Microbiota intestinal pode ser o mais novo recurso no combate aos vírus

Em busca de alternativas para combater infecções virais, incluindo a covid-19, microbiólogos estão recorrendo às bactérias já existentes no intestino humano.

Por Bill Sullivan
Publicado 23 de abr. de 2021, 12:15 BRT

Na imagem, a diversidade do microbioma intestinal pode ser vista nesta amostra de fezes humanas, incluindo uma enorme bactéria cerca de 50 vezes maior do que a E. coli. A composição dos micróbios de cada pessoa é única. Cientistas estão descobrindo diversas maneiras pelas quais esses micróbios afetam nossa saúde, peso, humor e até mesmo nossa personalidade.

Foto de MARTIN OEGGERLI NatGeo Image Collection

O estilo parasitário dos vírus os torna um inimigo desafiador. Os tratamentos tradicionais, como medicamentos antivirais e vacinas, são difíceis de desenvolver, podem produzir efeitos colaterais indesejáveis e ainda podem perder eficácia se os vírus sofrerem mutação. Alguns cientistas agora buscam inovações e destacam que não estamos sozinhos nessa luta. Dentro de nosso organismo ou sobre sua superfície, vivem trilhões de micróbios — conhecidos coletivamente como microbioma humano — que dependem do corpo humano para sua sobrevivência. Os pesquisadores estão atualmente analisando se podem utilizar esses micróbios para reforçar o sistema imune e colaborar com o combate aos invasores virais.

Nas últimas décadas, os cientistas aprenderam muito sobre a microbiota intestinal, sobretudo sua flora bacteriana. Já existe um consenso científico de que as bactérias intestinais auxiliam na digestão e produzem alguns nutrientes. Tudo indica que também se comuniquem com outras partes do corpo, como o cérebro, por meio de sinais químicos. Por exemplo, as bactérias intestinais produzem neurotransmissores como a serotonina, que podem regular o humor ou os estados mentais. Elas também podem afetar o sistema imune, o que chamou a atenção dos pesquisadores de doenças infecciosas.

Na imagem da Escherichia coli em microscópio eletrônico de varredura, são observados bastonetes amarelos agrupados em substrato roxo.

Foto de Martin Oeggerli

“Imagine micróbios capazes de impedir a invasão de um vírus a uma célula ou micróbios que se comunicam com células, tornando-as menos desejáveis para o vírus se fixar”, afirma Mark Kaplan, chefe do departamento de microbiologia e imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Indiana. “Manipular esses canais de comunicação pode nos oferecer um arsenal para ajudar o corpo humano a combater os vírus de forma mais eficiente.”

O tormento da covid-19, causada pelo vírus Sars-CoV-2, aumentou o interesse por uma possível associação entre os microbiomas das pessoas e sua capacidade de combater viroses. A covid-19 produz poucos ou nenhum sintoma em muitas pessoas, mas pode ser fatal para outras. O motivo dessas reações completamente discrepantes à infecção por Sars-CoV-2 permanece um mistério, mas novos estudos sugerem que o estado do microbioma do paciente pode ser um fator contribuinte.

A covid-19 geralmente é mais grave em idosos, bem como em pessoas de qualquer idade com doenças preexistentes, como obesidade, diabetes e câncer. Essas doenças preexistentes também já foram associadas a diferenças no microbioma das pessoas. E uma série de estudos preliminares documentou microbiomas incomuns em pacientes internados com covid-19. Se houver uma forte associação entre os micróbios intestinais e a gravidade da covid-19, há a possiblidade de alterar o microbioma para combater o Sars-CoV-2 e outros vírus.

“Se for considerado que as bactérias intestinais são os guardiões entre os alimentos e nosso corpo”, pondera Kaplan, “é possível notar que alguns guardiões podem ser mais eficazes do que outros no combate aos intrusos”.

Como o microbioma intestinal ajuda

Centenas de espécies diferentes de bactérias colonizam o intestino. Essa comunidade contém cerca de 40 trilhões de células, o que corresponde a pouco mais do que a quantidade de células do corpo humano. Essa flora enorme pode contribuir para a eliminação dos vírus por meio de três mecanismos principais: formação de uma barreira aos invasores, implantação de um ataque avançado e suporte ao sistema imune.

Para entender a primeira linha de defesa, lembre-se de que seu intestino é como um tubo. Nesse tubo, o alimento é degradado para que os nutrientes possam ser absorvidos. Ao mesmo tempo, são gerados metabólitos contendo compostos bioquímicos prejudiciais e também estão presentes patógenos consumidos inadvertidamente. Para direcionar os metabólitos e micróbios patogênicos diretamente à rota de saída, as células da parede interna do intestino produzem uma camada protetora constituída de muco. As bactérias intestinais parecem influenciar a produção dessa importante barreira de muco, o que poderia impedir que os vírus no intestino atingissem outras partes do corpo.

Mas danos a essa camada de muco podem tornar o intestino permeável, o que permite que os metabólitos e patógenos possivelmente perigosos escapem a outros sistemas orgânicos, onde podem causar infecções ou inflamações nocivas. “É bastante provável que os vírus tenham acesso a outros órgãos além dos pulmões e do intestino ao atravessar um intestino permeável”, explica Heenam Stanley Kim, microbiólogo da Universidade da Coreia em Seul.

Um intestino permeável também pode promover doenças autoimunes. Por isso, alguns cientistas sugeriram que distúrbios na microbiota intestinal podem estar ligados à chamada “tempestade de citocinas”, uma resposta imune descontrolada que se acredita ser um possível fator causador de casos graves de covid-19.

Além dos pulmões e do intestino, o vírus Sars-CoV-2 foi detectado no fígado, rim, coração e cérebro.

Além disso, há cada vez mais evidências de que micróbios no intestino podem afetar a saúde dos pulmões por meio de comunicações químicas. Em macacos, por exemplo, os pesquisadores constataram que o Sars-CoV-2 provoca alterações no microbioma intestinal até o décimo dia de infecção; algumas das alterações persistem por mais de 26 dias. Vale destacar que macacos infectados apresentaram uma redução na quantidade de espécies de bactérias conhecidas por produzirem ácidos graxos de cadeia curta (AGCCs), moléculas importantes que podem regular o sistema imune. Estudos em ratos revelaram que AGCCs produzidos por micróbios intestinais circulam na corrente sanguínea e chegam a outras áreas do corpo, como pulmões, protegendo os animais de vírus respiratórios.

O microbioma também pode combater vírus ao produzir compostos químicos que interferem no ciclo de vida viral. Por exemplo, algumas bactérias produzem toxinas denominadas bacteriocinas para combater outras cepas concorrentes de bactérias. Mas estudos em culturas de células em laboratório sugerem que essas bacteriocinas também podem inibir as atividades de alguns vírus. As bactérias Streptomycetes produzem uma bacteriocina, denominada duramicina, que bloqueia a entrada do vírus-do-nilo-ocidental, da dengue e do ebola em suas células hospedeiras. Outras bacteriocinas interrompem a replicação dos vírus da herpes simples.

Um terceiro mecanismo pelo qual o microbioma pode colaborar com o combate aos vírus é por seu reforço ao sistema imune. Um estudo demonstrou que indivíduos que consumiram Lactobacillus, bactéria comumente encontrada em alimentos fermentados e iogurtes, em conjunto com uma dose de reforço da vacina contra a poliomielite, produziram anticorpos neutralizantes do vírus da poliomielite em uma taxa mais elevada.

Outro estudo, liderado por Dennis Kasper, imunologista do Instituto Blavatnik da Faculdade de Medicina de Harvard, comprovou que bactérias intestinais conhecidas como bacteroidetes estimulam a liberação de interferons por células imunes intestinais. Os interferons são fatores importantes que aumentam a reação do organismo aos vírus e ajudam a eliminar as células infectadas. Quando o microbioma se desequilibra ou se torna disbiótico, nossas defesas imunológicas podem ficar comprometidas. As “bacteroidetes constituem entre 40% e 50% das mais de 200 espécies de micróbios existentes no intestino da maioria das pessoas”, explica Kasper. “Pessoas disbióticas e sem esse equilíbrio normal de micróbios ficam mais suscetíveis a diversas doenças.”

“Talvez em pessoas disbióticas com quantidades menores dessas bacteroidetes no intestino, haja menos resistência ao ser encontrado um vírus e, portanto, uma infecção mais grave”, acrescenta Kasper.

Interferindo no microbioma

Diante das evidências crescentes do papel do microbioma no fortalecimento do sistema imune para o combate aos vírus, os pesquisadores estão buscando formas de aplicar essas descobertas em terapias e diagnósticos.

Como algumas espécies de bactérias intestinais foram associadas a piores desfechos em infecções virais, alguns pesquisadores propuseram utilizar essas bactérias como “biomarcadores” ou indicadores de diagnóstico. Por exemplo, Ana Maldonado-Contreras, microbióloga da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachusetts, relatou recentemente em uma pesquisa preliminar que a bactéria intestinal Enterococcus faecalis, também relacionada à inflamação crônica, é um indicador confiável de casos graves de covid-19. Maldonado-Contreras afirma que exames para detectar a presença dessa espécie de bactéria “podem ser um meio eficiente para identificar pacientes com maior probabilidade de desenvolver uma forma grave de infecção que requer maior atenção e intervenção clínica”.

Em termos de tratamento, os pesquisadores obtiveram êxito notável no transplante de microbiomas saudáveis em pacientes sem um microbioma saudável. O procedimento, denominado transplante de microbiota fecal, foi aprovado apenas para o tratamento de casos de colite bacteriana causada por infecção por Clostridium difficile (CDI, na sigla em inglês). O transplante de microbiota fecal cura com sucesso mais de 90% dos pacientes com CDI, o que sugere que outras doenças também podem ser tratadas com essa técnica. “Se a saúde intestinal afetar o prognóstico de covid-19, é preciso se valer disso para um melhor tratamento e prevenção da doença”, argumenta Kim. “Acredito que o transplante de microbiota fecal possa ser estudado como tratamento, ao menos para pacientes com um prognóstico ruim.”

Outra forma inovadora de alterar o microbioma pode ser por meio de bacteriófagos, que são vírus que infectam e matam determinadas espécies de bactérias. Em tese, os bacteriófagos poderiam ser administrados a pacientes para eliminar espécies bacterianas do microbioma que suprimem a capacidade do sistema imune de combater viroses. Em outras palavras, um vírus que destrói algumas bactérias seria utilizado para combater outro vírus que infecta células humanas por meio da alteração das bactérias colonizadoras do intestino humano.

Em vez de remodelar o microbioma, alguns pesquisadores preferem uma abordagem mais refinada. Se as moléculas benéficas produzidas por uma determinada espécie de bactéria intestinal puderem ser identificadas, poderiam ser fabricadas e administradas na forma de pílulas.

Por exemplo, as bactérias bacteroidetes, mencionadas acima, possuem uma molécula específica na superfície de suas células denominada glicolipídio, o qual estimula a liberação de interferons antivirais por parte das células intestinais do sistema imune. “Uma possibilidade promissora de nossa descoberta é que o glicolipídio indutor do interferon do tipo I poderia ser sintetizado e talvez até utilizado como profilaxia em indivíduos de risco”, afirma Kasper. Sua equipe testou essa hipótese e concluiu que ratos poderiam ser protegidos de infecções virais ao ser acrescentado esse glicolipídio bacteriano em sua água.

A forma de interação entre o microbioma e os vírus é complexa. A maioria dos estudos vem se concentrando na flora bacteriana do microbioma humano, relegando amplamente as contribuições de fungos, protozoários, bacteriófagos e outros vírus intestinais a um segundo plano. Mas novas pesquisas apontam para novas estratégias terapêuticas que poderiam ser exploradas na batalha contra as doenças infecciosas.

Cultivando um microbioma saudável

Como o conhecimento do microbioma intestinal ainda está em seus primórdios, alguns argumentam que é prematuro chegar a conclusões categóricas sobre seu papel no combate a infecções virais como a da covid-19.

Jonathan Eisen, microbiólogo diretor do programa especial de pesquisas em microbioma da Universidade da Califórnia em Davis, adverte que são necessárias mais pesquisas. “Estou preocupado com as alegações de uma possível relação causal entre o microbioma e o risco de infecção e de casos graves de covid-19 sem comprovação dessa relação causal.” Até o momento, foram observadas apenas correlações entre a infecção por covid-19, marcadores de inflamação e o microbioma, segundo Eisen. O desafio é determinar qual é o fator causador dessas correlações — elas podem, por exemplo, ser causadas por mudanças dietéticas ocorridas quando alguém adoece ou ainda podem ser devidas à resposta imune à infecção. “Contudo, neste momento, não é possível concluir que o microbioma desempenhe algum papel direto sobre questões relacionadas à covid-19.”

Também é difícil fornecer instruções exatas sobre como aumentar o microbioma para uma maior resistência a viroses. O microbioma de cada pessoa é diferente, afetado por uma combinação complexa de fatores genéticos, dietéticos e ambientais. Há um consenso geral, entretanto, de que uma dieta rica em prebióticos e probióticos, junto com exercícios físicos regulares, ajude a promover um microbioma saudável e proteja contra a permeabilidade intestinal.

Os prebióticos são um tipo de fibra encontrado apenas em vegetais e alguns suplementos. Alguns exemplos de alimentos ricos em fibras são alcachofras, aspargos, cebolas, feijões e frutas vermelhas. “Os prebióticos foram bastante estudados e foi demonstrado que melhoram a integridade intestinal”, afirma Scott Anderson, jornalista médico, autor do livro The Psychobiotic Revolution (A Revolução Psicobiótica, em tradução livre)Alimentos probióticos contêm bactérias ou leveduras vivas benéficas à saúde digestiva e incluem alimentos fermentados como kefir, chucrute, kimchi e iogurte.

Quanto aos exercícios físicos, estudos em ratos demonstraram que exercícios reduzem a inflamação e promovem a integridade intestinal. “É de amplo conhecimento que exercícios melhoram os níveis de AGCC ao equilibrar a microbiota, o que contribui para a nutrição e cicatrização das células que revestem o intestino”, acrescenta Anderson, o que, por sua vez, poderia prevenir complicações de infecções virais causadas por um intestino permeável.

Kim espera que esses novos estudos ajudem a motivar as pessoas a cuidarem adequadamente de sua microbiota para se proteger contra infecções e doenças inflamatórias crônicas. “O aumento do consumo de fibras é uma forma eficaz de melhorar o microbioma intestinal e pode contribuir para um melhor tratamento e prevenção de covid-19 no momento atual e também de doenças crônicas ao longo da vida.”

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