Por que as medidas de isolamento deixaram os pacientes renais ‘completamente em pânico’?
Entre os que mais anseiam pelo fim da pandemia de covid-19 estão os 37 milhões de norte-americanos que vivem com doenças renais crônicas.
Os pacientes com doenças renais não apenas correm maior risco de complicações graves em decorrência da covid-19, como também muitos deles enfrentam várias dificuldades financeiras devido à recessão econômica e à sua necessidade de tratamentos caros e de difícil obtenção, como hidroxicloroquina e diálise (mostrada na imagem).
NICHOLE JEFFERSON pratica distanciamento social há mais de uma década. Essa moradora de Dallas de 48 anos de idade foi submetida ao primeiro transplante de rim em 2008 e os medicamentos contra rejeição debilitaram seu sistema imunológico e a deixaram suscetível a infecções graves. Ela já estava habituada a usar luvas descartáveis ao abastecer o carro e usar o caixa eletrônico, a higienizar as compras e a usar máscara muito antes do surgimento da covid-19.
Há dois anos, a insuficiência renal retornou e Jefferson voltou à lista de transplantes. Em abril, Jefferson recebeu seu segundo órgão transplantado e esperava que a cirurgia lhe proporcionasse mais vitalidade. Contudo, devido à crise provocada pelo coronavírus, está mais isolada do que nunca.
“Eu estava completamente em pânico”, conta Jefferson.
Jefferson está entre os milhões de norte-americanos com doença renal crônica que consideram difícil enfrentar a pandemia. Não apenas correm maior risco de complicações graves em decorrência da covid-19, como também muitos deles enfrentam várias dificuldades financeiras devido à recessão econômica e à sua necessidade de tratamento com medicamentos caros e difíceis de encontrar. E, ao que parece, a covid-19 está piorando esse cenário, já que alguns pacientes com o vírus desenvolvem uma versão acelerada de insuficiência renal.
Combinada com a necessidade contínua de distanciamento físico rigoroso para prevenir o contágio, a situação levou a uma crise silenciosa de saúde física e mental simultaneamente com a pandemia, segundo LaVarne Burton, presidente e CEO da organização sem fins lucrativos American Kidney Fund.
A doença renal permanece muitas vezes oculta, mas é muito comum. De acordo com dados de 2019 dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, mais de um em cada sete americanos — 37 milhões de adultos — apresenta alguma forma crônica da doença, o que significa que esses órgãos vitais não estão filtrando toxinas e resíduos do sangue tão bem quanto deveriam, mas ainda não entraram em colapso total. Embora exames de sangue simples possam identificar deficiências renais, explica Fahad Aziz, nefrologista da Universidade de Wisconsin-Madison, esses casos raramente manifestam sintomas.
Muitos daqueles que acabam diagnosticados ignoram os danos em seus rins até o momento em que precisam correr ao pronto-socorro com fortes dores de cabeça e náuseas, fadiga prolongada e com tanto excesso de fluido em seus corpos que chegam a ficar com falta de ar. Assim, necessitam da assistência imediata de uma máquina de diálise para realizar o trabalho de seus rins não funcionais e sobreviver. No jargão médico, é conhecido como “início não planejado da diálise” e ocorre em metade dos pacientes com insuficiência renal.
“Se não receberem o atendimento necessário, os insuficientes renais morrerão. É a terrível realidade”, afirma Burton.
Nação com insuficiência renal
A gravidade do quadro de pacientes com insuficiência renal os coloca em alto risco na eventualidade de uma doença séria como a covid-19, mas não é o único fator complicador, explica Ethan Marin, nefrologista da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale.
Nos Estados Unidos, as principais causas de insuficiência renal são diabetes e hipertensão, que acomete 34 milhões e 108 milhões de adultos americanos, respectivamente. Ambas as doenças podem danificar os delicados vasos sanguíneos em ambos os rins do corpo e também podem agravar a doença causada pelo coronavírus. Com o tempo, esses órgãos do tamanho de um punho perdem a capacidade de manter o equilíbrio adequado entre os fluidos e eletrólitos no corpo. Doenças genéticas e autoimunes, como o lúpus, também contribuem para o desenvolvimento da insuficiência renal.
Qualquer que seja a causa, pessoas cujos rins pararam de funcionar têm três opções principais de tratamento: transplante de rim, diálise e medicação para tratar os sintomas da insuficiência do órgão. Os transplantados devem tomar fortes medicamentos imunossupressores para evitar que seus organismos rejeitem o novo rim, o que os deixa vulneráveis a todos os tipos de infecções, incluindo a causada pelo coronavírus SARS-CoV-2.
“Foi difícil aconselhar as pessoas porque no início não havia nenhum conhecimento sobre os riscos reais da covid”, afirma Marin. “Tenho um paciente da cidade de Nova York que me disse que praticamente não saiu de seu apartamento por cerca de seis semanas.”
Esse isolamento, associado à gravidade do quadro e a seus tratamentos intermináveis, significa que menos de um quarto dos que possuem insuficiência renal estão empregados, segundo um estudo conduzido em 2018. Como a insuficiência renal afeta desproporcionalmente minorias raciais e étnicas e indivíduos de baixa renda, o desemprego pode deixar os afetados em grandes dificuldades financeiras.
Esse foi o caso de Chika Nwerem, com 47 anos, de Portland, Oregon, que recebeu um transplante de rim em agosto. O transplante significou o fim da diálise, mas os médicos lhe recomendaram tirar três meses de licença do trabalho devido à alta dose receitada de imunossupressores. A família de Nwerem depende do salário dela e sua licença não é remunerada.
“Adoecer nos Estados Unidos é muito complicado”, conta ela. Para cobrir os custos, Nwerem solicitou e conseguiu um auxílio financeiro do American Kidney Fund, que lançou um programa de auxílio emergencial em 20 de março. São doadas pequenas quantias de US$ 250 a indivíduos submetidos a diálise para ajudar com suas necessidades básicas. Até o momento, esse fundo emergencial da covid-19 doou US$ 3 milhões a mais de 12 mil pacientes renais e, segundo Burton, uma pesquisa do grupo indicou que a esmagadora maioria dos beneficiários utiliza o dinheiro para comprar alimentos.
Nwerem não é exceção. As elevadas doses de corticoides que impedem seu corpo de rejeitar o novo rim também a deixaram diabética e, por isso, muitas vezes ela não pode comer os mesmos alimentos que seu marido e enteado. Além disso, Nwerem também depende da assistência mensal do American Kidney Fund para pagar as mensalidades do plano de saúde que cobriu sua diálise e transplante. Tal assistência recebida por Nwerem terminará em dezembro, mas as contas das medicações imunossupressoras vitais e sua dieta especial prosseguirão. Nwerem sente não ter escolha a não ser voltar logo ao trabalho.
“Quero voltar a trabalhar porque é o que me permite sustentar minha família”, conta ela.
A covid e o golpe nos rins
A situação já era ruim o bastante, mas os médicos que trataram alguns dos pacientes mais graves com covid-19 no início deste ano fizeram uma descoberta perturbadora. Até mesmo quem estava saudável antes de se contaminar com o coronavírus começou repentinamente a sofrer de insuficiência renal.
Em março, enquanto a cidade de Nova York lutava para conter sua onda de contágio por coronavírus, o nefrologista Girish Nadkarni cuidava de pacientes internados no Hospital Monte Sinai, no bairro de East Harlem. Ele passou a ser chamado cada vez mais para atender pacientes com covid-19 que não tinham problemas renais quando foram internados, mas apresentaram uma súbita insuficiência em poucos dias, enquanto o SARS-CoV-2 simultaneamente deteriorava seus pulmões.
Quando Nadkarni fez uma busca nas pesquisas que iam surgindo sobre a covid-19, encontrou relatos de médicos na China que também indicavam uma lesão renal aguda em pacientes com coronavírus. Mas não havia indicação de que os problemas renais eram comuns e do que essa misteriosa síndrome significava para o estado de saúde dos pacientes.
“Inicialmente, pensamos que a covid-19 era apenas uma doença respiratória, mas ficou evidente que se trata, na verdade, de uma doença sistêmica que também pode afetar os rins”, afirma Nadkarni.
Assim, Nadkarni iniciou um estudo por conta própria que analisou os prontuários eletrônicos de quase quatro mil pacientes internados no Monte Sinai com covid-19 entre 27 de fevereiro e 30 de maio. Ele constatou que 46% dos pacientes com covid-19 no hospital desenvolveram insuficiência renal abrupta e um em cada cinco necessitou de diálise. A função renal ainda não voltou ao normal em 30% dos pacientes que receberam alta do hospital. Os resultados, publicados em setembro no periódico Journal of the American Society of Nephrology, deixaram Nadkarni ainda mais preocupado com seus pacientes renais que não estavam no hospital.
“Não sabemos as reais implicações futuras da covid para as doenças crônicas”, afirma Nadkarni, “e se poderia acarretar uma epidemia de casos de doença renal crônica”.
Para os atuais pacientes com doença renal, entretanto, os desafios continuam se acumulando.
O drama da hidroxicloroquina
Sexta-feira, 13 de março, foi o último dia de normalidade para Alysia Yamasaki em vários meses. Foi o último dia em que ela foi ao escritório em Portland, Oregon, e a última vez em que pôs os pés em um mercado junto com os demais compradores (agora só entra em mercados com horário especial reservado a pessoas com doenças imunológicas). Desde a infância, essa jovem adulta de 32 anos convive com uma doença autoimune rara que ataca seus rins. Depois de sobreviver a dois transplantes em duas décadas, ela não estava pronta para arriscar a vida quando havia tão pouco conhecimento inicial sobre o grau de contágio do novo vírus.
Por isso, Joshua, o companheiro de Yamasaki, tirou uma licença de trabalho não remunerada durante um mês para protegê-la. O casal, que já enfrentava dificuldades financeiras devido aos cuidados médicos contínuos de Yamasaki e ao custoso tratamento com medicamentos, ficou em uma situação ainda pior.
No entanto seu maior receio era a falta dos medicamentos receitados, como a hidroxicloroquina. Yamasaki toma o medicamento todos os dias há anos para tratar uma doença autoimune. A medicação era tão essencial que ela encomendou um suprimento de três meses para garantir que sempre teria um pouco em estoque.
As alegações (posteriormente refutadas) de que a hidroxicloroquina era uma cura milagrosa para a covid-19, feitas pelo presidente dos Estados Unidos Donald Trump em março, levaram ao esgotamento do medicamento. Yamasaki começou a se indagar se conseguiria encontrar o medicamento de que ela — e seu novo rim — tanto dependiam. Até o momento, ela ainda tem algum estoque, mas a falta do medicamento continua a atormentá-la.
“O farmacêutico enviou uma mensagem de que está em falta e pode ser que não se encontre hidroxicloroquina”, afirma Yamasaki. “É tão cansativo passar pelo processo mental de aguardar pelo transplante e, quando finalmente se consegue e quer tanto preservar o rim, há o risco de perdê-lo simplesmente por falta de medicação.”
Sobreviver a tudo isso já seria um grande desafio em uma época normal, mas a pandemia deixou tudo ainda mais difícil, afirma Elizabeth Steinberg Christofferson, psicóloga da unidade de transplante do Hospital Infantil Colorado. Cada decisão parece ter inúmeras consequências e, para evitar o contágio, os candidatos a transplantes e transplantados estão tendo que se isolar da família e amigos, o que reduz o apoio social necessário para enfrentar a incerteza, explica Christofferson.
“Há muita preocupação com a covid-19 na população em geral, mas adultos com doenças crônicas têm um fator de estresse a mais”, afirma ela.
Paralelamente, Aziz, da Universidade de Wisconsin, constatou que o estresse devido à covid-19 naqueles que receberam transplantes de rim também estava provocando uma onda de rejeições de transplantes.
“Pararam de tomar a medicação por diversos motivos, devido à depressão, porque não querem tomá-la ou não têm condições de pagar por ela”, explica. Com o tratamento, todos os pacientes de Aziz conseguiram manter seus rins, mas ele teme que outros possam não ter tanta sorte.
Christofferson afirma que o convívio social e o atendimento médico regular são fundamentais para lidar com doenças renais durante a pandemia. A saúde mental é tão importante quanto a saúde física e ela soube que seus pacientes encontraram maneiras criativas de se reunir em segurança ao ar livre ou por chamada de vídeo. Christofferson também assumiu para si mesma a missão de normalizar o atendimento de saúde mental àqueles que possuem quadros graves de doenças crônicas e incentiva as pessoas a obter ajuda adicional com um terapeuta profissional.
Jefferson ainda considera que seu transplante é a dádiva da vida e pretende sair e aproveitar a vida. Ela quer encontrar o equilíbrio certo entre segurança e vitalidade, sobretudo nos primeiros meses de maior vulnerabilidade após o transplante. Recentemente, ela dirigiu até Houston para espairecer com a filha em uma curta viagem.
Jefferson sempre adorou jantar em restaurantes. Embora pedir comida para viagem tenha ajudado a saciar esse desejo, ela espera ansiosamente pelo dia em que poderá voltar a se sentar e abrir um cardápio.
“Com ou sem doença renal, só vivemos uma vez”, conta ela. “Eu vou continuar vivendo. Vou continuar fazendo o que preciso.”