Fungo super-resistente a medicamentos se prolifera em hospitais afetados pela covid-19
Médicos temem que um fungo perigoso, capaz de colonizar a pele de uma pessoa sem gerar sintomas, esteja emergindo porque os centros médicos estão sobrecarregados.
Ilustração computadorizada do fungo unicelular Candida auris. O C. auris foi identificado pela primeira vez em 2009. Ele causa infecções graves resistentes a medicamentos em pacientes hospitalizados e tem altas taxas de mortalidade. Esse superpatógeno causa infecções na corrente sanguínea, pele e ouvido e também foi isolado de amostras respiratórias e de urina.
DURANTE AS FÉRIAS DE NATAL de 2015, Johanna Rhodes recebeu um e-mail desesperador de um médico que trabalhava no Hospital Royal Brompton, o maior centro cardíaco e pulmonar do Reino Unido. Um fungo assustador estava invadindo a pele dos pacientes e se alastrando pela unidade de terapia intensiva, embora o hospital mantivesse extensos protocolos de controle de infecções.
“O médico pediu para que eu analisasse... pensei, será que pode ser tão ruim assim?” relembra Rhodes, especialista em doenças infecciosas do Imperial College London que estuda resistência antifúngica. Rhodes interveio para ajudar um dos melhores hospitais de cardiologia do mundo a identificar o patógeno e removê-lo das instalações. O germe era o Candida auris, pouco conhecido na época. Ela se surpreendeu com o que viu: “Você pensa que a covid-19 é ruim até se deparar com o Candida auris.”
O Candida auris é um fungo multirresistente, um patógeno capaz de driblar os medicamentos elaborados para exterminá-lo — e os primeiros sinais sugerem que a pandemia de covid-19 pode estar impulsionando infecções desse fungo altamente perigoso. Isso porque o C. auris é particularmente proeminente em ambientes hospitalares, que este ano ficaram repletos de pacientes devido ao coronavírus.
O superpatógeno adere resistentemente a superfícies como lençóis, grades de camas, portas e dispositivos médicos — facilitando a colonização na pele e a transmissão de uma pessoa para outra. Além disso, pacientes que precisam ser intubados com cateteres ou tubos para respiração e alimentação correm maior risco de infecções por C. auris, e esses procedimentos invasivos ficaram mais comuns por conta da insuficiência respiratória associada à covid-19.
“Infelizmente, presenciamos o ressurgimento do C. auris em alguns locais”, afirmou Tom Chiller, supervisor do departamento de doenças micóticas dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. “Também vimos que ele adentrou em alguns hospitais de cuidados intensivos e unidades de tratamento da covid-19... a preocupação é que, uma vez instalado, é difícil de ser exterminado.”
Antes de seu surgimento em 2009, os fungos do gênero Candida eram mais conhecidos por provocar casos benignos de candidíase, um crescimento excessivo de coloração branca na língua ou nos órgãos genitais. Desde então, milhares de infecções por C. auris se espalharam para pelo menos 40 países, onde foram associadas a mortes em 30% a 60% dos casos. Em comparação, o coronavírus mata cerca de 1% dos infectados, porém tem afligido um número maior de pessoas em um curto período.
A preocupação é que, se o C. auris se tornar mais comum em hospitais ou no público em geral, isso poderá impulsionar a crescente crise de superpatógenos, que já contaminam milhões de pessoas em todo o mundo. No ano passado, os CDC classificaram o C. auris como uma das maiores ameaças resistentes a medicamentos nos Estados Unidos. Agora, embora seja muito cedo para confirmar um impacto de repercussão direta, os Estados Unidos registraram 1,2 mil casos confirmados de C. auris em 2020, um aumento de 400% em relação ao total registrado durante todo o ano de 2018, o ano mais recente com dados disponíveis.
O número real provavelmente será muito maior, pois a pandemia de covid-19 interrompeu grande parte da vigilância sanitária em relação ao C. auris em hospitais e porque muitas vezes o germe pode colonizar a pele de uma pessoa sem gerar sintomas.
Esses superpatógenos também podem estar contribuindo para as milhares de mortes adicionais ocorridas durante a era covid-19. É por isso que médicos em todo o mundo estão manifestando sua preocupação.
“Como tratar?”
Em 2011, Anuradha Chowdhary trabalhava em seu laboratório em Nova Delhi, quando recebeu uma quantidade inesperada de amostras de sangue de dois hospitais da cidade. Infecções fúngicas misteriosas surgiram em unidades de terapia intensiva e enfermarias neonatais, então Chowdhary, professora de micologia médica do Instituto Vallabhbhai Patel Chest da Universidade de Delhi, foi recrutada para identificar o germe por meio de análise genética e recomendar o melhor medicamento para tratamento. Os resultados a deixaram perplexa.
Segundo ela, as amostras do fungo coletadas dos pacientes — conhecidas como isolados — não estavam no sistema de identificação que os laboratórios de microbiologia utilizam para rastrear infecções fúngicas. “Era o Candida auris. Precisei perguntar: ‘O que é C. auris?’”
O superpatógeno havia sido identificado pela primeira vez dois anos antes no ouvido de um paciente (“auris” significa ouvido em latim), mas Chowdhary nunca o tinha visto antes. A maior surpresa foi que todas as amostras eram resistentes ao fluconazol — o medicamento de primeira linha para o tratamento de uma variedade de infecções por fungos e leveduras. Desde que ela e seu grupo publicaram o estudo sobre o surto em Nova Delhi em 2013, os pesquisadores descobriram que o C. auris é quase sempre resistente a esse medicamento e a outros componentes químicos da mesma família — conhecidos como azóis. Algumas variantes também são imunes às outras duas principais classes de medicamentos antifúngicos.
É por isso que Chowdhary agora entrou em cena para tratar de pacientes com covid-19 em estado crítico que foram internados em uma UTI em Nova Delhi e adquiriram candidemia, uma infecção fúngica na corrente sanguínea causada por Candida. Em um pequeno estudo publicado em 27 de agosto, sua equipe constatou que 10 de 15 desses pacientes tinham C. auris resistente a medicamentos — que provavelmente foi adquirido dentro do hospital.
Todas as amostras exibiram resistência ao fluconazol, mas quatro dos isolados de C. auris também eram resistentes à anfotericina B, um antifúngico de segunda linha. A resistência a duas classes de medicamentos é particularmente preocupante porque a Índia tem acesso limitado à terceira opção de tratamento antifúngico: as equinocandinas. Seis dos pacientes faleceram.
“Nossa preocupação agora é que estamos vendo casos publicados de pacientes com covid-19 e outras infecções fúngicas concomitantes, e as pessoas estão ficando muito doentes e morrendo”, afirma Rhodes, enquanto ela e outros médicos no Reino Unido enfrentam a nova onda de coronavírus. “Acreditamos que ocorrerá o mesmo com o C. auris .”
Ela e Chowdhary ressaltam a importância do teste e do rastreamento de contatos — importantes intervenções no controle da covid-19 que também são essenciais na luta contra a propagação do C. auris. Elas insistem para que os pacientes sejam rotineiramente examinados em relação ao superpatógeno, o que envolve a coleta de amostras da pele, sangue ou urina para testar o DNA do fungo. Depois que o teste de um paciente indica positivo para o C. auris, um procedimento médico conhecido como teste de suscetibilidade é realizado para determinar se alguma das três classes de antifúngicos é capaz de amenizar a infecção.
Essas táticas podem ajudar a rastrear as mortes causadas pelo superpatógeno, um processo que geralmente é complicado porque o germe tende a ser adquirido em hospitais entre pessoas que já estão contaminadas com outro tipo de doença.
“Se não o identificarmos, não saberemos se um paciente está morrendo de covid-19 ou de outra infecção”, afirma Chowdhary, mas “se é resistente a medicamentos, como iremos tratá-lo?”
O duelo pandêmico
Em 2019, a Organização Mundial da Saúde listou a resistência antimicrobiana como uma das dez principais ameaças à saúde global. O medo da agência é que a humanidade esteja voltando a uma época em que infecções facilmente tratáveis — como a tuberculose e a gonorreia - não possam mais ser mantidas sob controle.
O uso excessivo global de medicamentos antimicrobianos em animais de fazenda e na medicina humana foi apontado como uma causa para o surgimento de superpatógenos. Mas olhando para o futuro, Ramanan Laxminarayan, fundador e diretor do Center for Disease Dynamics, Economics & Policy em Washington, D.C., diz que ele e outros pesquisadores estão preocupados com o papel que a mudança climática desempenhará na disseminação de infecções fúngicas.
Uma análise de pesquisa publicada no ano passado no periódico mBio, uma revista científica da Sociedade Americana de Microbiologia, sugere que o C. auris “pode ser o primeiro exemplo de uma nova doença fúngica decorrente da mudança climática”. Quando os humanos apresentam infecções, tendem a desenvolver febre como defesa. As altas temperaturas ajudam a exterminar os germes, em um conceito conhecido como zona de restrição térmica dos mamíferos. O relatório argumenta que, à medida que espécies fúngicas como o C. auris se adaptam a temperaturas ambientes mais altas devido ao aquecimento global, elas conseguem infringir essa defesa térmica. Isso significa que, no futuro, poderemos não apenas ver as infecções fúngicas existentes se espalharem, como também haverá outras novas que afetarão os humanos.
“A resistência dos fungos pode ser tão perigosa quanto a resistência a antibióticos”, afirma Laxminarayan, sugerindo o caso das superbactérias, como a Clostridioides difficile ou a tuberculose resistente a diversos medicamentos. Essas bactérias potentes são responsáveis por 99% das 2,8 milhões de infecções por superpatógenos relatadas a cada ano nos Estados Unidos, o que leva a aproximadamente 35 mil mortes.
Há muito tempo, a Índia é considerada um criadouro de resistência a medicamentos, e agora a nação se tornou o epicentro da covid-19 na Ásia. De volta à Nova Delhi, os testes de metade da equipe do laboratório de Anuradha Chowdhary recentemente indicaram resultado positivo para covid-19. Duas pessoas faleceram. Apesar da dificuldade pessoal, ela é grata pelo fato de as pessoas estarem começando a perceber o perigo instaurado pelo C. Auris.
“A princípio, todos pensavam que esse era um problema exclusivo da Índia — que não era problema deles”, afirma ela. “Eu estava me esforçando e trabalhando sozinha, mas estou feliz agora que o mundo está se empenhando nisso. As infecções fúngicas não devem ser negligenciadas.”