Por que informações falsas sobre a origem da covid-19 continuam viralizando nas redes sociais

Uma nova informação falsa a respeito do coronavírus está sendo amplamente divulgada. Saiba como verificar a veracidade das notícias.

Por Monique Brouillette, Rebecca Renner
Publicado 30 de set. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
O morcego-ferradura chinês (Rhinolophus sinicus) pode ser encontrado do norte da Índia ao sul da China. ...

O morcego-ferradura chinês (Rhinolophus sinicus) pode ser encontrado do norte da Índia ao sul da China. A espécie foi assim batizada devido às fendas nasais em forma de ferradura. São frequentemente encontrados em cavernas ou em locais de características semelhantes e se alimentam principalmente de pequenas mariposas. É possível que a pandemia tenha sido desencadeada por morcegos-ferradura infectados com coronavírus na China.

Foto de MerlinTuttle.org, Science Source

HÁ VINTE ANOS, o cientista de dados Sinan Aral começou a perceber o início de uma tendência que agora define a nossa era de redes sociais: a rapidez com que informações falsas são disseminadas. Ele observou notícias falsas esquentarem debates na internet assim como pequenas faíscas se transformam em um grande incêndio. Atualmente diretor da Iniciativa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) para Economia Digital, Aral acredita que um conceito que ele chama de hipótese da novidade demonstra esse contágio viral quase irrefreável de notícias falsas.

“A curiosidade humana é instigada por novidades, por tudo o que é novo e inesperado”, constata Aral. “Ganhamos moral quando compartilhamos notícias porque elas dão a impressão de que estamos por dentro ou temos acesso a informações privilegiadas”.

E foi assim que o relatório de Yan entrou em cena. Em 14 de setembro, um artigo publicado no Zenodo, site de acesso aberto para o compartilhamento de pesquisas científicas, alegava que as evidências genéticas demonstravam que o SARS-CoV-2 havia sido criado em laboratório, e não se originado a partir de uma troca de hospedeiro natural entre animais. A pesquisa de 26 páginas, liderada pelo virologista chinês Li-Meng Yan, pesquisador de pós-doutorado que deixou a Universidade de Hong Kong, não foi revisada por pares e alega que essa evidência genética foi “censurada” em revistas científicas.

A National Geographic entrou em contato com Yan e os outros três autores do relatório para que comentassem o assunto, mas não obteve resposta.

Um caos generalizado rapidamente tomou conta do Twitter. Virologistas renomados, como Kristian Andersen, da Scripps Research, e Carl Bergstrom, da Universidade de Washington, pronunciaram-se na internet e criticaram o artigo por sua falta de embasamento científico. A principal crítica foi que o relatório ignorou a vasta literatura publicada sobre o que já se sabe a respeito das formas de circulação dos coronavírus nas populações de animais selvagens e da tendência de passarem a utilizar humanos como hospedeiros, incluindo publicações recentes sobre a origem do SARS-CoV-2.

Os especialistas também destacaram as teorias de conspiração absurdas citadas no relatório, além de falsas acusações sobre jornais acadêmicos se aliarem a conspiradores para censurar evidências importantes.

Em julho, David Robertson, pesquisador de genômica viral da Universidade de Glasgow, escreveu um artigo revisado por pares na revista científica Nature Medicine que demonstrou que a linhagem por trás do SARS-CoV-2 e seu ancestral mais próximo conhecido, um vírus chamado RaTG13, circulam em populações de morcegos há décadas. Os virologistas acreditam que esse parente, que é 96% idêntico ao novo coronavírus, provavelmente se propagou e evoluiu em morcegos ou hospedeiros humanos. Depois disso, não foi detectado por cerca de 20 anos até se adaptar à sua forma atual e causar a pandemia em curso.

O relatório de Yan apresenta essa hipótese como controversa e afirma que o RaTG13 também foi criado em laboratório, mas essas duas alegações são refutadas pelo número esmagador de evidências genéticas publicadas sobre o SARS-CoV-2 e seus progenitores. Além disso, o relatório foi financiado pela Rule of Law Society, uma organização sem fins lucrativos fundada pelo ex-estrategista-chefe da Casa Branca, Steve Bannon, que foi preso por fraude recentemente. Essa é outra razão pela qual muitos virologistas estão questionando a veracidade das alegações de Yen.

“É uma verdadeira invasão de pseudociência”, lamenta Robertson. “Esse artigo escolheu a dedo alguns exemplos, ignorou evidências científicas e apresentou um cenário absurdo.”

A National Geographic entrou em contato com outros virologistas renomados e pesquisadores de notícias falsas para entender melhor o ponto de partida do relatório de Yan e em que momento ele se desviou da veracidade dos fatos. Durante a conversa, os especialistas ofereceram dicas para combater informações falsas sobre o coronavírus.

O que se sabe a respeito da origem do SARS-CoV-2?

Os coronavírus existem na natureza e podem infectar muitas espécies diferentes. Coronavírus semelhantes ao SARS-CoV-2 são encontrados em morcegos, porcos, gatos e furões, para citar alguns. A origem mais amplamente aceita do SARS-CoV-2, com base em sua genética, é que seus ancestrais se moveram entre diferentes animais selvagens — trocando características genéticas à medida que avançavam — antes de infectarem os humanos.

Os pesquisadores ainda não encontraram o parente direto do SARS-CoV-2 em animais silvestres, embora seus parentes mais próximos existam em morcegos. O vírus pode ter passado por um hospedeiro intermediário — pangolins figuram entre os acusados — e evoluído para se tornar mais eficiente em infectar humanos. Pode também ter saltado diretamente dos morcegos para os humanos, considerando casos anteriores em que isso aconteceu. Após o surto inicial de SRAG na China, há 20 anos, os pesquisadores começaram a estudar morcegos silvestres em cavernas locais e a população que vive perto desses animais. Um estudo de 2018 encontrou os parentes genéticos do vírus SARS original em mamíferos voadores — assim como anticorpos específicos, um sinal residual de infecção, em humanos que viviam nas proximidades.

Encontrar respostas para os acontecimentos específicos que resultaram na pandemia é como procurar “agulha no palheiro”, segundo Ian Lipkin, epidemiologista da Universidade de Columbia e coautor de um artigo incipiente na revista científica Nature Medicine sobre as origens naturais do SARS- CoV-2. O relatório de Yan alega que esse relatório da Nature Medicine é caracterizado por “conflito de interesses” devido ao trabalho de Lipkin na contenção da epidemia de SRAG em 2002 e 2003, pelo qual ele recebeu um prêmio do governo chinês. Lipkin contesta que a acusação é “descabida” e, quando questionado sobre sua opinião a respeito do papel da bioengenharia na origem do SARS-CoV-2, ele acrescenta: “Não há dados que confirmem a hipótese”.

Descobrir a origem natural do coronavírus provavelmente exigirá uma amostragem de animais em grande escala — incluindo populações de morcegos e humanos — na China para rastrear a evolução do novo coronavírus. A Organização Mundial da Saúde (OMS) está montando uma equipe para conduzir a pesquisa na China, embora nenhum cronograma tenha sido divulgado até o momento.

O que diz o relatório de Yan?

O relatório de Yan tenta abordar a questão de uma maneira diferente, e começa com a afirmação suspeita de que o SARS-CoV-2 não é tão eficaz assim em infectar morcegos e que, dessa forma, não poderia ter surgido a partir desses mamíferos. Mas especialistas ressaltam que os vírus estão em constante evolução e seguem se espalhando entre as espécies. A troca inicial de hospedeiro entre morcegos e humanos pode ter acontecido décadas atrás, dando ao vírus tempo suficiente para aperfeiçoar, por meio da seleção natural, sua proteína da espícula, a parte que utiliza para entrar nas células, e assim contaminar humanos.

Outro argumento apresentado pelo relatório de Yan foca na presença de um “local de clivagem de furina” na proteína da espícula, uma característica genética preocupante, que parece aumentar a capacidade do vírus de entrar nas células. O relatório afirma que essa característica não foi encontrada em nenhum outro coronavírus e que, portanto, deve ter sido modificada. Contudo, a afirmação contradiz as descobertas: locais de clivagem semelhantes são encontrados em coronavírus de morcegos em populações silvestres.

“Acho que vou enlouquecer se precisar explicar o fato de que muitos vírus possuem locais de clivagem”, comenta Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Columbia.

O relatório também afirma que o SARS-CoV-2 é, “de modo suspeito”, semelhante a duas cepas de coronavírus de morcego, chamadas ZC45 e ZXC21, que foram descobertas por cientistas em laboratórios militares na China. Os autores afirmam que essas cepas poderiam ter sido utilizadas como um modelo para clonar um vírus mais mortal. Mas outros cientistas refutam essa teoria.

Primeiro, as duas cepas diferem em até 3,5 mil pares de bases de nucleotídeos, as “letras” químicas utilizadas no código genético. Sendo assim, seriam um ponto de partida ruim para a bioengenharia do SARS-CoV-2. Projetar um vírus em que é necessário substituir mais de 10% de seu genoma é ineficiente, senão impossível, de acordo com Rasmussen e vários outros virologistas. O fato de essas cepas terem sido identificadas em um laboratório militar chinês também é “apenas circunstancial”, afirma Robertson. Os coronavírus dos morcegos estavam circulando em morcegos silvestres e poderiam ter sido descobertos por qualquer pessoa.

O relatório também argumenta que o SARS-CoV-2 possui “locais de enzimas de restrição” ou sequências genéticas que podem ser cortadas e manipuladas por enzimas. Essas características genômicas às vezes são utilizadas na clonagem, e o relatório afirma que sua presença indicaria um vírus modificado. Por sua vez, os especialistas explicam que esses locais ocorrem naturalmente em todos os tipos de genomas, de bactérias a humanos.

“Parece um estudo legítimo porque muitos jargões técnicos são utilizados. Porém, grande parte do que defendem não faz nenhum sentido”, diz Rasmussen. Ela acrescenta que o tipo de clonagem que utiliza enzimas de restrição está muito desatualizado e, portanto, é improvável que seja utilizado para produzir uma arma biológica viral. E, para início de conversa, criar um vírus em laboratório não é algo simples de ser feito. Os pesquisadores ainda estão tentando entender as razões moleculares e genéticas para alguns vírus serem mais infecciosos do que outros. Adicionar características a um vírus para torná-lo mais transmissível, por exemplo, é conhecido como pesquisa de ganho de função, algo altamente polêmico dado o seu potencial de fabricar armas biológicas, que inclusive foi proibido nos Estados Unidos por um tempo, limitando os dados disponíveis sobre seu funcionamento.

Mas como o relatório de Yan foi publicado apesar de tudo isso?

Uma marca registrada da pandemia tem sido o rápido fluxo de pesquisas e o compartilhamento gratuito de informações para aumentar o ritmo das descobertas. A prática de disponibilizar “pré-publicações” — relatórios que não foram revisados por colegas da academia — tem suas vantagens.

“Para a comunidade científica, isso tem sido muito útil”, esclarece Robertson, uma vez que mais pesquisadores podem analisar rapidamente os dados disponíveis. Mas as pré-publicações também possuem um lado negativo. As informações falsas são outra marca registrada da pandemia e essa prática teve sua cota de responsabilidade no aumento das notícias com afirmações não comprovadas, incluindo a mutação do vírus para uma forma mais mortal, sua origem em cobras ou a noção de que o vírus seria menos letal do que realmente é.

“Pode ser muito difícil distinguir notícias verídicas de notícias falsas”, acrescenta, mencionando o fato de que até mesmo alguns artigos revisados por pares sobre o coronavírus contêm erros devido à pressa de publicar. Essa combinação de erros honestos e propositais pode apenas indicar uma tendência maior na publicação de artigos durante uma crise em rápida evolução.

“Não acredito que o sistema de pré-publicação esteja sendo transformado em uma arma de notícias falsas, já que todos os veículos de informação estão sendo utilizados para disseminá-las: todos mesmo, de redes sociais e manipulação da mídia convencional a pré-publicações e periódicos científicos revisados por pares”, conclui Rasmussen.

Notícia ruim chega rápido

Apesar da desaprovação dos especialistas, o relatório de Yan e outras informações falsas semelhantes sobre o coronavírus, como o documentário Plandemic, ganharam força nas redes sociais porque se aproveitam da vulnerabilidade das emoções humanas. Essa característica pode levar à rápida disseminação de boatos.

Em 2018, Aral e sua equipe do MIT Media Lab testaram sua hipótese da novidade, analisando 11 anos de dados do Twitter, ou cerca de 4,5 milhões de tuítes. Seus cálculos mostraram uma correlação surpreendente: “O que descobrimos foi que as notícias falsas eram divulgadas em locais mais distantes, de forma mais rápida, mais profundamente e mais amplamente do que informações verdadeiras em todas as categorias de informações que estudamos, às vezes em uma ordem de magnitude”, ele explica.

Há mais em jogo do que apenas notícias, assunto discutido por Aral em seu novo livro The Hype Machine. A forma como as pessoas reagem a histórias tocantes nas redes sociais é intensa e previsível. As respostas a um tuíte ficam repletas de críticas e ódio e as notícias falsas passam a ter 70% mais chance de serem retuitadas do que notícias verdadeiras.

Uma combinação complicada de fatores psicológicos entra em ação toda vez que leitores decidem compartilhar notícias, e pessoas inteligentes podem se tornar parte do ciclo de desinformação.

Um fator dessa equação é a negligência do conhecimento: “isso acontece quando as pessoas não conseguem acessar o conhecimento previamente armazenado e aplicá-lo de forma adequada em uma situação do presente”, de acordo com Lisa Fazio, professora assistente de psicologia e desenvolvimento humano na Universidade Vanderbilt.

O cérebro humano procura opções fáceis. Quem recebe as informações pula etapas, geralmente compartilhando matérias com manchetes alarmantes antes de se aprofundar no assunto. Mesmo quando os usuários de redes sociais leem o que compartilham, sua mente racional encontra outras maneiras de fazer menos esforço.

Somos propensos, por exemplo, a adotar um viés de confirmação, uma forma de interpretar novas informações como uma validação de nossas noções preconcebidas. O raciocínio motivado também é ativado, e o cérebro tenta unir essas novas peças conceituais do quebra-cabeça a todo custo, fazendo conexões mesmo quando elas não existem.

O fator mais potente que distorce o pensamento crítico é o efeito da verdade ilusória, que Fazio define com o seguinte exemplo: “se você ouvir algo duas vezes, é mais provável que acredite ser verdade do que se tivesse ouvido apenas uma vez”. Assim, a prevalência potencializa notícias falsas e o que antes era apenas eco se transforma em um redemoinho de descrença que cresce sozinho.

Se a notícia envolve política, ganha mais um impulso para rápida disseminação. “Notícias envolvendo política são divulgadas mais rapidamente do que o resto das notícias falsas”, complementa Aral. “Podemos afirmar que são como um para-raios por envolverem muita emoção”. Segundo Aral, o relatório de Yan possui todos as características de uma notícia falsa que foi pensada para viralizar.

“A respeito dessa matéria específica, eu diria que são aplicáveis todas essas análises que focam nos motivos de as notícias falsas se espalharem”, explica. “É chocante, ofensivo. É extremamente relevante para os debates políticos do momento, mas, sem dúvidas, o coronavírus está na mente de todos. Tentar entender sua origem rende uma grande matéria.”

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