Como a Covid-19 afeta o coração

Muitos pacientes apresentam palpitações cardíacas, dor no peito e falta de ar, até mesmo após se recuperarem da Covid-19. Mas novos estudos oferecem esperança.

Por Amy McKeever
Publicado 16 de dez. de 2021, 07:00 BRT

Radiografia de tórax em cores mostrando coração dilatado de uma paciente de 74 anos com covid-19. Alguns pacientes continuam manifestando sintomas cardiovasculares meses após se recuperarem da covid-19 — até mesmo após suas tomografias de tórax e outros exames voltarem ao normal.

Foto de P. Marazzi, Science Source

Danielle Huff estava em sua esteira ergométrica quando sentiu pela primeira vez a dor no peito. Ela havia acabado de se recuperar de um caso terrível de Covid-19 cerca de duas ou três semanas antes, durante as quais apresentou quase todos os sintomas imagináveis: dor de garganta, dor de cabeça, congestão nasal, tosse, perda do olfato, dores no corpo, um caso leve de conjuntivite, e uma sensação de peso constante no peito como se houvesse uma bola de boliche sobre ele.

Mas essa sensação em seu peito era diferente: era uma dor mais aguda que surgiu de repente. Huff, administradora escolar de Illinois, nos Estados Unidos, com cerca de 30 anos, tem histórico familiar de problemas cardíacos e temia que pudesse ser um sinal de algo grave. Embora sempre houvesse tentado ter um estilo de vida saudável — fazendo ioga ou caminhando todos os dias — ela logo ficou amedrontada demais para se exercitar.

“Cheguei ao ponto de simplesmente não conseguir mais me exercitar”, conta ela. “Estava com medo da dor no peito porque não sabia qual era sua causa.” Por fim, seu médico a encaminhou a um cardiologista especializado no tratamento de pacientes recuperados da Covid-19, mas que ainda apresentam sintomas cardíacos.

Desde os primeiros meses da pandemia, cientistas suspeitam que a Covid-19 seja uma enfermidade que acometa os pulmões e também o coração e os vasos sanguíneos. “Percebemos desde cedo que a coagulação desempenhava um papel importante”, afirma Jeffrey Berger, diretor do Centro Langone de Prevenção de Doenças Cardiovasculares da Universidade de Nova York. Já em março de 2020, os médicos notaram índices inesperadamente elevados de coágulos sanguíneos em seus pacientes, ocasionando um aumento nos ataques cardíacos e derrames. As autópsias também revelaram massas de pequenos coágulos sanguíneos em locais normalmente não observados, como no fígado e nos rins.

Já está claro que a lesão cardiovascular da Covid-19 não desaparece no instante em que o paciente se recupera da infecção original. Para alguns pacientes, as imagens de ressonância magnética revelam sinais de inflamação meses após a eliminação do vírus. Outros continuam apresentando níveis elevados de troponina, substância química liberada no sangue sempre que há lesão no músculo cardíaco.

Inesperadamente, Huff fez uma bateria de exames cardíacos e os resultados foram normais. Ainda assim, ela teve tanta falta de ar que precisou sair de uma aula de ioga e não conseguia andar pelo prédio da escola sem precisar se sentar. E cerca de um mês depois de se recuperar da Covid-19, começou a sentir palpitações cardíacas aleatórias.

Para tornar o mistério ainda mais complexo, algumas pessoas que tiveram apenas casos leves ou até mesmo assintomáticos de Covid-19 também estão relatando sintomas duradouros, como palpitações cardíacas, dor no peito, falta de ar e fadiga extrema. Os cientistas ainda não compreendem a causa disso.

“Para mim, não há dúvida de que esses indivíduos manifestam sintomas reais”, afirma James de Lemos, cardiologista do Centro Médico do Sudoeste da Universidade do Texas e copresidente do comitê diretor de registro de pacientes de doenças cardiovasculares acometidos com Covid-19 da organização sem fins lucrativos American Heart Association. “A pergunta é: há alguma lesão cardíaca que esteja causando sintomas imperceptíveis?”

Há motivo de esperança. Os pesquisadores fizeram avanços na compreensão sobre as formas de prevenção dos efeitos da Covid-19 sobre o coração e os vasos sanguíneos. Ao mesmo tempo, médicos aprendem mais a cada dia sobre o tratamento dos sintomas da “Covid longa” — e investigações rigorosas estão em andamento para ajudar a esclarecer o que desencadeia esses sintomas.

Efeitos da Covid-19 sobre o sistema cardiovascular

No início de 2020, médicos logo notaram que o uso de anticoagulantes, que ajudam a evitar a coagulação sanguínea, aumentavam as chances de sobrevivência de pacientes com casos moderados de Covid-19. Contudo, segundo Berger, também ficou claro que casos de coagulação sanguínea letal demandavam mais do que meras terapias anticoagulantes.

“Um em cada quatro pacientes ainda morria ou necessitava de suporte de órgãos”, revela ele.

Entre cinco e 10 anos atrás, cientistas começaram a entender que as plaquetas desempenham um papel na promoção da coagulação e inflamação indesejadas em outras doenças como aids, psoríase, lúpus e artrite reumatoide. Essas pequenas células sanguíneas arredondadas têm uma função principal: estancar o sangramento ligando-se a um vaso sanguíneo danificado e formando um coágulo. Com essa informação em mente, Berger e uma equipe de pesquisadores começaram a investigar qual é o papel desempenhado pelas plaquetas na Covid-19.

“Os resultados foram totalmente inesperados”, afirma Berger. “Foi como se algo alterasse a arquitetura genética dessas plaquetas.”

Em um estudo publicado no periódico Science Advances, os pesquisadores demonstraram que o vírus é capaz de invadir megacariócitos, células da medula óssea que sintetizam plaquetas. A célula infectada então altera o material genético das plaquetas para que se tornem mais ativas e emitam sinais de proteínas que tornam o revestimento dos vasos sanguíneos viscoso e inflamado, o que, por sua vez, torna os vasos propensos a desenvolver coágulos que podem circular por todo o corpo.

Os cientistas também descobriram que o vírus enfraquece as conexões do tecido de revestimento dos vasos sanguíneos, tornando-os permeáveis em vez de vedá-los, como esperado quando há coágulos.

“É como uma faca de dois gumes”, comenta Ben Maoz, engenheiro biomédico da Universidade de Tel Aviv, em Israel, e autor principal de um estudo recente que identificou as proteínas do Sars-CoV-2 que causam a maioria das lesões no revestimento dos vasos sanguíneos. De algum modo, prossegue ele, a Covid-19 afeta os vasos sanguíneos “com uma ação dupla e oposta”.

Vasos permeáveis permitem que o sangue e outras substâncias químicas do organismo circulem por áreas que não deveriam —incluindo os alvéolos pulmonares e tecidos de outros órgãos, o que pode produzir diversos efeitos em cascata, como os edemas pulmonares observados em muitos casos graves de Covid-19 e complicações no fígado, rins e, é claro, no coração.

“São efeitos dos quais deveríamos estar protegidos”, observa Maoz. Ele compara esse dano a um saco de lixo rasgado: os rasgos deixam alguns resíduos passarem. Alguns indícios posteriores, como o odor e o líquido pútrido, serão notados imediatamente. Mas outros — como, por exemplo, uma infestação futura de ratos — podem não ser percebidos por meses. A extensão desse dano dependerá do tamanho e duração do vazamento.

Síndrome pós-Covid-19

Mas não se sabe ao certo se essa lesão aos vasos sanguíneos está ligada aos sintomas cardiovasculares persistentes em pacientes recuperados de Covid-19. Maoz aponta que o vírus causa danos de muitas maneiras complexas que são difíceis de desvencilhar. No entanto os médicos continuam a observar sinais de lesões no tecido cardíaco, como miocardite, inflamação do músculo cardíaco ou altos níveis de troponina meses após a internação por Covid-19.

Berger explica que é comum um vírus que cause uma inflamação tão severa ter consequências residuais após a recuperação — sobretudo entre pacientes com casos moderados ou severos que precisaram de internação hospitalar. É preocupante que alguns pacientes com casos assintomáticos, leves ou moderados — incluindo crianças — também tenham evidências semelhantes de lesões cardíacas.

No entanto evidências crescentes sugerem que a miocardite causada pela Covid-19 é mais rara do que inicialmente se acreditava, segundo Lemos. Em setembro, um estudo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos demonstrou que o risco de miocardite é quase 16 vezes maior em pacientes com Covid-19 do que nas demais pessoas. Entretanto o estudo concluiu que esse quadro clínico é incomum em ambas as populações — e o risco de miocardite causada por Covid-19 é de apenas 0,146%. Lemos afirma que a lesão também se cura em poucos meses.

“A maioria desses corações parecem bastante normais quando reavaliados durante o acompanhamento”, afirma ele.

Mas há pacientes como Huff. Amanda Verma, cardiologista que tratou de Huff na clínica de síndrome pós-Covid-19 da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis, conta que alguns pacientes chegam com dor no peito, mas seus testes de esforço são normais. Outros se queixam de palpitações, mas quando equipados com monitores de frequência cardíaca, seus ritmos cardíacos parecem normais. Ainda assim, Verma adverte que esses exames não revelam tudo.

“Com um exame um pouco mais profundo, percebe-se que o padrão de frequência cardíaca não está tão normal assim”, ressalta ela. Embora seja esperado que a frequência cardíaca de uma pessoa aumente durante uma caminhada, não é normal que a frequência cardíaca de pacientes mais jovens e atléticos salte de 60 para 120 apenas ao caminhar por uma sala ou ao dormir — como ocorrido com Huff.

Este aumento anormal sugere uma disfunção desencadeada pela Covid-19 no sistema nervoso autônomo, as vias das células nervosas que controlam automaticamente as funções vitais, como respiração e batimento cardíaco, conta Verma. É uma resposta evolutiva de “luta ou fuga” que permite que seu organismo funcione sem ter que ser instruído conscientemente. Para os pacientes com sintomas persistentes de Covid-19, esse sistema parece ficar desregulado.

“Esses pacientes geralmente se queixam de estarem exaustos no fim do dia — e quem não queixaria se sua frequência cardíaca subisse tanto durante o dia?”, indaga Verma. “É como se a pessoa tivesse corrido o dia todo.”

Os cientistas ainda não entenderam como a Covid-19 pode estar causando esse tipo de disfunção. Algumas hipóteses sugerem que pode ser resultado da reação inflamatória excessiva do organismo ao vírus, ou talvez possa até estar relacionado com hormônios sexuais, pois as mulheres têm mais probabilidade do que os homens de se tornarem pacientes com sintomas persistentes de Covid-19. De qualquer forma, a incapacidade de especificar a síndrome dificulta a cobertura médica dos tratamentos pelas seguradoras — algo desconcertante aos pacientes, que sentem que seus sintomas não são levados a sério.

“É incrivelmente frustrante para pacientes que padecem desses sintomas porque não conseguem respostas”, explica Lemos. “De certo modo, validar a existência dos sintomas é o primeiro passo. Essa é uma doença real simplesmente incompreendida ainda.”

Motivos de esperança

Os pesquisadores fizeram avanços na identificação de tratamentos que podem reduzir a gravidade da Covid-19 e, em última análise, melhorar os desfechos cardiovasculares. Berger e sua equipe estão estudando fármacos direcionados às plaquetas para evitar que sejam ativadas e causem coagulação.

Por ora, Maoz e sua equipe identificaram as cinco proteínas do vírus que mais lesionam o revestimento dos vasos sanguíneos. Estão testando um modelo que permitirá aos pesquisadores identificar as proteínas que causam danos em outras partes do corpo. Essa compreensão molecular contribuirá para o desenvolvimento de fármacos que podem impedir que proteínas específicas interfiram nos vasos sanguíneos e causem doenças graves.

“É incrível como conseguimos nos adaptar e responder perguntas fundamentais em tão pouco tempo”, conta Berger. “A velocidade da ciência melhorou drasticamente.”

Contudo ele reconhece que nenhum desses possíveis fármacos capazes de impedir a coagulação das plaquetas ou a interferência nos vasos sanguíneos pelas proteínas do vírus ajudará pessoas que já apresentam sintomas persistentes de Covid-19. Para isso, os cientistas precisarão descobrir o que desencadeia essa complexa abundância de sintomas.

No início deste ano, os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos lançaram uma iniciativa de pesquisa colaborativa que contribuirá com estudos em grande escala com crianças e adultos com “Covid longa”. E Verma afirma que médicos especializados em pacientes com Covid persistente estão começando a encontrar tratamentos, como a prescrição de anti-inflamatórios para dores no peito e betabloqueadores para reduzir a pressão arterial de pacientes com a frequência cardíaca descontrolada. Até mesmo exercícios físicos — quando monitorados e estruturados cuidadosamente para não agravar a fadiga — podem ser benéficos.

Há também relatos de que os sintomas persistentes de Covid-19 podem desaparecer com o tempo — embora seja algo que possa demorar entre um ano e 18 meses. Verma observa que conseguiu eliminar a medicação de alguns de seus pacientes, e muitos daqueles que não se recuperaram completamente acabam se sentindo melhor após o tratamento.

“A grande dúvida é se isso afetará a saúde deles daqui a 10 ou 15 anos”, pondera ela. “Será que há algum efeito que simplesmente passou despercebido?”

Para Huff, a situação melhorou. Após tomar medicamentos para hipertensão e frequência cardíaca elevada, as palpitações e a falta de ar passaram. Curiosamente, também desapareceram as enxaquecas frequentes que ela tinha desde os 13 anos. Ela ainda tem muito medo da dor no peito para voltar a se exercitar, mas está esperançosa devido às respostas que poderão ser fornecidas pelas atuais pesquisas e pela comunicação franca entre médicos e pacientes à medida que as implicações da Covid-19 em longo prazo são compreendidas.

“Há muito o que descobrir e posso entender a frustração de não saber o que está acontecendo”, conta ela. “Mas entendo que simplesmente não terei todas as respostas agora.”

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