Plasma sanguíneo anunciado contra a covid-19. Será que funciona?

EUA concederam autorização em caráter de emergência para uso de plasma convalescente, mas não há consenso científico sobre o tratamento.

Por Michael Greshko
Publicado 27 de ago. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
O plasma convalescente tem sido usado há mais de um século no combate a doenças infecciosas, ...

O plasma convalescente tem sido usado há mais de um século no combate a doenças infecciosas, mas será eficaz no combate à covid-19?

Foto de Photogrpah by Sergei Bobylev, TASS via Getty Images

HAVIA MUITA ESPERANÇA no início deste ano de que a transfusão da parte líquida do sangue de pacientes recuperados de covid-19 a pessoas infectadas poderia curar os casos mais graves do vírus pandêmico. Os médicos recorrem a esse antigo tratamento — conhecido como plasma convalescente — para combater surtos desde antes da pandemia de gripe de 1918. Como esse plasma sanguíneo é repleto de anticorpos capazes de identificar e destruir germes invasores como o coronavírus, essa terapia tem sido utilizada há muito tempo como uma maneira simples de conferir imunidade.

Contudo, meses após o início dessa iniciativa, os dados sobre plasma convalescente ainda não confirmaram sua eficácia no tratamento da covid-19, apesar dos mais de 70 estudos clínicos em andamento em todo o mundo. Agora, uma dessas pesquisas encontra-se no centro de um acalorado debate acadêmico e político.

Em 23 de agosto — um dia após acusar a FDA, Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos, de protelar o fornecimento de terapias e vacinas contra o coronavírus — o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou a autorização em caráter de emergência da FDA para o tratamento da covid-19 com plasma convalescente.

A última aposta do governo Trump na corrida para aprovar terapias contra a pandemia foi baseada predominantemente nos resultados preliminares favoráveis divulgados no início deste mês pela Clínica Mayo, centro médico reconhecido internacionalmente com sede em Rochester, Minnesota. O estudo, ainda não revisado por pares, concluiu que a transfusão de plasma em até três dias após a internação reduziu a taxa de mortalidade de pacientes em 3,2%.

Mas ainda que esse estudo tenha sido financiado por milhões de dólares do governo dos Estados Unidos e envolvido dezenas de milhares de pacientes norte-americanos, ele apresenta um erro crasso: o estudo não possui grupo de controle — pessoas que não receberam plasma — para servir de comparação. Essa falha dificulta a interpretação dos resultados da Clínica Mayo e só vem a se somar aos numerosos estudos preliminares sobre plasma convalescente repletos de deficiências.

“Espero que as instituições e os indivíduos reconheçam que a questão está longe de ter sido resolvida”, afirma Daniel Culver, pneumologista da Clínica Cleveland em Ohio. Embora ele admita que a pesquisa sobre plasma convalescente seja promissora de maneira geral, ele e outros temem que a autorização da FDA seja encarada como um aval irrestrito, fazendo com que mais pacientes e médicos solicitem o tratamento ainda não comprovado.

Sobrecarga de uso compassivo

O projeto da Clínica Mayo foi desenvolvido a partir de uma iniciativa popular de médicos de todo o país, que definiram dois métodos para implantação imediata de plasma convalescente. Um deles foi bem avaliado em estudos clínicos e, para o outro, a equipe desenvolveu uma rede de programas de “uso compassivo” ou “acesso expandido” para o fornecimento de plasma a pacientes com sintomas potencialmente fatais de covid-19, longe das aprovações tradicionais da FDA.

Um método, no entanto, acabou ofuscando o outro. Embora os programas de acesso expandido tenham superado em muito as expectativas de seus idealizadores, a falta de infraestrutura e financiamento exclusivo atrasou as iniciativas de realização de estudos clínicos.

“Com essa experiência, descobri que o sistema não foi projetado para a implementação rápida de estudos clínicos”, afirma Liise-anne Pirofski, especialista em anticorpos e chefe da divisão de doenças infecciosas da Faculdade de Medicina Albert Einstein, na cidade de Nova York. “Não foi por falta de protocolo, nem de pesquisadores dispostos e muito menos de pacientes dispostos —não havia financiamento e tampouco uma supervisão organizada.”

Conforme publicado na revista WIRED em 21 de agosto, programas de acesso expandido nos Estados Unidos foram rapidamente ampliados a mais de 2,7 mil hospitais, alguns dos quais dispunham de pouca estrutura ou experiência técnica para conduzir estudos clínicos. Apenas o programa da Clínica Mayo recebeu US$ 48 milhões do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos para usar plasma convalescente em pacientes internados.

“Sua popularidade passava a impressão de ser o elixir da cura, o que não é verdade”, afirma Mila Ortigoza, especialista em doenças infecciosas do Centro Médico Langone da Universidade de Nova York. “De fato, existem indícios — todos os estudos não randomizados conduzidos até o momento apresentaram resultados favoráveis ao plasma — mas não é possível afirmar que sua eficácia seja comprovada.”

O padrão de excelência para evidências médicas inclui um estudo abrangente no qual indivíduos com uma doença recebem aleatoriamente uma terapia real ou um placebo como parte de um grupo de controle. Contudo, até o momento, pesquisadores de todo o mundo conduziram apenas estudos pequenos ou observacionais, como o da Clínica Mayo, sem um placebo. Sem um grupo de controle, é difícil saber se as pessoas teriam melhorado sozinhas ou se teriam os mesmos resultados sem receber plasma convalescente.

“Não há como saber se o plasma convalescente foi útil, prejudicial ou se não fez diferença às dezenas de milhares de pessoas que o receberam. Não há simplesmente como ter uma noção”, afirma Martin Landray, professor de cardiologia de Oxford, um dos pesquisadores líderes dos estudos denominados RECOVERY sobre a covid-19 no Reino Unido.

Em 30 de julho, um grupo liderado por Michael Joyner, da Clínica Mayo, enviou um artigo de revisão ao site de estudos preliminares medRxiv que alega que, quando integrados os resultados dos estudos em pequena escala, é notado um possível benefício do uso de plasma convalescente em pacientes com covid-19. Em um memorando de 17 páginas, a FDA explicou sua interpretação sobre os mesmos estudos e pesquisas, além dos resultados mais abrangentes de uso expandido da Clínica Mayo. Pirofski, coautora do artigo de revisão, afirma que a autorização é justificada por seu mérito, apesar da visível pressão sobre a FDA.

“Acredito na ciência, acredito em dados e tenho todas as razões para acreditar que essa decisão contou com ambos”, afirma ela. “Houve uma confluência de eventos lastimáveis.”

Como a decisão da FDA afeta a população

A autorização de emergência da FDA não significa uma “aprovação da FDA”, um limiar rigoroso ainda não alcançado até o momento por nenhuma terapia para a covid-19 nos Estados Unidos. A FDA expediu uma declaração afirmando que “o plasma convalescente da covid-19 ainda não representa um novo método terapêutico com base nas atuais evidências disponíveis”, porém “é plausível concluir que os possíveis benefícios conhecidos do plasma convalescente superam os possíveis riscos conhecidos”.

Ainda assim, o apoio do governo Trump ao plasma convalescente — e sua defesa anterior do tratamento agora descartado com hidroxicloroquina — levaram os cientistas a se perguntar se o presidente pressionará a FDA para antecipar as aprovações para antes das eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos. Em uma matéria de 23 de agosto, o  jornal Financial Times divulgou que oficiais do governo Trump estariam cogitando antecipar a vacina contra a covid-19 para outubro, bem antes da conclusão dos estudos clínicos em larga escala. Em 20 de agosto, a agência de notícias Reuters informou que um alto funcionário da FDA havia ameaçado renunciar se a agência aprovasse prematuramente uma vacina não comprovada. O governo federal já reservou US$ 8 milhões para anúncios na internet e no rádio solicitando doações de plasma aos norte-americanos, apesar da falta de aprovação.

Por ora, Christian Bime, pesquisador da Universidade do Arizona e diretor médico de sua UTI, não está preocupado com a pressão política por confiar nos cientistas que participam do processo.

“Acredito que os cientistas agirão corretamente”, escreveu por e-mail Bime à National Geographic. “Há muito em jogo e as consequências são grandes demais para os cientistas não respeitarem as melhores práticas.”

A confusão em torno do plasma convalescente destaca um dos muitos obstáculos na resposta dos Estados Unidos à covid-19: a falta de um processo nacional coordenado de estudos clínicos.

Pirofski atualmente é a pesquisadora líder de um estudo randomizado e controlado sobre plasma convalescente que recrutou 190 pacientes até agora. Em 17 de abril, quando o estudo foi iniciado na cidade de Nova York, não havia financiamento federal. Apesar da pressa de Pirofski, Ortigoza e seus colegas em recrutar pacientes, os casos na cidade de Nova York reduziram em questão de semanas após o início do estudo, retardando bastante seu progresso. Só agora, meses depois, foi obtido financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos para expandir a pesquisa a Connecticut, Flórida e Texas. “Parece que estamos sempre um passo atrás”, afirma Pirofski.

Médicos entrevistados pela National Geographic disseram que aguardam estudos clínicos randomizados para confirmar a eficácia do plasma convalescente.

“Há riscos hipotéticos e reais decorrentes da transfusão de plasma humano e possivelmente ainda mais riscos apresentados pelo plasma de baixa titulação (plasma com baixas concentrações de anticorpos) sem a devida avaliação”, explica Culver. “Esse risco só pode ser avaliado por meio de estudos controlados e randomizados.”

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