resposta imune à covid-19.
Eletromicrografia de varredura de um linfócito T (célula T) do sistema imunológico de um doador saudável.
AS FÉRIAS DE INVERNO chegaram em Estocolmo no final de fevereiro e Soo Aleman viu seus colegas suecos partirem da capital para férias em estações de esqui em toda a Europa. Os colegas de Aleman do Hospital Universitário Karolinska, onde trabalha como pesquisadora e médica, voltaram descansados e revigorados, com histórias para contar sobre as férias nas pistas de esqui. Mas alguns moradores da cidade também trouxeram um suvenir bastante indesejável: o coronavírus SARS-CoV-2.
Assim como grande parte do mundo, a Suécia rapidamente se viu em meio a um surto. Aleman interrompeu sua pesquisa sobre os vírus da hepatite B e C e passou a estudar a covid-19. Ela começou a examinar pacientes para detectar a nova infecção e saber mais sobre sinais da resposta imunológica do organismo. E foi então que resultados inusitados foram observados.
O organismo deve produzir anticorpos protetores, que impedem a invasão do vírus, e linfócitos T citotóxicos, que dizem às células humanas infectadas pelo vírus para se autodestruírem, evitando assim a disseminação do vírus. Normalmente, essas respostas imunes ocorrem em conjunto. Ao analisar um subconjunto de pessoas que testaram positivo para a covid-19, Aleman encontrou células T, mas nenhum anticorpo.
Outros cientistas ao redor do mundo também fizeram constatações semelhantes. Grande parte desse estudo ainda é preliminar e os cientistas ainda não sabem o que significa em termos de avaliação do desempenho da vacina ou do grau de proteção que ela oferecerá às formas mais graves da doença. Mas uma coisa está ficando clara: os anticorpos podem não ser os únicos responsáveis por oferecer imunidade à covid-19. “Não devemos nos apoiar cegamente nos testes de anticorpos”, diz Aleman.
“Não conheço outro vírus como este”, acrescenta Rory de Vries, virologista do Erasmus Medical Center, na Holanda. “Estamos vivendo um momento específico com um vírus específico.”
Eletromicrografia de varredura em cores de uma célula (em verde) em autodestruição ou “apoptose” após ser gravemente infectada com partículas do vírus SARS-CoV-2 (em amarelo), isoladas a partir da amostra de um paciente. Imagem capturada no Centro de Pesquisa Integrada do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) em Fort Detrick, Maryland.
Os Bs e Ts das células do sistema imunológico
Os gurus do bem-estar aconselham que cuidemos de nossos corpos como se fossem templos, mas quando se trata de lutar contra patógenos, o corpo está mais para um castelo sitiado. Como qualquer fortaleza, o organismo possui diversas linhas de defesa que o protegem de micróbios infecciosos.
O sistema imunológico inato é a primeira linha que se propõe a derrotar qualquer intruso em potencial, tornando o corpo o mais inóspito possível, incluindo elevando a temperatura por meio de febre e atacando os patógenos com substâncias químicas tóxicas. Ele atua como um vigia superprotetor e reage a qualquer sinal de célula ou proteína que não pertença ao organismo.
Até mesmo essas barreiras de segurança podem ficar sobrecarregadas e serem vencidas por patógenos que evoluíram furtivamente para escapar do sistema imunológico e suprimir as respostas inflamatórias que detêm os germes. Quando isso acontece, o sistema imunológico adaptativo entra em ação — e com isso se manifestam os anticorpos e as células T. Essas defesas surgem após a invasão de um patógeno e após o organismo entender o tipo de ameaça que ele representa.
As células B produzem anticorpos, pequenas proteínas que reconhecem determinadas partes de um patógeno conhecidas como epítopo. Se uma quantidade suficiente de anticorpos se liga a um vírus, ele não consegue entrar nas células do organismo para se multiplicar e, portanto, não causa doenças. Da mesma forma, os linfócitos T citotóxicos reconhecem os epítopos expostos pelas células infectadas por um vírus e dizem às células para se autodestruir.
Trata-se de um processo que evoluiu ao longo de centenas de milhões de anos e todas as diferentes partes do sistema imunológico geralmente trabalham em perfeita sintonia.
Quando o organismo luta ativamente contra um patógeno, ele mobiliza uma grande quantidade de anticorpos e células T. Nas semanas e meses seguintes, essa quantidade pode diminuir lentamente. Esse processo é normal e até benéfico, explica Nicolas Vabret, imunologista da Escola de Medicina Mount Sinai, em Nova York.
“Se não houvesse redução de anticorpos, com o tempo, haveria apenas anticorpos no sangue, sem espaço para mais nada”, explica ele.
Mas as defesas não desaparecem completamente após esse bloqueio inicial. Uma parte das células B e T produzem memórias de invasores anteriores, enquanto um nível baixo de anticorpos continua circulando no sangue. Por meses ou até anos, essas forças seguem vigiando a corrente sanguínea, o baço, a medula óssea e os linfonodos ligados a diversos órgãos após o fim da infecção. Desta forma, se o organismo se deparar com o mesmo patógeno, poderá responder mais rápido.
Às vezes, uma pessoa infectada novamente pode não apresentar nenhum sintoma. Em outros casos, a doença pode ser leve. A quantidade e o tipo de anticorpos e células T presentes após uma infecção podem mostrar aos cientistas o grau de proteção que a vacina oferecerá.
Fotos de microscópio eletrônico mostram partículas do coronavírus
Mais do que anticorpos em declínio
Durante as epidemias, os cientistas historicamente se concentraram nas respostas dos anticorpos, em vez das células T, porque os anticorpos são mais fáceis de analisar em laboratório. Os anticorpos podem ser detectados diretamente em uma amostra de sangue, explica Daniela Weiskopf, imunologista do Instituto La Jolla de Imunologia, na Califórnia.
Para detectar uma resposta das células T, Weiskopf precisa reconstituir a série de etapas que as células T realizam para identificar um patógeno. Primeiro, ela sintetiza uma biblioteca de todos os possíveis minúsculos epítopos que as células T conseguem reconhecer. Em seguida, precisa isolar as células T do sangue e testá-las para detectar todos os diferentes epítopos das proteínas, para identificar quais deles interagem com as células.
Na maioria dos vírus, as respostas dos anticorpos e das células T, em geral, são equivalentes em termos de tempo e intensidade, portanto, os cientistas normalmente utilizam apenas os testes de anticorpos por serem mais rápidos, baratos e fáceis de administrar. Alguns kits de teste de detecção de anticorpos fornecem os resultados em algumas horas ou até minutos, já os testes de células T precisam ser analisados por um laboratório especializado.
“Não é nada prático testar a resposta das células T em grandes amostras”, diz Weiskopf.
Mas quando Aleman e outros virologistas e imunologistas começaram a estudar mais a fundo a covid-19, uma narrativa diferente surgiu. Aleman e seus colegas começaram a estudar como a imunidade se desenvolveu em pessoas com teste positivo para SARS-CoV-2, bem como em seus contatos próximos, aqueles que podem ter ficado expostos ao vírus, mesmo não ficando doentes. Como esperado, os pacientes hospitalizados desenvolveram fortes respostas de anticorpos e células T ao SARS-CoV-2. Mas dois terços dos contatos próximos que eram assintomáticos apresentaram uma resposta de células T posterior, embora os testes não tenham detectado nenhum anticorpo.
“Foi bastante inusitado e surpreendente”, diz Aleman. Os resultados do estudo, divulgados em 29 de junho pelo serviço médico medRxiv, site que disponibiliza trabalhos ainda não revisados por pares e não publicados, não revelaram se essas pessoas nunca desenvolveram anticorpos ou se os anticorpos foram reduzidos rapidamente a níveis indetectáveis. Apesar disso, o relatório imediatamente despertou preocupações sobre o desenvolvimento de uma vacina, uma vez que estimular a produção de anticorpos é estratégia fundamental para que as imunizações ofereçam proteção contra doenças.
Esse aparente declínio nos anticorpos foi relatado novamente em 21 de julho, em 34 indivíduos com infecções leves por covid-19. Se algumas pessoas infectadas com o SARS-CoV-2 não produzem anticorpos, é possível que elas não respondam a uma vacina.
As células T podem salvar?
O imunologista Adrian Hayday, do King's College London, está menos preocupado. Mesmo que as células T sejam mais difíceis de quantificar e talvez não consigam evitar uma segunda infecção, elas desempenham um papel importante na capacidade do organismo de lembrar de infecções anteriores e oferecer proteção contra doenças graves.
“Parece que as células T podem ser realmente úteis nesse tipo de infecção”, diz Hayday, mencionando vários novos artigos sobre SARS-CoV-2 e outros coronavírus como evidência.
O SARS-CoV-2 é um dos sete coronavírus conhecidos que podem infectar humanos. O vírus SARS original desapareceu após ter causado grandes surtos em 2003, e o vírus que causa a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) infectou apenas um pequeno número de pessoas no Oriente Médio e Norte da África. Quatro outros coronavírus circulam amplamente e causam o resfriado comum.
A imunidade aos coronavírus que causam resfriado comum dura apenas um ou dois anos, e é por isso que resfriados leves e congestão nasal continuam presentes na vida de todos. No entanto, os pacientes infectados com o vírus SARS original ainda tinham células T de memória no organismo que responderam às proteínas do vírus 17 anos depois, segundo um recente estudo do imunologista Antonio Bertoletti, da Duke-NUS Medical School, em Singapura, publicado na revista científicaNature. Essas mesmas células T de memória também reagiram ao SARS-CoV-2. Bertoletti diz tratar-se de um bom presságio para a covid-19.
“Mesmo que as células T não impeçam uma segunda infecção, a doença pode ser mais leve”, diz ele.
Da mesma forma, Leif Erik Sander, infectologista do Charité University Hospital em Berlim, constatou que 83% de 25 pacientes com covid-19 na Alemanha produziram células T auxiliares, uma prima da variedade citotóxica que recebeu essa denominação por sua capacidade de estimular a produção de anticorpos. Essas células foram capazes de desenvolver uma resposta à proteína de espícula que reveste o SARS-CoV-2. Sander e sua equipe também constataram que um terço das 68 pessoas que nunca haviam sido expostas ao novo coronavírus também tinham essas células T auxiliares. Embora Sander ainda não possa afirmar, ele suspeita que essas células T foram originalmente produzidas para oferecer proteção contra o coronavírus que causa o resfriado comum.
Um artigo do periódico Science publicado em 4 de agosto por Weiskopf e colegas apoia essa hipótese e sugere que a imunidade preexistente a esses coronavírus que causam resfriado comum pode ajudar a explicar por que algumas pessoas não apresentam sintomas. Como o vírus que causa a covid-19 possui certa semelhança com esses outros vírus, algumas células T podem responder a ambos os patógenos. No entanto, ainda é cedo para comprovar esse conceito.
“Nós desconhecemos a relação das células T com a gravidade da doença”, diz ele.
Weiskopf, Alessandro Sette, imunologista do Instituto La Jolla, e de Vries também realizaram uma análise detalhada da resposta imune de 20 adultos que se recuperaram da covid-19. Eles constataram que, embora os anticorpos tenham se desenvolvido principalmente para combater a proteína de espícula que reveste o vírus, as células T conseguiram responder aos epítopos contidos dentro e fora do vírus. Os resultados do estudo foram publicados na revista científica Cell.
É uma boa notícia para o desenvolvimento de uma vacina, afirma de Vries, porque mesmo que as proteínas de espícula externas sofram mutação com o tempo, as células T ainda serão capazes de proporcionar uma certa proteção, já que reconhecem outras partes do vírus menos propensas a alterações.
Mas ainda não é possível afirmar o que essas respostas das células T significam em termos de prevenção e infecção, ou o tempo que podem durar. As possíveis respostas das células T preexistentes ainda podem afetar o grau de proteção da vacina, diz Sander.
“Estamos lidando com esse vírus há seis meses”, diz Weiskopf, “então não podemos prever o que acontecerá daqui a 12 meses”.