Para estudar o envelhecimento, cientistas estão analisando o espaço sideral

As viagens espaciais geram alterações corporais que são claramente semelhantes ao envelhecimento, o que proporciona uma oportunidade única de aprimorar as pesquisas médicas.

Por Shi En Kim
Publicado 6 de dez. de 2020, 08:00 BRT
Os ex-astronautas da NASA e gêmeos idênticos Scott Kelly (à direita) e Mark Kelly. Scott passou ...

Os ex-astronautas da NASA e gêmeos idênticos Scott Kelly (à direita) e Mark Kelly. Scott passou um ano na Estação Espacial Internacional (ISS) de 2015 a 2016, enquanto Mark permaneceu na Terra, permitindo que os cientistas estudassem os efeitos da vida no espaço no corpo de Scott para comparar com as mudanças ocorridas com Mark.

Foto de Robert Markowitz, NASA

Assim como qualquer pessoa que já passou da meia-idade sabe, o processo de envelhecimento pode ser extremamente difícil para o nosso corpo. Nossos ossos começam a ter carência de cálcio, os músculos passam a perder a tenacidade, o sistema imunológico se enfraquece e ainda podemos passar a sofrer de artrite. A postura e o equilíbrio desajustados afetam nossos movimentos diários, ao passo que a catarata e outros problemas nos olhos dificultam nosso sentido de visão. Problemas cardíacos e funções cognitivas em declínio acabam se manifestando conforme atingimos a reta final de nossa vida.

Contudo esses sintomas também podem ser causados por algo não muito comum: as viagens ao espaço.

Viajar para o espaço sideral influencia nossa biologia de maneiras significativas, e as pessoas no espaço parecem sentir os efeitos do envelhecimento mais rápido do que as que ficam na Terra. Recentemente, os cientistas puderam entender melhor a influência das viagens espaciais nos seres vivos de uma maneira sem precedentes. Uma série de 29 artigos recentemente publicados nas revistas científicas Cell, Cell Reports, iScience, Cell Systems e Patterns avaliou os perigos biológicos das viagens ao espaço em 56 astronautas — mais de 10% de todo o contingente que já esteve no espaço.

Os novos estudos nos aproximam ainda mais da identificação dos mecanismos que sustentam as respostas biológicas necessárias para viver no espaço. Mais de 200 cientistas demonstraram que o espaço altera os genes, a função mitocondrial e os equilíbrios químicos nas células, o que desencadeia uma cascata de efeitos mais amplos na saúde de humanos e animais que viajam ao espaço.

“O corpo inteiro é afetado porque o espaço é um ambiente muito diferente e extremo”, explica Susan Bailey, radiologista da Universidade Estadual do Colorado, que participou de diversos dos novos estudos.

Os efeitos na saúde causados por voos espaciais apresentam várias semelhanças com os distúrbios relacionados ao envelhecimento, como câncer e osteoporose. Embora a correspondência dos voos espaciais com o envelhecimento seja uma preocupação para missões tripuladas de longa duração — como aquelas que seriam necessárias para uma viagem a Marte — o ambiente espacial singular também oferece a oportunidade única de estudarmos a fisiologia do envelhecimento.

Estima-se que o coração, os vasos sanguíneos, os ossos e os músculos se deteriorem acima de 10 vezes mais rápido no espaço do que se envelhecessem de forma natural. Portanto, para estudar o processo de envelhecimento, os cientistas não precisam esperar que seus participantes de estudos biológicos fiquem mais velhos naturalmente na Terra — eles podem aproveitar os efeitos acelerados por essa experiência na nossa saúde por meio de experimentos realizados na Estação Espacial Internacional (ISS).

Os cientistas enfatizam que os sintomas causados pelas viagens espaciais não são exatamente os mesmos observados no envelhecimento natural, e muitas mudanças se revertem quando as pessoas retornam à Terra, mas as comparações ainda são úteis. As viagens espaciais são experiências imersivas que não poupam nenhum viajante, ao passo que o envelhecimento acontece com todos nós, gostemos ou não. Sendo assim, a vida no espaço é um bom modelo para entendermos o envelhecimento como um processo crônico, segundo Bailey. O estéril mundo do espaço sideral pode até revelar novas maneiras de nos proteger contra o processo de envelhecimento.

Os astronautas da NASA Terry Virts (à direita) e Scott Kelly realizando experimentos na Rodent Research-2, uma investigação comercial dos efeitos dos voos espaciais sobre os músculos, esqueletos e sistema nervoso de camundongos que foram enviados à ISS em 14 de abril de 2015.

Foto de NASA

Uma dose de espaço

Todo tipo de vida no nosso planeta evoluiu sob a gravidade da Terra e suas condições, razão pela qual não estamos aptos a viver em nenhum outro tipo de ambiente. O espaço afeta células diferentes de maneiras diferentes, afirma Michael Roberts, cientista-chefe interino do Laboratório Nacional da ISS. “Não se trata de uma única exposição aguda a agentes tóxicos, por exemplo, mas sim de algo em longo prazo, crônico e persistente.” Viver no espaço redefine os níveis de equilíbrio corporal para obtermos um funcionamento ideal, acrescenta ele, reiniciando assim as normas fisiológicas de resposta das células.

Na microgravidade, nosso coração,  ossos e músculos não precisam trabalhar tanto quanto na Terra, então começam a definhar por desuso. Os líquidos fluem de maneira diferente no espaço, o que pode alterar as formas dos tecidos repletos de líquido, como os do cérebro. A maior radiação existente mais além da atmosfera terrestre também pode danificar o DNA e aumentar o risco de câncer. Até mesmo os níveis ligeiramente mais elevados de dióxido de carbono na ISS podem modificar a fisiologia dos astronautas.

A nova pesquisa sobre os efeitos de viagens espaciais na nossa saúde ecoa as descobertas de um perfil de saúde abrangente e prévio dos astronautas gêmeos da NASA, Scott e Mark Kelly. O estudo dos gêmeos da NASA envolveu 10 equipes de monitoramento das alterações moleculares e fisiológicas que Scott viveu durante e após um ano no espaço. Os pesquisadores compararam as mudanças com seu gêmeo idêntico, Mark, que permaneceu na Terra durante esse mesmo período.

A partir de mais de 300 amostras biológicas, as equipes catalogaram uma série de diferenças corporais nos astronautas gêmeos, incluindo modificações nas expressões gênicas dos astronautas, assim como seus microbiomas, funções cognitivas e sistemas vasculares.

No estudo dos gêmeos, Bailey fez uma descoberta surpreendente: Os telômeros de Scott haviam mudado de comprimento. Os telômeros conectam as extremidades dos cromossomos para protegê-los de danos, da mesma forma que as proteções de plástico na ponta dos cadarços existem para evitar que desfiem. Eles são um bom indicador de envelhecimento, explica Bailey, porque seu comprimento é afetado por todos os aspectos da nossa vida na Terra, desde a dieta que adotamos até nosso estilo de vida, incluindo também nosso bem-estar mental. Os telômeros encurtam à medida que envelhecemos, e a rapidez com que isso acontece configura um marcador importante de saúde.

Enquanto Scott esteve no espaço, os cientistas observaram um alongamento geral inesperado dos telômeros. Quando ele retornou à Terra, no entanto, seus telômeros encolheram rapidamente. “Ainda que eles tenham sido alongados durante a viagem espacial, mesmo assim seus telômeros acabaram ficando mais curtos do que eram antes de viajar”, relata Bailey.

“O comprimento alterado dos telômeros tem sido associado a fatores como doenças cardiovasculares, especialmente para telômeros curtos”, acrescenta ela. No entanto os telômeros alongados de Scott durante seu período no espaço tampouco são um bom sinal. “Telômeros mais longos também estão relacionados ao câncer. É um jogo em que não há como vencer.”

Por mais revelador que o estudo dos gêmeos tenha sido, a amostra foi de apenas um indivíduo: Scott Kelly, comparado a um participante de controle, seu gêmeo Mark. Agora, os pesquisadores estão confirmando os achados desse estudo — incluindo as alterações nos telômeros — por meio da análise de dezenas de astronautas que passaram meses no espaço. Conforme foi feito no estudo dos gêmeos, os pesquisadores registraram um conjunto de mudanças fisiológicas e tentaram identificar os mecanismos, como proteínas ou genes específicos, que as causaram.

Tudo indica que alguns dos sintomas causados pelas viagens ao espaço são estabilizados após um período em órbita, como diminuição do volume sanguíneo e alterações no coração e nos pulmões. Mas os astronautas não viveram na ISS por tempo suficiente para os cientistas afirmarem com certeza que essas mudanças no organismo acabam atingindo um estado de equilíbrio.

“No momento, temos alguns estudos básicos”, observa Bailey, “mas ainda é cedo demais para termos certeza absoluta”.

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    O espaço também é um ambiente adequado para os cientistas testarem candidatos a medicamentos contra o envelhecimento. Em um estudo recente, uma equipe de pesquisa da empresa farmacêutica Eli Lilly, com sede nos Estados Unidos, testou se um medicamento feito a partir de anticorpos poderia evitar a perda muscular dos camundongos na ISS. (A empresa também oferece um tratamento com anticorpos que recentemente recebeu aprovação emergencial da Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos, FDA na sigla em inglês, para tratar a covid-19.) O grupo aproveitou o ambiente biologicamente estressante do espaço para induzir atrofia muscular semelhante ao que ocorre em pessoas com câncer ou na fase de envelhecimento.

    “No espaço, o corpo inteiro do animal está sob os efeitos da microgravidade”, esclarece a bióloga celular já aposentada da Eli Lilly, Rosamund Smith, que foi a pesquisadora líder do estudo. Um experimento de envelhecimento análogo na Terra precisaria criar camundongos em um ambiente sem peso, suspendendo seus membros posteriores com amarras, ou simplesmente esperando que envelhecessem. Mas os métodos de envelhecimento artificial na Terra não fornecem uma experiência que abranja o corpo inteiro para conseguir envelhecer todos os músculos do corpo de uma só vez, acrescenta Smith.

    Os pesquisadores da Eli Lilly confirmaram que o espaço realmente encolhe e enfraquece os músculos dos camundongos que vivem na ISS, confirmando as observações anteriores dos astronautas. A injeção do medicamento com anticorpos nos camundongos preservou seus músculos. Essas medicações talvez demonstrem os efeitos prejudiciais da microgravidade nos astronautas durante missões tripuladas de duração mais longa e possam ser utilizadas como medicamentos terapêuticos na Terra.

    “É incrível como os efeitos da microgravidade são disseminados pelo sistema humano”, afirma Smith. “Podemos ganhar muito se compreendermos e utilizarmos o espaço para nos ajudar a entender a fisiologia humana e, como consequência, as doenças humanas.”

    Chips biológicos

    Os cientistas também estão adotando uma nova plataforma de pesquisa que é um modelo mais fiel da fisiologia humana do que os animais usados nos experimentos: chips de tecidos. Esses dispositivos do tamanho de um pendrive contêm câmaras e canais de células banhadas em sustentação líquida. Os chips de tecidos normalmente abrigam uma mistura de células que representam um órgão humano específico. O fluxo de fluidos nos chips possibilita a reprodução das forças cortantes e de estiramento internas do organismo, e as paredes internas dos chips oferecem locais de fixação para que as células se organizem e cresçam. Basicamente, os chips de tecidos se comportam como um microcosmo da parte interna do corpo humano.

    Sonja Schrepfer, imunologista da Universidade da Califórnia, em São Francisco, liderou um esforço colaborativo para lançar o primeiro experimento com chips de tecidos junto à ISS em 2018, que faz parte da iniciativa Chips de tecido no espaço, do Centro Nacional de Ciências Translacionais Avançadas. A pesquisa de Schrepfer tem como objetivo destacar o papel do envelhecimento no sistema imunológico e entender se uma imunidade em declínio pode ser rejuvenescida.

    Se o espaço desencadeia o envelhecimento prematuro, talvez trazer as células de volta do espaço interrompa ou reverta essa deterioração, afirma Schrepfer. “Se entendermos por que é reversível e identificarmos esse mecanismo, podemos adotá-lo nos pacientes.”

    Scott Kelly vivenciou uma reversão no alongamento dos telômeros após retornar à Terra, e outros efeitos gerados pela viagem espacial, como expressão de genes alteradaperda óssea, que também desapareceram após o retorno dos astronautas do espaço.

    Se mudanças semelhantes forem observadas em seus chips de tecidos, a equipe de Schrepfer pretende pesquisar um gatilho molecular. A identificação das proteínas e genes envolvidos pode ajudar os pesquisadores a desenvolverem tratamentos de reversão do envelhecimento para idosos e pacientes com sistemas imunológicos anormalmente morosos. Os pesquisadores estão investigando enquanto se preparam para uma segunda rodada de experimentos da ISS, com lançamento previsto para março de 2021.

    Uma oportunidade de outro mundo

    Devido ao ambiente extremo do espaço, os pesquisadores são capazes de buscar soluções criativas para melhorar a saúde humana. Pesquisas recentes empregam esforços que incluem medicamentos obtidos por nanopartículas metálicas que induzem as células-tronco a repor os tecidos ósseos e apropriação de proteínas quase indestrutíveis de animais microscópicos, chamados tardígrados, para uso em células humanas.

    Muitas dessas terapias surgiram a partir de iniciativas para aumentar a adaptabilidade dos humanos ao espaço, o que poderia, por sua vez, resolver muitas das doenças relacionadas ao envelhecimento, que assolam grande parte da humanidade terrestre. Em última análise, os estudos de adaptações ao espaço e tratamentos antienvelhecimento são mutuamente fertilizados.

    Enquanto isso, não faltam astronautas dispostos a enfrentar o risco ocupacional da exposição ao espaço. O fascínio da humanidade pelo espaço nunca ficará antiquado, e os astronautas da ISS provavelmente estão contentes com seu trabalho, apesar dos riscos à saúde, conclui Bailey.

    “A maioria [dos astronautas] parece se divertir muito apenas flutuando por aí”, diz ela. “Embora, sem dúvidas, seja um trabalho árduo, também é uma paixão e uma alegria para eles. E isso me faz pensar que seu trabalho também pode ajudá-los a manter o comprimento de seus telômeros.”

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