Crise na Índia mostra como tratamento com oxigênio não está acessível a todos

A escassez paralisou hospitais no mundo inteiro devido à distribuição desigual, mas especialistas afirmam que há uma maneira de resolver essa questão.

Por Amy McKeever
Publicado 14 de mai. de 2021, 07:00 BRT
oxygen

NOVA DELHI, ÍNDIA - 23/04: parentes de um paciente com covid-19 empurram carrinho com cilindros de oxigênio vazios para serem recarregados em um centro de abastecimento de oxigênio na região da antiga Delhi. A Índia está ficando sem oxigênio durante a segunda onda da pandemia de covid-19.

Foto de Naveen Sharma, SOPA Images/Light Rocket via Getty Images

Oxigênio é um tratamento médico essencial para salvar vidas humanas. Mas sua extrema importância ficou evidente quando a Índia tentou reagir a um surto mortal de covid-19 nas últimas semanas. Trens expressos cruzam o país para levar oxigênio da cidade de Angul, no leste, até a capital, Delhi, e outras regiões. Enquanto isso, as redes sociais ficam repletas de apelos desesperados de pessoas forçadas a assistirem impotentemente seus familiares sufocarem aos poucos.

Ao longo da pandemia de covid-19, a escassez de oxigênio paralisou hospitais no BrasilPeruNigériaJordâniaItália, entre outros. Até mesmo nos Estados Unidos a disponibilidade de oxigênio em hospitais de Nova York e da Califórnia ficou perigosamente baixa em alguns períodos. Somando-se à crise na Índia, esses fatos chamaram a atenção da mídia internacional.

Mas essa escassez está longe de ser um fenômeno atual. Especialistas afirmam que a pandemia está agravando a desigualdade no acesso ao oxigênio, que todos os anos causa um número incalculável de mortes que poderiam ter sido evitadas em países de renda média e baixa.

“A pandemia de covid-19 só expôs a fragilidade existente na cadeia de suprimento de oxigênio ao longo dos anos”, declara Mphu Ramatlapeng, vice-presidente executiva de implementação da Iniciativa Clinton de Acesso à Saúde (CHAI, na sigla em inglês), que ficou entre as finalistas para receber o subsídio de US$100 milhões oferecido pela Fundação MacArthur para financiar a proposta de assegurar o acesso ao oxigênio na Índia, Nigéria, Etiópia, Quênia e Uganda. “Meu pior pesadelo era acontecer algo como a pandemia de covid-19.”

Por que é tão difícil para os países conseguirem oxigênio suficiente, sendo que ele é um dos elementos mais fundamentais para a manutenção da vida? Vamos analisar as complexidades do fornecimento de oxigênio médico, como os cientistas trabalham para encontrar soluções e como a pandemia provocou uma resposta mais vigorosa da comunidade internacional — antes que outro país se torne a próxima Índia.

A desigualdade no acesso ao oxigênio

Oxigênio médico é uma forma mais concentrada de oxigênio, comparado ao que está presente no ar que respiramos. Na verdade, a maior parte da atmosfera terrestre é composta por nitrogênio — somente 21% do ar normal são oxigênio. No entanto o oxigênio médico tem, no mínimo, 82% de oxigênio pfuro, taxa atingida através de um processo químico. O uso moderno como tratamento terapêutico remonta à Primeira Guerra Mundial, quando foi administrado aos soldados expostos a gás mostarda em trincheiras ao longo da Europa.

A oxigenoterapia é especialmente importante para doenças respiratórias, como a covid-19 ou a pneumonia, que é a principal causa de morte de crianças em países de baixa renda. Uma complicação fatal da pneumonia é a hipoxemia — condição que ocorre quando a pessoa apresenta níveis baixos de oxigênio no sangue. Quando o nível de oxigênio no sangue está baixo, os órgãos começam a parar de funcionar.

“As células precisam de oxigênio para sobreviver”, explica Michael Hawkes, professor assistente de pediatria na Universidade de Alberta e supervisor de um programa de fornecimento de oxigênio através da energia solar, que atua principalmente em Uganda. “O sistema sanguíneo existe para levar oxigênio até os órgãos.”

O oxigênio também pode salvar vidas por vários outros motivos. A hipoxemia pode ser uma complicação de várias doenças, desde malária severa e doenças cardiovasculares até traumas em que pacientes perdem muito sangue. O oxigênio suplementar ajuda o corpo a ganhar tempo enquanto os médicos tratam a fonte do problema. Médicos também administram oxigênio a pacientes anestesiados durante cirurgias.

“O uso do oxigênio está presente em todos os aspectos do mundo médico”, afirma Ramatlapeng.

Mas o oxigênio nem sempre está disponível para pacientes de países de média e baixa renda. Em 2014, um estudo feito em hospitais do Malawi constatou que apenas 22% dos pacientes que precisavam de oxigênio o recebiam. Um estudo de 2019, realizado em hospitais no sudoeste da Nigéria, constatou que eles conseguiam fornecer oxigênio para apenas 20% das crianças que precisam dele. E um estudo realizado em 2020 revelou que a melhoria na qualidade do programa de oxigênio em unidades de saúde da Papua-Nova Guiné reduziu em 40% as mortes pediátricas em geral e, em 50%, as mortes por pneumonia.

“Existe uma década de estudos mostrando que, se houver oxigênio em unidades de saúde remotas, onde a pneumonia é um problema comum pelo menos entre crianças, é possível reduzir a mortalidade em 50%”, declara Trevor Duke, autor principal do estudo, pediatra da Universidade de Melbourne e professor adjunto de saúde infantil da Universidade de Papua Nova-Guiné.

Apesar das evidências claras de que o oxigênio médico salva vidas, há muitos desafios complexos que o impedem de chegar até as unidades de saúde — começando pela maneira como o oxigênio é fornecido.

Cilindros, concentradores e tubulação de oxigênio

O sistema de fornecimento de oxigênio difere de acordo com o local: unidades grandes ou pequenas; ambientes urbanos ou rurais; ou comunidades de renda alta ou baixa.

As grandes unidades de saúde do mundo inteiro dependem de oxigênio a granel. Nesse sistema, os hospitais possuem tanques enormes de oxigênio líquido, transportado através de tubulações por todo o hospital, que podem ser ligados e desligados, como uma torneira. Esse sistema é muito custoso para unidades de saúde menores. Ele requer acesso a fornecedores de gases — que possuem um certo monopólio no mercado — para reabastecer os tanques. Também exige enormes investimentos para construir a tubulação e Duke conclui que “um vazamento é inevitável” em locais de renda baixa.

Como alternativa, as unidades de saúde em comunidades rurais ou de baixa renda recebem oxigênio em cilindros individuais, que são abastecidos por fornecedores de gases em plantas de oxigênio. Mas os cilindros altamente pressurizados são pesados e perigosos, aumentando o custo de transporte — especialmente até vilas remotas, localizadas a centenas de quilômetros das plantas de oxigênio. Além disso, há falta constante de cilindros. Eles armazenam oxigênio suficiente para abastecer um adulto durante um a três dias, então as unidades de saúde precisam ter muitas unidades de reserva em estoque.

“Foram vistas fotos de pessoas na Índia morrendo porque o oxigênio acabou”, comenta Duke. “Há maneiras melhores de organizar esse sistema, onde há suprimento constante de oxigênio, como os concentradores.”

Concentradores de oxigênio existem desde a década de 1970. Essas máquinas possuem cristais de zeólito que absorvem o nitrogênio do ar normal, deixando apenas o oxigênio concentrado que chega até o paciente através de tubos conectados em cânulas nasais. Um concentrador é capaz de fornecer oxigênio para duas crianças ao mesmo tempo. Mas eles exigem eletricidade estável, que nem sempre está disponível.

“Falta de energia elétrica pode ser fatal”, ressalta Hawkes. “Se faltar por apenas alguns minutos, uma criança pode morrer.”

É por isso que muitos dos que tentam melhorar o acesso ao oxigênio recorrem a concentradores solares, que funcionam da mesma maneira, mas recebem energia de painéis solares e baterias em vez de eletricidade. Também há um aumento no uso de geradores de oxigênio: em essência, são concentradores muito maiores, que hospitais regionais de médio porte podem utilizar para abastecer cilindros de unidades menores do mesmo distrito — um modelo de consolidação e redespacho.

Para comunidades de renda média e baixa, Duke afirma que a melhor opção é a combinação de concentradores e geradores de oxigênio por energia solar. Porém, como demonstrado no estudo de 2020 em hospitais rurais da Papua-Nova Guiné, onde Duke trabalha há quase três décadas, um programa de oxigênio bem-sucedido também requer um tipo diferente de investimento.

“É fácil fornecer um cilindro de oxigênio e uma máscara para alguém na Índia”, ele diz. “Mas isso não é um sistema, é uma solução temporária.”

Oxímetros e treinamento das equipes

É necessário mais do que apenas o acesso ao oxigênio para poder fornecê-lo com segurança aos pacientes. Unidades de saúde precisam ter equipes com conhecimento para utilizar e conservar concentradores de oxigênio, caso contrário, como explica Hawkes, eles podem ter validade de seis meses a um ano. Também é necessário haver um ótimo sistema de gestão de fornecimento, para que a equipe saiba o momento de encomendar novos cilindros, certificando-se de que eles estejam sempre disponíveis.

Primeiramente, eles também precisam saber como diagnosticar a hipoxemia. Ela é difícil de se detectar nas fases iniciais, com poucos sintomas clínicos até que progrida ao ponto em que o paciente sente dificuldades para respirar.

É nesse momento que entram os oxímetros. Inventados na década de 1970, esses pequenos equipamentos eletrônicos que são presos no dedo da pessoa para medir a saturação do oxigênio no sangue se tornaram procedimento padrão nos hospitais dos Estados Unidos no fim da década de 1980. Eles são tão comuns em alguns países que muitos norte-americanos os compraram devido ao pânico no início da pandemia de covid-19.

“É importante empregá-los na admissão de pacientes em uma unidade médica”, afirma Ramatlapeng.

Mas Ramatlapeng complementa que oxímetros não estão disponíveis em 90% das unidades de saúde nos países onde a Iniciativa Clinton de Acesso à Saúde atua. Em muitos casos, não se considera que eles têm a mesma importância dos instrumentos que medem pressão arterial e termômetros.

Isso acontece, em parte, devido à maneira que as mortes são registradas. A hipoxemia raramente é registrada como causa de morte, exceto em casos raros, como em alpinistas, por exemplo. É mais provável que a própria doença — pneumonia, malária, doença cardiovascular — seja registrada no atestado de óbito. Ramatlapeng conta que é por isso que nem mesmo os profissionais de saúde se dão conta de quantas vidas são perdidas devido à hipoxemia.

“Pessoas e crianças morrem por falta de oxigênio há anos”, ela afirma. “Acreditamos que o oxigênio tem que passar a ser o centro das atenções.”

Um tratamento essencial e negligenciado

Resolver o problema do acesso ao oxigênio exigirá investimentos significativos da comunidade internacional — que, historicamente, têm faltado em meio a um cenário de financiamentos que tende a priorizar novos medicamentos e vacinas, de acordo com Duke.

“É um tratamento essencial que tem sido deixado de lado”, afirma Duke. “Oxigênio é um recurso essencial, mas bem antigo. Então, de modo geral, ele tem pouca prioridade.”

Mas há razões para acreditar que a pandemia de covid-19 pode ser o gatilho para uma mudança de prioridade, já que ela destaca a importância do oxigênio para salvar vidas.

Entre setembro e novembro de 2020, uma coalizão de ONGs lançou o COVID-19 Oxygen Needs Tracker (Rastreador de necessidades de oxigênio durante a pandemia de covid-19, em tradução livre), que permite que os financiadores observem em tempo real quantos metros cúbicos de oxigênio são necessários por dia em países de média e baixa renda. Os resultados foram tão surpreendentes que, em fevereiro de 2021, a OMS lançou uma força-tarefa para cuidar de emergências relacionadas à falta oxigênio durante a pandemia de covid-19, com o objetivo de assegurar US$90 milhões em financiamentos imediatos para necessidade de oxigênio em países de média e baixa renda, e US$1,6 bilhão em financiamentos para o próximo ano.

Robert Matiru, diretor de programas da Unitaid, agência de saúde global que lidera a força-tarefa, reconheceu que essa necessidade demorou para deslanchar entre os financiadores.

“Deveria ter havido um alerta antes de chegar a essa situação na Índia”, afirma Matiru. “Não era necessário ter acontecido algo dessa magnitude para os governos perceberam a importância disso”.

Matiru diz que a força-tarefa da OMS tem quatro objetivos principais: chamar atenção para a crise do oxigênio, precificar as necessidades de oxigênio de países de renda média e baixa, relacionar tais necessidades a alternativas de financiamento e diminuir o preço do oxigênio. Embora a força-tarefa tenha foco na crise da covid-19, ela pode trazer resultados em longo prazo na resolução do problema de acesso a oxigênio.

“O bom é que, ao investir em oxigênio médico para pacientes com covid-19, também estamos investindo em sistemas de oxigênio médico”, indica Matiru, mencionando também que as necessidades emergenciais durante a pandemia são de fato necessidades de longo prazo em muitos países de renda baixa, onde a vacinação está acontecendo de forma lenta.

No entanto Duke preocupa-se com o fato de que a resposta não será rápida o suficiente para poupar os países que têm probabilidade de aumentos drásticos de casos de covid-19 e estão ainda mais vulneráveis do que a Índia. Mesmo assim, ele espera que a pandemia provocará um novo entendimento sobre a importância de investir em bons sistemas de oxigênio, e não apenas nas tecnologias mais recentes.

“O melhor momento para agir foi há vários anos atrás, mas ainda não é tarde demais.”

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