Sonda de Marte coleta primeira amostra de rocha, passo crucial para busca de vida extraterrestre
A sonda Perseverance da Nasa armazenará essa e outras amostras puras para serem enviadas à Terra, o que “representará um ponto de inflexão para os conhecimentos científicos sobre Marte”.
A sonda Perseverance da Nasa coletou, em Marte, sua primeira amostra de rocha para ser enviada à Terra, parte de sua missão de finalmente revelar se o planeta vermelho já abrigou vida.
Com o zumbido de uma broca, um robô geológico a quase 400 milhões de quilômetros de distância acaba de fazer história ao coletar a primeira amostra de Marte a ser enviada à Terra. Lacrada em um tubo asséptico hermético, a amostra é um marco importante em uma iniciativa multibilionária para finalmente responder à pergunta: já existiu vida no planeta vermelho?
A manobra bem-sucedida da sonda Perseverance da Nasa ocorreu após uma primeira tentativa frustrada de amostragem no mês passado, quando uma rocha fraca e desgastada no solo da cratera esfarelou. Desta vez, a equipe tentou em um local diferente, recolhendo um cilindro de rocha mais resistente do tamanho de um dedo em um pedregulho ao longo de uma elevação de cerca oitocentos metros de comprimento.
“Para toda a ciência da Nasa, esse foi um momento histórico”, declarou Thomas Zurbuchen, administrador associado do departamento científico da Nasa, em comunicado à imprensa.
Este pequeno cilindro de rocha — mostrado na imagem dentro da broca de perfuração da sonda — é a primeira dentre dezenas que a Nasa planeja enviar à Terra.
No entanto o processo teve seus percalços. Embora as imagens iniciais mostrassem a rocha castanha e manchada no interior do tubo, a amostra desapareceu quando a sonda agitou o tubo para limpar a poeira. Um dia a mais de análise revelou que o conteúdo havia simplesmente deslizado para mais fundo no tubo, que a Perseverance então tampou com segurança e guardou em seu interior.
Essa amostra é apenas a primeira dentre dezenas a serem coletadas nos próximos meses. A sonda posteriormente depositará seu conjunto de amostras na superfície de Marte, e uma missão futura irá recolher e transportar as rochas para ansiosos cientistas na Terra.
“Parece um pouco surreal”, afirma Vivian Sun, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa (“JPL”, na sigla em inglês), uma das diretoras da primeira campanha científica da missão. “O que estamos fazendo neste momento afetará a visão científica sobre Marte por muito tempo.”
Além de coletar amostras, a Perseverance está equipada para detecção de odores, aromas e imagens na paisagem marciana com mais detalhes do que nunca, ajudando cientistas a desvendar o passado aquoso do planeta e a buscar indícios de micróbios marcianos que podem ter existido em rios e lagos atualmente desaparecidos. O local dessa busca emocionante é a Cratera Jezero, uma bacia de cerca de 45 quilômetros de largura esculpida pelo impacto de um meteorito há bilhões de anos.
A Perseverance pousou perto da borda da cratera em fevereiro de 2021 após uma descida angustiante de sete minutos na delgada atmosfera de Marte. Embora o solo sob as seis rodas do veículo espacial esteja atualmente seco, as rochas avermelhadas e a areia contêm indícios de um passado repleto de água. A equipe científica explorará essa região com um conjunto avançado de instrumentos da sonda, selecionando amostras no solo da cratera, no antigo delta de um rio e em outros pontos mais distantes.
“Vamos nos surpreender”, afirma Nina Lanza, cientista planetária e líder da equipe de Exploração Espacial e Planetária do Laboratório Nacional de Los Alamos. “Faremos descobertas nunca sequer imaginadas.”
Intrigante mistério geológico de Jezero
Os cientistas acreditam que Marte já foi coberto por uma atmosfera espessa, o que ajudou a reter calor suficiente para evitar que a água congelasse e produziu pressão suficiente para impedir que o líquido evaporasse e se perdesse na forma gasosa. Contudo, em algum momento, a atmosfera ficou mais fina e o clima de Marte sofreu uma mudança drástica. Há três bilhões de anos, o planeta já estava seco, e Marte se tornou a bola de terra vermelha que conhecemos.
Exatamente por que e como esse processo ocorreu permanece um mistério. As rochas de Jezero oferecem uma oportunidade de estudar essa transformação drástica, registrando justamente a janela de tempo do período da transição. “À medida que exploramos diferentes trechos da cratera dentro de Jezero, podemos viajar no tempo”, conta Kathryn Stack Morgan, cientista adjunta de projetos do JPL da Nasa.
Jezero é uma cratera dentro de outra cratera. Essas depressões planetárias estão situadas na borda oeste da Bacia Isidis: uma cratera extensa com cerca de 1,2 mil quilômetros de largura, resultado do impacto de uma enorme rocha espacial há cerca de 3,9 bilhões de anos. Um impacto posterior esculpiu a cratera rochosa interna atualmente conhecida como Jezero. Depois veio a água.
Rios sinuosos transbordaram pela borda da cratera, criando um antigo lago. A água diminuiu ao entrar na bacia, fazendo com que a lama e a areia suspensa assentassem no fundo do lago e formassem deltas, que se espalharam ao redor de ramificações de cursos d’água.
A sonda explorará os resquícios secos do maior delta da cratera, localizado na borda oeste de Jezero. O rápido acúmulo de sedimentos desse delta pode ter causado um soterramento rápido, preservando sinais de vida — se é que existiu — antes que os rios fossem drenados há aproximadamente 3,5 bilhões de anos.
Uma fenda na extremidade oposta dessa zona arenosa, conhecida como Pliva Vallis, marca o local onde a água escorria do lago. A presença de uma entrada e de uma saída sugere uma renovação constante das águas do lago, evitando a concentração de sais a níveis que poderiam ter sido prejudiciais a muitas formas de vida, e talvez tornando Jezero um local propício ao desenvolvimento de micróbios.
“Como geóloga, não posso deixar de me animar por conhecer a história de Marte”, revela Bethany Ehlmann, cientista planetária do Instituto de Tecnologia da Califórnia.
“Rocha de comportamento incomum”
Para coletar o tesouro geológico de Jezero, o sistema de amostragem da Perseverance é composto por um trio de robôs que operam em conjunto para perfurar cilindros de rocha, lacrá-los em tubos herméticos e depositá-los em um suporte de armazenamento no interior da sonda. “É uma sonda dentro de outra sonda”, conta Ian Clark, engenheiro de sistemas do JPL que integra a equipe da missão Perseverance.
Na primeira tentativa de amostragem da Perseverance, a sonda mirou em um mosaico entrelaçado de rochas marrom-avermelhadas claras que compõem faixas no fundo da cratera: talvez as rochas mais antigas que a sonda encontrará em Jezero. Os indícios observados por órbita e pelas análises da própria sonda no solo apontam para uma origem vulcânica dessas “rochas de pavimentação”, como denominadas pela equipe. Se essa origem for confirmada, enviar essas rochas à Terra permitiria aos cientistas datá-las com precisão usando elementos radioativos, ajudando a reconstituir o passado complexo da região.
Mas a primeira tentativa de amostragem deixou a equipe de mãos vazias. Embora o sistema de amostragem da sonda inicialmente indicasse funcionar conforme planejado, o tubo lacrado permaneceu vazio. Análises posteriores sugeriram que a interação da rocha com a água antiga eliminou grande parte da adesão geológica que a mantinha coesa, o que fez com que a amostra se esfarelasse sob os movimentos da broca de perfuração.
A equipe não perdeu a esperança de coletar amostras do solo da cratera e planeja futuramente buscar rochas de pavimentação com menos erosão para perfurar, escreveu Ken Farley, cientista do projeto Perseverance, em um blog.
Mas, na segunda e última tentativa de perfuração, a equipe direcionou a sonda a oeste em busca de rochas “tão diferentes quanto possível” das rochas de pavimentação. A sonda se concentrou em uma rocha no topo de uma elevação de cerca de oitocentos metros de comprimento denominada Artuby. Erguendo-se sobre a paisagem, a rocha parece ter resistido a longos períodos de desgaste, o que sugere que seria forte o suficiente para resistir a perfurações.
A rocha amostrada possui aspecto semelhante a outras rochas que se projetam do fundo da cratera, denominadas, por vezes, “rochas elevadas”, afirma Roger Wiens, cientista planetário do Laboratório Nacional de Los Alamos e pesquisador principal da câmera “SuperCam” da Perseverance. Inicialmente, a equipe planejava coletar amostras de uma dessas rochas elevadas, bem como as rochas de pavimentação. “Mas pretendíamos começar com o que era considerado mais fácil, que seriam as rochas mais macias e foi uma surpresa”, ri Wiens.
O último núcleo recém-armazenado confirma que a primeira amostra representou “apenas uma rocha de comportamento incomum”, como Farley suspeitava, e não um problema com os mecanismos de perfuração e armazenamento de núcleos da sonda.
Coleta de mais amostras — e seu envio à Terra
Após armazenar em segurança a primeira amostra, a sonda logo regressará ao leste e depois seguirá para o norte até o delta, estudando as formações rochosas ao longo do trajeto. Os cientistas estão ansiosos para examinar rochas com camadas finas. Essas laminações podem ser encontradas na Terra em sedimentos depositados pela água, pelo vento ou, algumas vezes, por vulcões.
Na água, as laminações se acumulam a partir da deposição gradual de lama, uma camada por vez, o que poderia ter preservado vestígios de vida em Jezero, bem como a composição química do lago agora desaparecido — oferecendo “um verdadeiro registro” das condições em que as rochas se formaram, afirma Keyron Hickman-Lewis, geobiólogo do Museu de História Natural de Londres e cientista da missão de envio de amostras da Perseverance à Terra.
É comum haver camadas em deltas, incluindo no de Jezero, mas a sonda também avistou laminações promissoras em unidades de rocha no fundo da cratera. Em uma coletiva de imprensa em 21 de julho, Farley apresentou a foto de um depósito no solo da cratera semelhante a uma pilha irregular de papéis pardos. “Este é exatamente o tipo de rocha que temos mais interesse em analisar”, contou ele. Mas os cientistas ainda tentam desvendar quais processos formaram essas rochas, sejam eles sedimentos, vulcões ou ambos, afirma Wiens.
No delta, dois outros alvos atraentes são argilas e minerais carbonáticos, avistados pela primeira vez, há mais de uma década, por Ehlmann, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, e seus colegas em Jezero, usando dados orbitais. Na Terra, os carbonatos geralmente possuem laços estreitos com a vida e podem preservar estruturas impressionantes, como camadas finamente enrugadas de antigos tapetes microbianos conhecidos como estromatólitos. As argilas podem enterrar rapidamente a matéria orgânica e, se existente em Marte, podem protegê-la da radiação cósmica destrutiva que atinge a superfície do planeta.
Outro possível alvo intrigante de estudos são as rochas ricas em manganês. Os minerais de manganês podem se formar de várias maneiras, mas, determinadas vezes, micróbios participam desse processo.
Em um estudo recente, Lanza, do Laboratório Nacional de Los Alamos, e seus colegas sugeriram que cianobactérias poderiam produzir um revestimento rico em manganês, comumente encontrado na camada superficial de rochas em desertos em todo o mundo. Esses micróbios podem utilizar os minerais como uma espécie de filtro solar, protegendo-se da forte radiação ultravioleta.
Anteriormente, foi observado manganês em Marte na cratera de Gale, onde a sonda Curiosity está ocupada com seus próprios estudos. A equipe acredita que também pode ter encontrado manganês em Jezero, mas ainda tenta confirmar sua presença e quantidade. O manganês em Marte pode assumir diversas formas e criar um revestimento semelhante nas rochas no interior da cratera.
“Se for encontrado algo semelhante a esse revestimento de rocha, será feita uma análise minuciosa”, afirma Lanza.
Encontrando vida como a conhecemos
Assim que dezenas de amostras forem coletadas e armazenadas em um depósito, outra missão terá de pousar no planeta para buscá-las. A Nasa e a Agência Espacial Europeia estão projetando um módulo de pouso equipado com um mecanismo de recolhimento da sonda que poderá ser lançado em 2026.
Um pequeno foguete no módulo levaria as preciosas rochas para a órbita de Marte, onde uma sonda orbital as recolheria e enviaria à Terra, lançando as amostras em uma pequena sonda que aterrissaria no deserto de Utah.
Após o envio das amostras em segurança à Terra, os cientistas planejam utilizar ferramentas avançadas para desvendar todos os segredos guardados nos resíduos rochosos. Mas, ainda assim, grandes desafios permanecem na busca por vida extraterrestre antiga. Os especialistas não chegaram a um consenso sobre que tipo de evidência seria suficiente para identificar formas de vida extremamente antigas, até mesmo na Terra. Alegações da existência de vida há bilhões de anos em nosso planeta geraram discussões que já duram anos e despertaram polêmica entre cientistas.
O centro de debate recente foi uma série de rochas de 3,7 bilhões de anos na costa sudoeste da Groenlândia. Em 2016, uma equipe de cientistas declarou que um conjunto de triângulos enrugados na rocha eram vestígios de atividade microbiana, o que os tornaria a vida fóssil mais antiga conhecida. Mas Abigail Allwood, geóloga do JPL, e seus colegas não se convenceram. Ao retornar para estudar o afloramento, um fenômeno diferente ficou evidente. As rugas não haviam sido causadas pela movimentação de micróbios, mas por processos geológicos na compressão da rocha.
“Não há nada como observar os afloramentos pessoalmente para ter uma noção dos processos em curso, o que não é possível pelas lentes de uma câmera”, afirma Allwood. Quando percebe o que está dizendo, acrescenta com uma risada: “que é exatamente o que estamos tentando fazer em Marte”.
Como não é possível ter uma equipe humana fisicamente presente em Marte, a Perseverance está equipada para lhes oferecer uma visão das rochas em diversas escalas — desde imagens de toda a paisagem até análises químicas de fragmentos de rocha do tamanho de uma agulha. Allwood é a pesquisadora principal do instrumento PIXL da Perseverance, que consegue captar imagens de objetos minúsculos e usar raios x para analisar a composição química da rocha marciana.
Ainda assim, há limites para o que se consegue descobrir à distância, e é por isso que a coleta de amostras é tão importante. Quando essas amostras chegarem à Terra, permitirão a primeira análise de perto de um material puro do planeta vermelho. Como diz Lanza: “representará um ponto de inflexão para os conhecimentos científicos sobre Marte.”