Novos medicamentos antivirais podem mudar o rumo da pandemia
Não é fácil produzi-los. Mas novos medicamentos para combater a covid-19 têm se revelado promissores no controle da doença e na redução do risco de morte.
Comprimidos antivirais em fábrica de embalagens na cidade de Khimki, na Rússia, em 18 de maio de 2020.
Anos antes do surgimento da pandemia de covid-19, virologistas começaram a estudar medicamentos antivirais que pudessem oferecer proteção contra novos coronavírus potenciais. A jornada foi lenta e as falhas eram frequentes. Mas com a recente aprovação do Reino Unido para o uso do novo medicamento molnupiravir, produzido pela Merck, e com investimentos em P&D de antivirais, as perspectivas em relação a esse tipo de tratamento estão cada vez melhores.
Ao contrário das vacinas, que previnem a infecção, os antivirais atuam como uma segunda linha de defesa, desacelerando e eventualmente interrompendo a evolução do quadro de infecção. Os antivirais também são importantes em casos de doenças contra as quais não há vacinas eficazes, como HIV, hepatite C e herpes.
Mas o desenvolvimento de antivirais é um empreendimento caro e complexo, especialmente no caso de doenças respiratórias agudas, para as quais o prazo para iniciar o tratamento é curto. No caso do Sars-CoV-2, o novo coronavírus que desencadeou a devastadora pandemia de covid-19, os pesquisadores recorreram ao reaproveitamento de medicamentos ou compostos antigos que estavam sendo testados contra outras doenças.
“Isso é comum”, diz Katherine Seley-Radtke, química medicinal da Universidade de Maryland, no condado de Baltimore, nos Estados Unidos. “Toda vez que surge um novo vírus ou um antigo reaparece, testamos o que há disponível para ver o que funciona.”
Até o momento, o remdesivir, originalmente desenvolvido pela biofarmacêutica Gilead Sciences para infecções por hepatite C e ebola, é o único medicamento antiviral aprovado pela Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) para tratar casos de covid-19. O medicamento requer administração intravenosa em ambiente hospitalar, embora não haja consenso sobre sua eficácia contra a covid-19.
Especialistas acreditam que os antivirais orais, como os da Merck, são as ferramentas mais promissoras no combate à pandemia em conjunto com as vacinas. Sendo mais acessíveis, os antivirais podem ser importantes especialmente entre pessoas que ainda não foram vacinadas, seja por escolha ou devido ao acesso limitado e restrições econômicas.
“As pessoas não se importam em tomar remédios”, afirma Seley-Radtke. “É possível armazená-los e não são necessárias condições específicas para isso; bem como é possível enviá-los para todo o mundo.”
Em junho de 2021, o presidente Joe Biden anunciou um investimento de mais de um bilhão de dólares para promover o desenvolvimento de antivirais contra a covid-19. Como parte do mesmo plano, ele também prometeu um financiamento adicional de US$ 1,2 bilhão para o estudo de novos compostos que possam ser utilizados para tratar o Sars-CoV-2, bem como outros vírus emergentes com potencial de causarem uma pandemia.
“O governo e as agências de financiamento estão finalmente levando isso a sério”, observa Seley-Radtke sobre o desenvolvimento de antivirais. “Não podemos continuar sentados apenas esperando a próxima pandemia. Temos que ser proativos e estarmos preparados.”
Como funcionam os antivirais
Ao contrário das bactérias, os vírus não podem se reproduzir por conta própria. Eles dependem do mecanismo celular para a sua replicação. Isso significa que um vírus deve invadir uma célula viva e apropriar-se de seu mecanismo para fazer milhares de cópias de si mesmo. Posteriormente, esses “descendentes” escapam e infectam células hospedeiras próximas, espalhando a doença dentro do organismo e, por fim, para novos portadores.
Os medicamentos antivirais geralmente funcionam impedindo que o vírus se fixe ou entre na célula hospedeira, ou obstruindo sua replicação uma vez que já tenha se inserido na célula.
O antiviral remdesivir, por exemplo, imita um dos blocos de construção genéticos essenciais para a replicação do Sars-CoV-2; em seguida, ele é incorporado ao genoma viral, interrompendo sua replicação. O antiviral experimental molnupiravir, desenvolvido pela empresa de biotecnologia Ridgeback Biotherapeutics LP e pela Merck & Co., realiza mimetismo semelhante e induz erros durante a replicação viral.
“Então chega-se a um ponto em que há tantos erros que o vírus não consegue mais se replicar”, explica William Fischer, virologista de cuidados intensivos da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, nos Estados Unidos.
O antiviral experimental PF-07321332 da Pfizer também tem como alvo a replicação viral, mas age inibindo enzimas conhecidas como proteases. O Sars-CoV-2 e outros vírus, como o HIV, utilizam essas enzimas para dividir grandes proteínas em fragmentos menores que se combinam com o material genético viral para formar novas cópias do vírus.
Muitos especialistas acreditam que visar o mecanismo da célula humana invadido pelo vírus pode ser muito eficaz, mas o que os preocupa é que esses antivirais podem danificar células saudáveis, causando uma série de efeitos colaterais. Ter apenas proteínas virais como alvos também não é uma solução permanente. “Tentar desenvolver um antiviral contra uma proteína viral específica provocará uma pressão evolutiva muito rápida sobre o vírus para sofrer mutação e desenvolver resistência”, diz Tia Tummino, farmacologista da Universidade da Califórnia, em São Francisco.
Uma estratégia mais eficaz é utilizar vários desses medicamentos antivirais em combinações de dois a quatro para atingir diferentes proteínas virais e estágios de vida simultaneamente, o que é uma prática padrão para combater o HIV ou tratar infecções por hepatite C. “Isso torna mais difícil para o vírus evadir os mecanismos de ação dos medicamentos”, diz Tummino.
Desenvolvimento complicado de antivirais
No entanto, desenvolver antivirais seguros e eficazes não é fácil. Pouco mais de 100 medicamentos desse tipo foram aprovados pela FDA desde 1963, quando o primeiro antiviral (idoxuridina) foi aprovado para tratar a herpes ocular. Mais de um terço dos antivirais aprovados pela FDA são para administração contra o HIV.
Historicamente, a produção de medicamentos antivirais adotou uma abordagem de “um alvo por medicamento”, o que significa que proteínas comuns são direcionadas a grupos específicos de vírus. Embora esses antivirais possam ser extremamente eficazes, os vírus produzem muito poucas proteínas por conta própria, dando aos fabricantes de medicamentos opções limitadas de alvos.
Também existe o risco de os medicamentos danificarem as células. Algumas proteínas virais podem ser únicas, no sentido de que não se sobrepõem às produzidas pelo hospedeiro, tornando-as alvos ideais para medicamentos antivirais. Mas se as proteínas-alvo se sobrepõem ou desempenham as mesmas funções que as células hospedeiras humanas, há potencial para causar danos indesejados que podem resultar em efeitos colaterais.
Um outro desafio é a crescente diversidade de vírus que causam doenças graves em humanos e, portanto, a necessidade de antivirais que atuem contra vários tipos desses patógenos. O remdesivir tem como alvo uma enzima viral denominada polimerase, que possui uma arquitetura genética semelhante em diferentes coronavírus. Mas existem poucos antivirais de amplo espectro, tanto por a quanto pelo potencial em causar efeitos colaterais imprevistos.
Depois que os fabricantes de medicamentos identificam um alvo, o composto passa por uma longa fase de testes. A primeira etapa envolve demonstrar que o composto funciona em células infectadas em placas de Petri, depois avaliar se é seguro e eficaz em animais de laboratório e, por fim, realizar ensaios clínicos em humanos. Às vezes, com um novo vírus, o desafio pode ser encontrar as células certas e modelos animais correspondentes para a realização desses testes. No início da pesquisa para tratamento da hepatite C, por exemplo, os chimpanzés eram os únicos animais de laboratório que podiam ser infectados com o vírus para fins experimentais, e isso levantou questões éticas. Apenas depois de alguns anos foram desenvolvidos camundongos geneticamente modificados que pudessem ser infectados com o vírus.
Todo o processo requer, portanto, um investimento considerável. Como as infecções por hepatite C e HIV são crônicas e afetam milhões de pessoas em todo o mundo, sustentam o interesse de empresas farmacêuticas com fins lucrativos. “Mas quando se trata de medicamentos disponíveis para doenças respiratórias agudas, é possível contá-los nos dedos”, diz Timothy Sheahan, virologista da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill. “O tempo de que se dispõe para intervir e aplicar o tratamento é muito curto”, o que pode não ser um empreendimento lucrativo, a menos que muitas pessoas sejam afetadas.
Nem mesmo se sabia que os coronavírus causavam doenças humanas graves até os anos de 2002 a 2004, quando o vírus que causa a SRAG infectou cerca de oito mil pessoas em todo o mundo e ocasionou 774 mortes. O mesmo ocorreu com o coronavírus responsável pela Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), que infectou mais de duas mil pessoas e causou a morte de quase 900 — seis delas neste ano.
Com essas ocorrências relacionadas à SRAG e Mers, virologistas começaram a pesquisar antivirais contra coronavírus — e em seguida emergiu a pandemia de covid-19.
Corrida para desenvolver antivirais contra o Sars-CoV-2
Normalmente, a produção de antivirais para novos vírus pode levar pelo menos uma década. Como esperado, a urgência causada pela covid-19 levou à descoberta de novas maneiras de administração de medicamentos antigos.
“O reaproveitamento de medicamentos é comum contra doenças pouco estudadas e epidemias decorrentes de novos vírus”, salienta Tummino. “Reduz o tempo desde a descoberta até que o medicamento possa ser utilizado humanos.”
Pesquisadores começaram a rastrear coleções moleculares, como a coleção ReFRAME do Instituto de Pesquisa Biomédica da Califórnia, para analisar se algum medicamento aprovado pela FDA e compostos em pesquisa eram eficazes contra o Sars-CoV-2. Laura Riva, bióloga computacional do Sanford Burnham Prebys Medical Discovery Institute, na Califórnia, conduziu uma dessas triagens junto com seus colegas e identificou mais de uma dezena de compostos, por exemplo, o remdesivir, que bloqueou a replicação do Sars-CoV-2 em animais e células humanas.
Em um estudo realizado em macacos realizado em junho de 2020, pesquisadores observaram o potencial antiviral do remdesivir contra o Sars-CoV-2. E em um dos primeiros ensaios clínicos envolvendo pacientes de covid-19 hospitalizados, notaram a capacidade do medicamento em diminuir o tempo de recuperação. O medicamento foi aprovado em outubro de 2020, tornando-se o primeiro tratamento contra a covid-19 aprovado pela FDA, apesar de não contar com o apoio irrestrito de outros ensaios clínicos.
No entanto, é difícil identificar antivirais de possível eficácia e utilização sem saber que aspecto da biologia do vírus eles têm como alvo. Também existe o risco de que muitos compostos tenham o mesmo método de ataque ineficaz. Por exemplo, 33 dos medicamentos reaproveitados testados, incluindo a infame hidroxicloroquina, apresentaram resultados similares porque acumularam substâncias semelhantes à gordura em células em placas de Petri que, de alguma, forma reduziram a replicação do Sars-CoV-2, mas não foram tão eficazes quando testados em mais de 300 ensaios clínicos relacionados à covid-19.
“É por isso que sou crítico em relação ao reaproveitamento de medicamentos”, diz Miguel Ángel Martínez, virologista clínico do Instituto IrsiCaixa de Pesquisa da Aids, na Espanha. “Não há atalho para o desenvolvimento de antivirais.”
Ainda assim, outros especialistas acreditam que antivirais experimentais, como o molnupiravir, que foi desenvolvido pela primeira vez para a gripe, têm potencial para combater a covid-19.
Resultados de ensaios clínicos trazem esperança
Ao contrário do remdesivir, que é administrado por via intravenosa, o molnupiravir é fabricado em comprimidos. Destinado a pacientes com covid-19 leve a moderada, o antiviral oral é administrado em até cinco dias após o surgimento dos sintomas. Em um comunicado à imprensa no dia 1o de outubro, as farmacêuticas Merck e Ridgeback Biotherapeutics anunciaram os resultados da fase três do estudo, que demonstraram que tomar o comprimido duas vezes ao dia durante cinco dias reduz pela metade a hospitalização e as mortes entre os infectados.
Embora essas sejam descobertas provisórias que ainda não foram revisadas por pares, as empresas solicitaram no dia 11 de outubro, em conjunto, uma autorização da FDA para uso emergencial do medicamento; o Reino Unido autorizou o uso do molnupirair em 4 de novembro.
Outro antiviral oral, o favipiravir, também conhecido como Avigan, que foi inicialmente desenvolvido para ser administrado contra a gripe no Japão, está passando por ensaios clínicos para avaliar se pode ser utilizado no início de uma infecção por covid-19. Estudos anteriores com favipiravir, embora de pequena escala, sugeriram que em pacientes com covid-19 hospitalizados com quadros leves a moderados, o medicamento poderia eliminar o vírus Sars-CoV-2 das regiões do nariz e garganta. Até agora, países como Japão, Rússia e Índia aprovaram seu uso para tratar a covid-19.
O medicamento antiviral experimental PF-07321332 da Pfizer também tem como objetivo atacar as infecções por Sars-CoV-2 precocemente para prevenir a rápida replicação viral. Desenvolvido como um tratamento potencial para Sars-CoV há quase duas décadas, o medicamento experimental reaproveitado está agora sendo administrado em combinação com uma pequena dose de ritonavir, antiviral para HIV, a pacientes com covid-19 em ensaios clínicos de fase dois e três em andamento.
No momento, há outros antivirais em fases iniciais de ensaios clínicos, e ao menos alguns outros poderão se juntar à essa lista.
“Estamos tendo a oportunidade de testar antivirais para uma doença respiratória aguda diferente de todas as que já vimos”, disse Sheahan. “Vale a pena comemorar a aprovação dos antivirais. Ter mais de um medicamento aprovado para uma única doença será ainda melhor.”