Reconhecimento facial com máscara já é uma realidade – gostemos ou não

Novos algoritmos conseguem monitorar quem está seguindo ou não as diretrizes de saúde pública. A prática levanta questões já debatidas a respeito da privacidade de dados.

Por Wudan Yan
Publicado 17 de set. de 2020, 07:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

O software da Tryolabs possui dois componentes principais: os algoritmos de “posicionamento” decifram diferentes partes do corpo antes que os algoritmos de “classificação” concluam se o rosto está coberto por máscara ou não.

Foto de Video by Mark Thiessen and Rebecca Hale, National Geographic/Face-mask recognition technology courtesy <a href="https://tryolabs.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tryolabs</a>

Humilhar publicamente pessoas sem máscara começou quase ao mesmo tempo que a própria pandemia de covid-19. Em fevereiro, algumas províncias e municípios da China tornaram obrigatório o uso de máscaras em locais públicos. Logo após a imposição, notícias de moradores e policiais punindo quem não obedecesse à regra começaram a se espalhar, uma tendência que agora pode ser vista no mundo todo.

Quando Akash Takyar soube das primeiras histórias desse tipo na China, ele ficou chocado com a forma como as coisas estavam sendo tratadas e se perguntou se sua empresa de software — a LeewayHertz — poderia oferecer uma alternativa mais pacífica. Takyar reconheceu a importância do uso de máscara para reduzir a disseminação do SARS-CoV-2, vírus que causa a covid-19. Porém, em vez de deixar as pessoas monitorarem umas às outras, sua intenção era desenvolver um programa de computador que fosse capaz de analisar imagens e detectar se as pessoas estavam utilizando máscara ou não.

A empresa, com sede em San Francisco, é uma das muitas que agora são pioneiras no reconhecimento de máscaras para que as pessoas obedeçam às regras em prol do bem de todos. Até o momento, as máscaras estavam confundindo os softwares tradicionais de reconhecimento facial — mas essas novas ferramentas de aprendizado de máquina podem ser utilizadas em espaços privados ou públicos para avaliar a conformidade com leis e, provavelmente, dispensam humanos desse tipo de tarefa.

O software da Tryolabs identifica se os rostos à vista estão com ou sem máscara quando passam por uma câmera de circuito fechado de televisão (CFTV) perto do bairro de Temple Bar em Dublin, Irlanda. Imagens de CFTV coletadas pela EarthCam. Análise cortesia da Tryolabs.

Foto de Image courtesy <a href="https://www.earthcam.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">EarthCam</a>, software overview courtesy <a href="https://tryolabs.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tryolabs</a>

A análise de imagens de CFTV com reconhecimento de máscara pode estimar quantas pessoas estão seguindo as orientações de saúde em uma área específica, como o bairro de Little Italy na cidade de Nova York. Imagens de CFTV coletadas pela EarthCam. Análise cortesia da Tryolabs.

Foto de Image courtesy <a href="https://www.earthcam.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">EarthCam</a>, software overview courtesy <a href="https://tryolabs.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tryolabs</a>

Até o momento, 34 estados e o Distrito de Colúmbia, nos EUA, determinaram por meio de decreto o uso obrigatório de máscara em espaços públicos, tanto ao ar livre como em locais fechados. Mas obedecer a essa regra varia de acordo com diversos fatores, desde políticas pessoais até a condição financeira que um indivíduo possui para comprar máscaras. Na maioria das vezes, as pessoas que desrespeitam os decretos, mesmo que tenham condições de segui-los, saem impunes. Apenas alguns relatórios — dos estados de Nevada, Louisiana e Indiana — mostram que a polícia interveio e prendeu quem estava sem máscara em ambientes fechados de empresas privadas.

Para empresas cujos funcionários estão retornando a locais fechados, não usar máscara pode levar à contaminação de outras pessoas no local de trabalho. No fim das contas, poderia ser uma grande perda para uma empresa se houvesse um surto da doença devido a um funcionário que estava assintomático e não utilizava máscara, argumenta Takyar.

Mas “os dados faciais são tão valiosos quanto uma impressão digital”, diz Deborah Raji, pesquisadora do AI Now Institute da Universidade de Nova York. Todos aqueles que tiveram dúvidas sobre o reconhecimento facial se perguntam se os softwares de reconhecimento de máscara deveriam fazer parte da sociedade atual, por melhores que sejam as intenções por trás deles.

Como escanear uma máscara facial

Os softwares de reconhecimento facial disponíveis atualmente analisam as características presentes na região dos olhos, nariz, boca e orelhas para identificar um indivíduo cuja imagem já foi fornecida, seja por conta própria ou por um banco de dados de histórico criminal. O uso de máscara impede que esse reconhecimento seja feito — um problema que muitos sistemas já encontraram e outros resolveram. O Face ID da Apple, por exemplo, que utiliza reconhecimento facial para os usuários desbloquearem seu iPhone, lançou recentemente uma atualização de sistema que, basicamente, consegue detectar quando a pessoa está utilizando máscara. A atualização reconhece de forma rápida que a boca e o nariz estão cobertos e solicita que o usuário insira a senha em vez de fazê-lo retirar a proteção facial.

Os desenvolvedores dizem que os softwares de reconhecimento de máscara em teoria não ferem a privacidade porque os programas não identificam as pessoas de fato. O software é treinado de acordo com dois conjuntos de imagens: um que ensina o algoritmo como reconhecer um rosto (“detecção facial”) e outro que define como reconhecer um rosto com máscara (“reconhecimento de máscara”). O algoritmo de aprendizado de máquina não identifica o rosto de forma que consiga vinculá-lo a uma pessoa específica, porque não utiliza nenhum tipo de treinamento — o grupo com exemplos utilizados para treinar esses programas — que vincule rostos a identidades.

As empresas que desenvolveram softwares de reconhecimento de máscara afirmam que, em última instância, desejam que essa tecnologia seja utilizada amplamente para ajudar na definição de políticas ou aprimoramento de campanhas de conscientização sobre o uso de máscara.

“Se pudermos calcular o número de pessoas que estão cumprindo com a imposição do uso de máscara, será possível criar políticas e monitorar se uma nova campanha de incentivo ao uso de máscara é necessária ou não”, explica Alan Descoins, diretor de tecnologia da Tryolabs, empresa com sede em Montevidéu, Uruguai, que desenvolveu o software de reconhecimento de máscaras. “Também poderá ser aplicado caso as pessoas fiquem entediadas com a pandemia de covid-19 e parem de usar máscara, sendo necessário fazer mais publicidade para alertá-las”.

O algoritmo da LeewayHertz também pode ser utilizado em tempo real e integrado com câmeras de circuito fechado de televisão (CFTV). Ao utilizar um determinado recorte de um vídeo, o programa isola as imagens e as organiza em duas categorias: pessoas que utilizam máscara e pessoas que não a utilizam. Atualmente, esse software de reconhecimento de máscara está sendo utilizado de “forma oculta” em diversos lugares dos Estados Unidos e da Europa. Restaurantes e hotéis estão utilizando-o para garantir que seus funcionários estão utilizando máscaras. Um aeroporto na costa leste dos Estados Unidos também está testando a tecnologia no local, comenta Taykar.

Essas empresas privadas têm controle sobre esses dados e decidem como empregá-los. As lojas de departamentos podem utilizá-lo para distribuir proteção facial a clientes que não obedecem às regras. Outro exemplo é uma empresa que poderia demitir um funcionário que se recusasse a utilizar máscara no local de trabalho.

Embora Taykar veja um motivo plausível para utilizar softwares de reconhecimento de máscara em espaços privados, seu uso público pode ser mais problemático: “Se utilizarmos na Times Square, um local onde não há distanciamento físico, o que fazer com esses dados? Colocar a foto dessas pessoas nos telões?”

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    Os algoritmos de “posicionamento” fazem desenhos simples de partes do corpo e suas posições com linhas coloridas. Assim que a cabeça é identificada, o software corta a imagem do possível rosto.

    Foto de Video by Mark Thiessen and Rebecca Hale, National Geographic/Face-mask recognition technology courtesy <a href="https://tryolabs.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tryolabs</a>

    Os algoritmos de “classificação” definem se a imagem recortada do rosto está coberta por máscara ou não. Esse processo é realizado repetidas vezes durante uma sequência de vídeo, adicionando um novo ponto sob os quadrados do rosto no painel lateral a cada vez. Os pontos são verdes, vermelhos ou amarelos, representando “com máscara”, “sem máscara” ou “indefinido”, respectivamente. Se o rosto não estiver claramente visível, o programa indica como “desconhecido” (caso a pessoa esteja de costas para a câmera, por exemplo) ou se não tiver certeza se a pessoa está com máscara ou sem.

    Foto de Video by Mark Thiessen and Rebecca Hale, National Geographic/Face-mask recognition technology courtesy <a href="https://tryolabs.com/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tryolabs</a>

    Boas intenções também têm falhas

    James Lewis entende como o reconhecimento de máscara pode ser útil para garantir o uso de máscara durante a pandemia. Mas como diretor do Programa de Política de Tecnologia para o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington, D.C., ele está mais preocupado com a falta de regras que regulamentem o uso dos dados coletados.

    Hoje, os Estados Unidos não têm uma lei federal que regulamente a privacidade de dados. Em vez disso, o país conta com um emaranhado de regulamentações relacionadas a setores específicos, como saúde, transações financeiras e marketing. Além disso, as empresas e organizações que coletam nossos dados privados não possuem nenhuma obrigação de nos dizer para que finalidade os utilizam.

    A questão deixou muitas pessoas desconfiadas. Três meses antes de a covid-19 chegar aos Estados Unidos, uma pesquisa do Pew Research Center (PRC) constatou que os americanos costumam se sentir “preocupados, confusos e... sem controle sobre suas informações pessoais”.

    Os críticos do reconhecimento de máscara também acreditam que essa nova tecnologia pode estar sujeita a algumas das mesmas armadilhas existentes no reconhecimento facial. Muitos dos dados de treinamento utilizados para reconhecimento facial são predominantemente de indivíduos de pele clara. Em 2019, Joy Buolamwini, pesquisadora do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e Deborah Raji do AI Now Institute estudaram a precisão de uma série de dados disponíveis comercialmente utilizados por grandes empresas de tecnologia. Quando analisaram o desempenho dos sistemas de reconhecimento por meio de um algoritmo treinado com os dados padrão e, em seguida, com um novo conjunto de rostos com muito mais equilíbrio racial e étnico, as pesquisadoras constataram que o algoritmo tinha menos de 70% de precisão na identificação de novos rostos.

    Um outro aspecto do aprendizado de máquina a ser ponderado é que ninguém sabe realmente o que o algoritmo emprega para tomar sua decisão. Digamos, por exemplo, que você queira treinar um algoritmo para reconhecer uma vaca. “Você acha que está mostrando um monte de exemplos de vacas, mas não percebe que, para chegar à definição de que aquilo é uma vaca, o algoritmo pode estar considerando a grama ao fundo nas fotos”, esclarece Raji.

    Quando aplicamos esse princípio ao reconhecimento facial ou de máscara entendemos ser possível que os modelos de aprendizado de máquina detectem outras características de “segundo plano”, como etnia e gênero, que os levariam a cometer erros sobre uma pessoa estar utilizando máscara ou não. “Existem outros fatores que influenciam a decisão do algoritmo”, acrescenta Raji — e os pesquisadores de aprendizado de máquina ainda estão chegando a um acordo sobre essa limitação.

    A pesquisadora também acredita que para fazer com que as pessoas utilizem máscara, o uso da tecnologia talvez não seja necessário. Para ela, o reconhecimento de máscara parece um “teatro da tecnologia”, disponibilizando softwares — e levantando debates sobre privacidade — para solucionar um problema que tira a atenção da verdadeira questão a ser tratada.

    Para que as pessoas cumpram as regras de uso de máscara, há uma maneira melhor do que utilizar sistemas de reconhecimento que podem infringir as liberdades civis, reitera Aaron Peskin, agente municipal de São Francisco que liderou um projeto de lei de 2019 que proíbe o uso de reconhecimento facial para fiscalização.

    “Andar por aí com esse nível de invasão não contribui para uma sociedade saudável”, relatou Peskin à National Geographic. Ele observou que a polícia de Nova York estava estacionada no Washington Square Park para distribuir máscaras a quem passasse pelo local.

    Ainda nesta semana, em Portland, estado de Oregon, foi aprovada uma lei que proíbe o uso público e privado de reconhecimento facial, tornando-se a primeira cidade onde o uso da tecnologia é ilegal. Mas Oregon também tem um decreto que exige o uso de máscara em todo o estado, e Hector Dominguez, Coordenador de Dados Abertos da Cidade Inteligente de Portland, considera o reconhecimento de máscara como algo diferente do reconhecimento facial no que diz respeito aos riscos de privacidade.

    “Estamos em meio a uma crise. Precisamos começar a ter mais consciência sobre privacidade” em relação a como nossos dados são utilizados ou compartilhados em geral, afirma. Embora a proibição do reconhecimento facial de Portland não afete o uso de sistemas de reconhecimento de máscara, Dominguez teme que os sistemas de reconhecimento de máscara capturem algo além: “As máscaras não vão impedir que o reconhecimento facial também seja realizado”, conclui.

    Em última análise, a armadilha do reconhecimento da máscara é que pode abrir um precedente perigoso para o que pode acontecer quando a pandemia acabar, defendem seus críticos.

    “Há uma iniciativa de flexibilizar regras quando falamos de qualquer coisa relacionada à pandemia de covid-19”, diz Lewis, do CSIS. “Mas e quando isso acabar, vamos dar um passo atrás?”

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