Novo aplicativo poderia prever a próxima pandemia?

Cientistas afirmam que é apenas questão de tempo antes que outro vírus mortal passe de um animal a um humano e comece a se propagar. Novo banco de dados global tenta classificar o risco proveniente de animais silvestres.

Por Sarah Elizabeth Richards
Publicado 16 de abr. de 2021, 12:00 BRT
pangolin

Pangolim malaio em galho no Parque Nacional Cuc Phuong, no Vietnã.

Foto de Suzi Eszterhas, Minden Pictures

Quando questionados sobre a possibilidade de pandemias futuras, os virologistas raramente são comedidos: a próxima está a caminho. É só uma questão de tempo.

Aliás, estima-se que existam 1,7 milhão de vírus em mamíferos e aves, e quase a metade poderia seguir a mesma trajetória mortal do coronavírus responsável pela disseminação da covid-19 — o que significa que poderia se deslocar de animais a humanos e originar outra pandemia.

Encontrar formas de prevenção é o que motiva uma equipe de pesquisadores da Universidade da Califórnia em Davis. A equipe tenta ajudar cientistas em todo mundo a determinar o eventual grau de risco de cada vírus, classificando sua probabilidade de contágio entre espécies e de evoluir a uma forma facilmente transmissível entre humanos. Esse fenômeno mal compreendido, denominado de “spillover viral ou troca de hospedeiro do vírus”, tem um longo histórico de causar surtos, como os do ebola, Mers, Sars e HIV, o vírus causador da aids.

A equipe lançou uma ferramenta on-line oportunamente denominada SpillOver. O aplicativo avalia 32 fatores de risco — como espécie do vírus, espécie hospedeira e país de detecção — e gera uma pontuação de risco de spillover. “Analisamos os vírus conhecidos por serem transmissíveis de animais a humanos e aqueles descobertos recentemente”, afirma Zoe Grange, que atuou no projeto como ecologista com pós-doutorado em patolologias de animais silvestres em Davis. Ao indicar os chamados “vírus preocupantes”, o banco de dados disponível ao público tem como objetivo criar uma lista de monitoramento a cientistas e legisladores.

Grange e sua orientadora, Jonna Mazet, epidemiologista da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade da Califórnia em Davis, tiveram a ideia de criar uma ferramenta de classificação durante uma caminhada na praia no segundo trimestre de 2017. Grange conta: “nós nos perguntamos por que não criar um banco de dados de avaliação de vírus”.

A ferramenta é uma tentativa de analisar os relatórios crescentes de novas sequências genéticas de vírus de animais coletadas como parte do projeto Predict de US$ 238 milhões executado pela Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos entre 2009 e 2019. Em um reconhecimento visionário da ameaça dos vírus de animais silvestres, o programa, que é anterior à covid-19, reuniu um exército global de 6,8 mil caçadores de vírus em 35 países. Parte do grupo coletou sangue, saliva, urina ou fezes de morcegos, roedores e primatas, ao passo que outros analisaram as sequências genéticas dessas amostras.

Foram identificados quase 900 novos vírus, incluindo 160 coronavírus e uma cepa de ebola até então desconhecida. Também foram detectados 18 vírus zoonóticos já conhecidos, como o vírus-da-febre-do-lassa e o marburg, que causam febres hemorrágicas. “Encontramos diversos vírus. Mas quais são as repercussões disso?”, indaga Grange, a atual cientista-chefe de proteção da saúde na Agência de Saúde Pública da Escócia. “Nem todo vírus causará uma pandemia”.

A configuração do banco de dados do SpillOver permite que os pesquisadores adicionem seus próprios relatórios. “Procuramos desenvolver uma ferramenta acessível a todos. É possível adicionar descobertas de vírus e fazer suas próprias classificações”, explica Mazet.

Em um estudo publicado recentemente, pesquisadores liderados por Grange e sua equipe da Universidade da Califórnia em Davis utilizaram dados de quase 75 mil animais, bem como registros públicos de detecções de vírus para classificar o potencial de spillover de 887 vírus de animais silvestres. O Sars-CoV-2, o vírus responsável pela covid-19, ficou em segundo lugar devido a sua probabilidade de causar doenças e se propagar entre populações humanas. Embora os dados tenham sido baseados em relatórios limitados do vírus em tigres, leões e visons de zoológicos, serviram como prova de que a ferramenta de classificação funciona. Atualmente, a Organização Mundial da Saúde acredita que é provável que o Sars-CoV-2 tenha sido transmitido diretamente de morcegos a humanos ou por meio de um animal intermediário, como um pangolim. O vírus que ficou em primeiro lugar foi o vírus-febre-do-lassa, endêmico na população de roedores da África Ocidental e causador de febre hemorrágica, que mata 1% das vítimas.

Ameaça crescente de spillover

Ao contrário de outras ferramentas que avaliam o risco de um número limitado de vírus, como a gripe comum, esse banco de dados se concentra em vírus encontrados em animais silvestres e oriundos de 26 famílias de vírus. É um recurso útil a esse campo da ciência em razão da aceleração do ritmo de spillover, segundo Raina Plowright, ecologista de animais silvestres da Universidade Estadual de Montana que estuda a dinâmica das doenças entre populações humanas e animais.

“O interessante é sua consideração bastante ampla sobre os fatores de risco, sobretudo as tensões sobre o ecossistema habitado pelo hospedeiro reservatório e a possível interação humana com esses hospedeiros”, observa ela. “Estamos invadindo os últimos espaços naturais, aumentando nosso contato com animais silvestres e esgotando recursos essenciais necessários à sobrevivência desses animais.” Com a limitação dos habitats dos animais, eles são forçados a entrar em áreas populosas em busca de alimento. Assim como os humanos, animais estressados são mais vulneráveis a doenças e à transmissão de vírus — entre indivíduos da mesma espécie, a outros animais e, possivelmente, a humanos.

Não se sabe como alguns desses novos vírus podem infectar humanos, um processo complexo que implica a entrada de um patógeno em células humanas, sua multiplicação e propagação pelo organismo, ao mesmo tempo em que se esquiva do sistema imunológico. Alguns vírus, como o nipah, podem ser transmitidos diretamente de morcegos a humanos, ao passo que outros precisam passar por um processo de adaptação para se tornarem contagiosos.

“Normalmente, um vírus requer diversas mutações para se tornar transmissível a humanos”, ressalta Hector Aguilar-Carreno, virologista da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Cornell, especializado em imunologia viral. “Depende do vírus. Em alguns casos, podem ser necessárias uma ou duas mutações. Mas alguns vírus podem precisar de mais de 20 mutações para conseguir passar pelas etapas necessárias para se tornarem transmissíveis ou para se replicarem no hospedeiro.” Um fator ainda mais complicador é a necessidade de um terceiro animal para que essas mutações ocorram, como sugerido com o Sars-CoV-2. O vírus possivelmente teria sofrido uma mutação ao se deslocar a um pangolim e outra ao se deslocar a humanos.

A importância das listas de monitoramento

O caráter impreciso desses possíveis eventos de spillover levanta a questão: o que fazer com essas informações? Segundo Mazet, pesquisadora principal do Predict, os dados colocam os vírus de risco elevado nos radares dos legisladores. “Não criamos essa ferramenta para assustar o mundo com a existência de tantos vírus novos sem que se saiba o que fazer com eles”, ressalta ela. “A finalidade da ferramenta é a criação de listas de monitoramento com dados completos sobre a forma de exposição humana a eles.”

Um cenário possível seria: como doenças transmitidas por morcegos podem ser propagadas por meio do guano (no qual o RNA do novo coronavírus foi detectado), produtores rurais que coletam guano para usar como adubo podem ser orientados a utilizar equipamento de proteção individual ou desinfetar o guano. “Pode ser necessária uma conversa sobre meios de subsistência alternativos se for muito perigoso ou a adoção de novas práticas seguras”, afirma Mazet. O projeto Predict resultou na criação do livro intitulado “Living Safely with Bats” (“Convivendo de forma segura com morcegos”, em tradução livre) — já que morcegos são o animal mais envolvido em eventos de spillover viral — obra traduzida para 12 idiomas e apresentada em centenas de reuniões públicas na África e na Ásia.

Morcegos apreciadores da seiva de tamareira

Quando a epidemiologista Emily Gurley atuou em Bangladesh no início da década de 2000, sua equipe conseguiu utilizar informações específicas sobre a transmissão de nipah por morcegos, um vírus letal sem tratamento conhecido, para ajudar os vilarejos a reduzir o risco. Após analisar surtos de nipah, Gurley e seus colegas identificaram morcegos frugívoros como a fonte do vírus (anteriormente, o vírus havia sido transmitido por porcos doentes a humanos na Malásia). Em muitas regiões de Bangladesh, seiva fresca de tamareira é considerada uma iguaria; o interessante é que os morcegos concordam, pois adoram lamber a seiva que escorre para os potes de coleta — e, nesse processo, contaminam o líquido ao urinar ou defecar nele.

“As evidências indicaram que essa via de spillover era a rota predominante de transmissão”, conta Emily Gurley, atualmente cientista associada da Faculdade de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg. Seus estudos resultaram na campanha de conscientização “beba seiva com segurança”, que orientava moradores a instalar redes para manter os morcegos afastados dos potes de coleta.

Embora o programa Predict tenha sido encerrado em setembro, Mazet revela que seu objetivo foi capacitar diferentes países a prosseguir com o monitoramento e engajar comunidades locais antes do próximo spillover — e possivelmente da próxima pandemia. Uma segunda iniciativa se concentra na educação de profissionais de saúde em várias disciplinas em universidades da África e do Sudeste Asiático com enfoque na prevenção e detecção de doenças. “Ainda existem milhares de vírus a serem descobertos”, adverte ela.

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