Ainda não se sabe a origem do novo coronavírus. Conheça quatro hipóteses
Especialistas afirmam que é fundamental entender como o Sars-CoV-2 se deslocou de animais a humanos para evitar futuras pandemias.
Normalmente, são necessários anos para identificar a origem de um vírus como o Sars-CoV-2. Um relatório recente, entretanto, desenvolveu um roteiro para identificar como o novo coronavírus se deslocou de animais a humanos.
A busca pela origem do coronavírus que desencadeou a covid-19 continua — assim como ainda se tenta descobrir o caminho percorrido para que seu deslocamento de animais a humanos ocorresse, causando estragos em todo o mundo, contaminando mais de 132 milhões de pessoas e matando cerca de 2,9 milhões.
Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou um relatório de uma equipe de pesquisadores internacionais que viajou à China para investigar quatro possíveis hipóteses para o surto inicial do Sars-CoV-2. Nos dias seguintes, no entanto, governos ao redor do mundo manifestaram preocupação com a falta de acesso a dados completos por parte dos investigadores. Cientistas afirmam que o relatório não esclareceu muito qual seria a origem do novo coronavírus.
Considerando que normalmente são necessários anos para identificar a origem de um vírus, o pouco avanço não é surpreendente — se é que é possível determiná-la, afirma Angela Rasmussen, virologista do Centro de Segurança e Ciência em Saúde Global, do Centro Médico da Universidade de Georgetown. Contudo, nesse caso, ela observa: “acredito que há evidências suficientes para discernir as hipóteses mais prováveis das que podem ser descartadas”.
No relatório, a equipe concluiu que o vírus provavelmente se deslocou de um animal a outro antes de chegar a nós. Também foram estudadas evidências que fundamentam teorias de que o Sars-CoV-2 teria se deslocado à população humana de forma direta, saindo de um animal hospedeiro original, ou que teria sido transportado pela cadeia de abastecimento de alimentos congelados e refrigerados. Além disso, a equipe considerou a possibilidade de vazamento acidental do vírus em um laboratório em Wuhan: um cenário determinado como “extremamente improvável”.
Conheça as evidências apresentadas no relatório para cada uma das quatro hipóteses — e as opiniões de especialistas sobre as possibilidades de origem do Sars-CoV-2, o vírus que desencadeou a covid-19.
1. Transmissão direta de animais a humanos
AVALIAÇÃO DA OMS: hipótese desenvolvida em uma escala que varia de possível a provável
A primeira hipótese da origem do Sars-CoV-2 é simples: ela sugere que o vírus primeiro se apresentou em um animal — provavelmente um morcego — que entrou em contato com um humano, infectado instantaneamente. Desde então, o coronavírus teria começado a se espalhar em outros humanos de forma imediata.
O relatório da OMS cita evidências convincentes mostrando que a maioria dos coronavírus que infectam humanos são provenientes de animais, incluindo o vírus causador da epidemia de Sars, em 2003. Acredita-se que os morcegos sejam os hospedeiros mais prováveis, pois são portadores de um vírus com parentesco genético com o Sars-CoV-2.
O relatório admite a possibilidade de que o vírus tenha sido transmitido de pangolins ou visons a nós, humanos. Mas David Robertson, chefe de genômica viral e bioinformática da Universidade de Glasgow, afirma que a equipe conjunta da OMS coletou amostras de diversas espécies de animais, não apenas de morcegos, para elaborar o relatório. A análise aponta os morcegos como o reservatório.
“Partindo dessa premissa, a preocupação passaria a ser: como se deu o deslocamento de morcegos a humanos?”, pondera Robertson. “Uma pessoa esteve em um local já contaminado, infectou-se e, em seguida, pegou um trem para Wuhan?”
A transmissão direta de morcegos a humanos é plausível: estudos demonstraram que pessoas que vivem perto de cavernas de morcegos na província de Yunnan, no sul da China, têm anticorpos contra os coronavírus de morcegos. Mas a maioria dos humanos geralmente não passa muito tempo perto de morcegos, a menos que sejam cientistas que estudam morcegos (que geralmente utilizam equipamentos de proteção). Portanto, não se sabe ao certo o motivo pelo qual, caso o vírus tenha mesmo se transportado de morcegos diretamente a humanos, o primeiro surto teria ocorrido em Wuhan, a mais de 1,6 mil quilômetros das cavernas de morcegos de Yunnan.
Além disso, o relatório destaca que seriam necessárias décadas para que algum coronavírus de morcegos com um parentesco próximo conseguisse evoluir até se tornar o Sars-CoV-2. Como os cientistas não encontraram um vírus de morcegos que explicasse o elo perdido, a equipe da OMS avaliou essa teoria como em uma escala de “possível a provável”, não mais que isso.
2. Transmissão de animais a humanos por meio de um hospedeiro intermediário
AVALIAÇÃO DA OMS: hipótese em uma escala de provável a muito provável
Na ausência de uma prova concreta de que morcegos tenham transmitido Sars-CoV-2 diretamente a humanos, os cientistas acreditam que a teoria mais plausível é que o vírus tenha se deslocado primeiro por meio de outro animal, como um visom ou um pangolim. Ao contrário dos morcegos, esses animais têm contato regular com humanos — sobretudo se forem oriundos de criadouros ou do tráfico ilegal de animais silvestres.
A hipótese do deslocamento inicial do novo coronavírus a outro animal também poderia explicar sua adaptação ao ponto de se tornar perigoso em humanos — embora Robertson ressalte que, provavelmente, não seria necessária uma mudança drástica no vírus. Análises genômicas sugerem que o Sars-CoV-2 é um vírus generalista e não especificamente adaptado a humanos, o que explicaria sua capacidade de se deslocar facilmente entre pangolins, visons, gatos e outras espécies.
O relatório da OMS indica que esse seja o caminho percorrido por coronavírus anteriores para infectar humanos. Acredita-se que o vírus Sars, por exemplo, tenha passado de morcegos a civetas antes de causar uma epidemia humana em 2002. Por outro lado, o vírus que desencadeou a Mers foi encontrado em dromedários em todo o Oriente Médio.
Daniel Lucey, professor adjunto de doenças infecciosas do Centro Médico da Universidade de Georgetown, afirma que as semelhanças entre o Sars-CoV-2 e seus parentes Sars e Mers é um argumento convincente de que esses vírus podem ter começado da mesma maneira.
“Hoje, existem três coronavírus que causam pneumonia, doença sistêmica e morte”, conta ele. “O passado é apenas um presságio.”
Mas, se confirmada essa teoria, ainda não se sabe qual animal seria o hospedeiro intermediário do Sars-CoV-2. A equipe da OMS analisou amostras de milhares de animais de criação em toda a China, e todos testaram negativo para o vírus. Lucey argumenta que a equipe da OMS não testou adequadamente os visons criados na China — um dos hospedeiros intermediários suspeitos — mas Rasmussen afirma que o próprio relatório admite ser superficial.
“Foi testada uma fração dos animais criados, capturados ou transportados na China”, lamenta ela. “Acredito que a amostragem não chegue nem perto de ser suficiente.”
3. Introdução por meio de alimentos refrigerados ou congelados
AVALIAÇÃO DA OMS: hipótese plausível
Outra teoria alega que o Sars-CoV-2 possa ter chegado a nós por meio da chamada cadeia frigorífica: a linha de abastecimento para distribuição de alimentos congelados e refrigerados. Nessa hipótese, o vírus pode até ter se originado fora da China, mas teria sido importado pelo país na superfície de embalagens de alimentos ou nos próprios alimentos.
Essa teoria ganhou força na metade do ano passado após alguns surtos na China e, desde então, foram encontradas algumas evidências sugerindo que os patógenos podem sobreviver por mais tempo sob temperaturas frias.
Ainda assim, embora a cadeia frigorífica possa ter desempenhado um papel em novos surtos, cientistas afirmam que há poucos motivos para acreditar que tenha sido a origem da pandemia de covid-19. Não há nenhuma evidência direta de que o Sars-CoV-2 possa causar surtos transmitidos por alimentos, além disso, Rasmussen destaca que a covid-19 raramente é transmitida por superfícies — uma boa notícia a quem já se cansou de limpar suas compras de supermercado.
“Não é impossível”, acrescenta ela. “Essa possibilidade não foi descartada. Mas não acredito que haja evidências muito convincentes dessa forma de transmissão.”
Rasmussen afirma que uma forma mais plausível de contágio pela cadeia alimentar ocorreria por meio de animais silvestres criados para consumo humano. Mas ela observa que essa forma de contágio implicaria a existência de um hospedeiro intermediário, combinando-se com a outra teoria.
Alguns críticos alegam que essa teoria é uma tentativa de afastar as suspeitas com relação à China e considerar outros países como locais de origem do Sars-CoV-2. Lucey considera essa hipótese a menos provável dentre as quatro identificadas pela equipe conjunta, argumentando ser improvável que o vírus permanecesse vivo nas embalagens durante todo o período que leva para ser exportado pela Europa ou outros locais. Ele também questiona por que essas infecções teriam surgido somente em Wuhan e em mais nenhum outro local.
“Para mim, não tem muita lógica”, observa ele.
4. Vazamento de laboratório
AVALIAÇÃO DA OMS: hipótese extremamente improvável
A hipótese mais polêmica sobre a origem do Sars-CoV-2 é também aquela que a maioria dos cientistas concorda ser a menos provável: que o vírus de alguma forma tenha vazado de um laboratório em Wuhan, onde são estudados coronavírus em morcegos. Difundida originalmente por Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos, e por seu governo, essa teoria sugere que um pesquisador talvez tenha sido infectado no laboratório — por acidente ou não — ou tenha manipulado uma cepa de coronavírus, desenvolvendo o Sars-CoV-2.
Embora vazamentos de laboratório não sejam algo inédito, o relatório da OMS ressalta que são raros. A principal evidência citada para fundamentar essa teoria é o fato de uma cepa de coronavírus de morcego (denominada CoV RaTG13, que é 96,2% semelhante ao Sars-CoV-2 e, aliás, é sua parente mais próxima conhecida) ter sido sequenciada por pesquisadores do Instituto de Virologia de Wuhan como parte de uma iniciativa para evitar que vírus zoonóticos sejam transmitidos a humanos. Um laboratório administrado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Wuhan também estudou coronavírus de morcegos.
Mas essa é a única evidência que condiz com essa hipótese. O relatório da OMS argumenta que não há registros de que um laboratório de Wuhan estivesse analisando um vírus com parentesco mais próximo com o Sars-CoV-2 antes do diagnóstico dos primeiros casos de covid-19 em dezembro de 2019. Além disso, nenhum membro de nenhuma equipe de laboratório relatou sentir quaisquer sintomas de covid-19 que sugerissem uma contaminação. Mas os cientistas advertem que as evidências a favor e contra a hipótese do vazamento de laboratório são insuficientes.
Diante da falta de evidências, Lucey acredita que a teoria do vazamento de laboratório seja plausível, embora menos provável do que a transmissão zoonótica. Ele ressalta que não houve investigação forense nos laboratórios em Wuhan e questiona por que a OMS autorizou a equipe a investigar o laboratório sem uma determinação para conduzi-la ou sem membros da equipe com conhecimento para realizá-la.
“Não há como comprovar ou refutar a teoria do vazamento de laboratório com base no que consta nesse relatório”, concorda Rasmussen, observando que, para encerrar o assunto, seria necessária uma auditoria forense dos registros laboratoriais em busca do vírus ancestral do Sars-COV-2. “Mas, a meu ver, a teoria do vazamento de laboratório, embora não seja impossível, é menos provável.”
Rasmussen explica que não há evidências de que o Sars-CoV-2 seja resultado de manipulação genética e que é improvável que possa ter sido concebido por acidente. É incrivelmente difícil criar um vírus resistente o suficiente para causar infecções humanas partindo de uma amostra de morcego, afirma ela. Por outro lado, vírus semelhantes são comuns na natureza, portanto, uma fonte muito mais provável.
Robertson afirma que os defensores da teoria do vazamento de laboratório argumentam que a propagação do Sars-CoV-2 na população humana ocorreu a um ritmo e com eficiência tais que não seria possível terem uma origem natural. Mas se o vírus é generalista, como demonstrado por estudos genômicos, não surpreende que seja tão eficaz em nos infectar, segundo ele.
“Acredito que haja evidências muito convincentes de que não foi preciso uma mudança drástica para o novo coronavírus ser eficaz em humanos”, prossegue ele.
Um roteiro de pesquisa
Embora o relatório da OMS possa não ter esclarecido a origem do Sars-CoV-2 em mais detalhes, Robertson revela que esse é apenas o começo do que pode se tornar um longo processo. Ele ressalta que há uma emergência de saúde pública no momento que tem prioridade sobre estudos de acompanhamento mais rigorosos.
“Em algum lugar, há um vírus com um parentesco muito próximo ao Sars-CoV-2”, alerta ele. “Isso é assustador.”
Rasmussen afirma que o relatório da OMS desenvolveu um roteiro para estudos adicionais que busquem a origem do Sars-CoV-2. Ele recomenda uma vigilância melhor de animais em cativeiro e de criação para determinar eventuais reservatórios ou hospedeiros intermediários, assim como mais amostragem entre morcegos — tanto na China quanto em outros locais, já que também há evidências da circulação de coronavírus parentes do Sars-CoV-2 em regiões como o Sudeste Asiático. O relatório também recomenda estudos epidemiológicos detalhados dos primeiros casos de covid-19.
Entender a origem do surto ajudaria cientistas e governos a identificarem como fortalecer as medidas de proteção — seja na forma de uma vigilância mais rigorosa para infecções em animais e na cadeia alimentar, seja com protocolos de biossegurança mais rígidos em laboratórios.
“Há uma percepção popular de que algum tipo de justiça ou explicação é necessário, e de que alguém precisa responder por essa pandemia em curso”, conclui Rasmussen. “Mas o principal motivo para tentar descobrir sua origem é a tomada de iniciativas para evitar outra pandemia como a que estamos vivendo.”