Ossos de criança primitiva aprofundam mistério em torno de um enigmático parente humano

Dentes e fragmentos de crânio encontrados em reentrâncias nos labirintos de uma caverna sul-africana alimentam o debate sobre como vivia o Homo naledi — e como se desfazia de seus mortos.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 15 de nov. de 2021, 10:57 BRT
The Chute

Antropóloga Marina Elliott sentada na entrada do sistema de cavernas Rising Star, na África do Sul. Os restos foram descobertos por sua equipe em uma passagem remota no fundo da rede de túneis da caverna.

Foto de Robert Clark

Em uma fenda apertada a cerca de 45 metros abaixo do solo no sistema de cavernas Rising Star (“Estrela Ascendente”, em tradução livre), na África do Sul, Becca Peixotto se espremeu entre as paredes rochosas para passar por uma curva. Centímetro por centímetro, ela comprimiu seu corpo através da passagem tortuosa, virando quase de cabeça para baixo para chegar a uma pequena saliência onde um tesouro científico esperava: os dentes e fragmentos ósseos de uma criança que viveu há mais de 240 mil anos, um parente humano enigmático conhecido como Homo naledi.

A descoberta é mais uma dentre os quase dois mil ossos e dentes de H. naledi recuperados de Rising Star desde que espeleólogos encontraram os primeiros fósseis em 2013. Os restos mortais da criança — que se estima ter morrido entre quatro e seis anos de idade — incluem seis dentes e 28 fragmentos de crânio.

Nenhuma dessas descobertas foi fácil devido aos vertiginosos paredões e passagens tão estreitas que os espeleólogos precisaram soltar o ar para comprimir suas costelas. Mas os últimos movimentos contorcionistas que Peixotto, arqueóloga da Universidade Americana, em Washington, D.C., e seus membros de equipe precisaram fazer foram alguns dos mais desafiadores até hoje.

A aventura labiríntica para encontrar os restos mortais da criança, apelidada de “Leti” em homenagem à palavra na língua tsuana que significa “perdido”, ressalta uma pergunta incômoda sobre esses misteriosos parentes humanos: como e por que se aventuraram tão fundo nessa caverna escura e tortuosa?

“Ninguém da equipe tinha a expectativa de encontrar ossos de naledi nessas situações”, afirma John Hawks, paleoantropólogo da Universidade de Wisconsin-Madison. “Estamos avançando por lugares que estão a muitos metros de passagens inacessíveis.”

A descoberta da criança, descrita em um novo estudo publicado no periódico Paleoantropology, fez parte de uma iniciativa de exploração das áreas mais profundas da caverna em 2017 e 2018. A equipe mapeou mais de 300 metros de novas passagens e descreveu o sistema como semelhante a um labirinto, em um segundo estudo. O estudo revelou apenas uma entrada a partir do sistema de cavernas mais amplo ao subsistema Dinaledi, onde a maioria dos restos de H. naledi haviam sido encontrados. Os últimos restos foram encontrados mais fundo no subsistema, depositados a mais de trinta metros de sua abertura.

As descobertas sugerem que os restos mortais podem ter sido trazidos deliberadamente por outro H. naledi como uma forma de se desfazer intencionalmente de seus mortos, sugerem os autores do estudo. “Não há nenhuma outra razão lógica para o crânio dessa criança estar em um local extraordinariamente difícil de alcançar e perigoso”, declarou Lee Berger, líder da Expedição Rising Star, paleoantropólogo da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e Explorador Geral da National Geographic, em entrevista coletiva sobre a descoberta.

No entanto alguns cientistas que não integraram o estudo ainda não estão convencidos. O fato de o H. naledi ter carregado seus mortos a uma caverna tem grande significado para paleoantropólogos e arqueólogos. Esse tratamento intencional dos falecidos implica um nível de complexidade cultural que se pensava ser exclusivo da nossa espécie.

“Nossa reação à morte, nosso amor por outros indivíduos, nossos laços sociais — quanto disso depende da natureza humana?”, indaga Hawks.

Labirinto geológico

mistura desconcertante de características antigas e modernas do H. naledi causou alvoroço entre os cientistas após a descoberta da espécie, anunciada em 2015, demonstrando que a evolução humana é mais complexa do que se acreditava. Mas um dos aspectos mais surpreendentes sobre esses hominíneos de baixa estatura foi a dificuldade de recuperar seus restos mortais, sugerindo que deve ter sido difícil para eles se aventurarem tão fundo pela caverna.

A câmara Dinaledi da caverna contém os restos de ao menos 15 Homo naledi, um dos quais é mostrado na composição do esqueleto acima.

Foto de Robert Clark

Em 2013 , a primeira equipe de escavação consistia em seis cientistas, todas mulheres especialistas em espeleologia e, mais importante, pequenas o suficiente para caber no labirinto geológico da caverna. Ao longo dos anos, expedições financiadas em parte pela National Geographic Society reuniram ao menos 20 indivíduos de H. naledi, 15 dos quais foram encontrados em uma única câmara no subsistema Dinaledi.

Essas concentrações de corpos geralmente são resultado da chamada “armadilha mortal”, uma cavidade subterrânea aberta na superfície onde animais ou pessoas desavisados podem cair. Mas essas armadilhas matam uma variedade de animais, como os encontrados na caverna Malapa, na África do Sul, ao passo que a grande maioria dos ossos em Rising Star são exclusivamente de H. naledi.

Muitas outras explicações de como os restos mortais foram parar na caverna também não são plausíveis, de acordo com a equipe do estudo. É improvável que carnívoros tenham arrastado indivíduos de H. naledi para a caverna porque os ossos não apresentam sinais de marcas de dentes. Os restos mortais também não parecem ter sido levados para a caverna pela água, pois algumas partes do corpo foram encontradas quase intactas, incluindo uma mão com os ossos dispostos como estariam em vida: com a palma para cima, dedos curvados para dentro.

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    Marina Elliott explora uma câmara lateral com a paleontóloga Ashley Kruger durante a expedição de 2013. Elliott foi uma das seis cientistas da expedição com porte físico e habilidades que a permitiram acessar a câmara Dinaledi.

    Foto de Elliot Ross

    No entanto entrar na caverna teria sido perigoso, especialmente transportando um cadáver. A inspeção cuidadosa do único ponto de entrada do sistema sugere que havia duas maneiras de descer durante a época do H. naledi: uma descida quase vertical de 12 metros conhecida como canaleta ou uma rede de fendas quase inacessíveis em uma das paredes da canaleta.

    A equipe inicialmente propôs que os H. naledi estivessem jogando seus mortos na queda vertical que conduz à câmara. Mas escavações adicionais revelaram três sítios arqueológicos, incluindo o da criança recém-descoberta, mais fundo na caverna.

    “São locais onde não poderia haver material ósseo do Homo naledi a menos que o Homo naledi estivesse nesse subsistema, o que significa que indivíduos vivos da espécie desceram pela canaleta e entraram nessa caverna”, afirma Hawks.

    Profusão de dúvidas

    Outros cientistas, entretanto, ainda não estão convencidos. O mapeamento e os ossos recém-encontrados “ainda não demonstram que os restos foram depositados deliberadamente por outros humanos”, escreveu Paul Pettitt, arqueólogo da Universidade de Durham, por e-mail. Mas ele acrescenta que a descoberta mais recente “torna a hipótese mais provável”.

    Ele e outros pesquisadores sugerem que ainda há explicações alternativas que precisam ser descartadas. Talvez os hominíneos estivessem usando as cavernas de alguma forma e morreram lá, sugere Aurore Val, pós-doutoranda da Universidade de Tübingen.

    Ela aponta para babuínos, que muitas vezes passam as noites — e algumas vezes morrem — em cavernas. Os babuínos mortos geralmente são muito jovens ou velhos e morrem de uma variedade de causas naturais, como doenças, conta ela. Em um estudo recente, Val e seus colegas encontraram uma distribuição semelhante de jovens e velhos entre os restos de H. naledi em Rising Star e babuínos na caverna Misgrot, também na África do Sul. “Não estou dizendo que resolvemos o mistério”, adverte Val. “Mas acredito que vale a pena explorar essa possibilidade.”

    Os cientistas apenas começaram a desvendar os inúmeros segredos do sistema de cavernas de Rising Star — e estão animados com outras possíveis descobertas.

    Foto de Robert Clark

    Um estudo mais detalhado também é necessário para documentar por completo a geologia da caverna e suas transformações ao longo dos milênios. E a datação de Leti e de outros fósseis recém-descobertos também pode ajudar a definir como era a caverna na época em que os restos mortais de hominíneos foram depositados, observa Andy Herreis, paleoantropólogo e geoarqueólogo da Universidade La Trobe, na Austrália, e Explorador da National Geographic. “Cavernas são locais complexos”, escreve ele por e-mail. “Passagens se abrem e entradas desabam com o tempo.”

    Embora a caverna tenha se modificado um pouco, com quedas de rochas e o estreitamento de algumas passagens devido ao acúmulo de depósitos minerais, as análises anteriores da equipe sugerem que a estrutura principal do subsistema Dinaledi permaneceu bastante estável por milhares de anos, afirma Marina Elliott, autora do estudo, antropóloga da Universidade Simon Fraser que liderou as escavações na caverna entre 2013 e 2019.

    No entanto o debate certamente prosseguirá. A confirmação de que o H. naledi desbravava passagens sinuosas da caverna para se desfazer de seus mortos seria uma grande mudança na teoria aceita por muitos cientistas. O Homo sapiens é a única espécie viva que enterra deliberadamente seus mortos, embora alguns neandertais também possam ter adotado as mesmas práticas.

    Talvez o descarte deliberado de mortos por outros hominíneos não devesse ser tão surpreendente, comenta Elliott.

    “Como humanos, gostamos de nos sentir especiais e não apreciamos quando outras espécies partilham isso”, prossegue ela. Mas já se comprovou que muitos traços antes considerados por cientistas como características definidoras do Homo sapiens, como o desenvolvimento de ferramentas, são compartilhados com outros hominíneos e primatas.

    Elliott reconhece que muitas perguntas permanecem sem resposta, e os dois novos estudos parecem aprofundar o mistério. “Mas isso é obviamente bom”, afirma ela. “Oferece muito o que estudar.”

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