Por que os sinais de vida em Marte são tão misteriosos?
Descobertas recentes feitas por sondas da Nasa parecem sinais promissores de vida extraterrestre — mas anteriormente foram tiradas conclusões precipitadas sobre Marte, e os cientistas ainda não compreendem por completo os mecanismos em ação no planeta.
A sonda Curiosity da Nasa coletou amostras na cratera Gale em Marte, mostrada nesta imagem, que apresentaram alto teor de um isótopo leve de carbono — algo, na Terra, associado à vida.
Para cientistas em busca de formas de vida extraterrestre, o fascínio por Marte aumenta cada vez mais. Diversas imagens recentes captadas por sondas no planeta vermelho podem conter vestígios de micróbios — uma possível indicação de que a Terra não é o único refúgio de vida no Sistema Solar.
No início de janeiro, foi feito um anúncio emocionante: a sonda Curiosity da Nasa identificou uma mistura de isótopos de carbono em rochas na cratera Gale que, se observada na Terra, indicaria um sinal de vida. A sonda também encontrou picos aleatórios e sazonais de metano, um gás presente na Terra produzido predominantemente por atividade biológica.
Na cratera Jezero, a cerca de 3,7 mil quilômetros de distância, a sonda Perseverance da Nasa identificou camadas roxas misteriosas nas rochas no fundo da cratera. Essas camadas encontram-se amplamente dispersas em Marte e, na Terra, o verniz do deserto, produzido por micróbios, é bastante semelhante a elas.
A Curiosity tirou esta selfie em um local apelidado de “Mary Anning” em homenagem à paleontóloga inglesa do século 19. A sonda coletou três amostras a partir da rocha perfurada nesse local ao sair da região de Glen Torridon, onde cientistas acreditam que as condições antigas podem ter sido propícias à vida.
Por ora, entretanto, cientistas ainda não podem determinar se nosso vizinho vermelho já foi habitado. Quase todos os possíveis indícios de atividade biológica também podem ser explicados por algum aspecto geológico ou químico ainda desconhecido existente em Marte — há muito que não se sabe sobre o funcionamento do planeta e como fenômenos não biológicos podem estar mascarando sinais da vida.
“É um planeta diferente do nosso e talvez existam mecanismos nem sequer cogitados por nós”, afirma Abigail Fraeman, cientista adjunta do projeto Curiosity, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa.
Segundo cientistas, o próximo passo na busca por vida em Marte é trazer fragmentos do planeta a laboratórios na Terra, onde há instrumentos sofisticados disponíveis para buscar respostas a uma das perguntas mais antigas da humanidade. A sonda Perseverance já está coletando o primeiro conjunto de amostras, que podem conter evidências de que micro-organismos viveram na cratera Jezero há bilhões de anos.
Qualquer que seja a resposta, algo profundo sobre as origens da vida em nosso próprio planeta será revelado.
“Há muito em comum na história antiga de ambos os planetas, e é bastante intrigante que, durante suas evoluções planetárias, tenham se afastado tanto”, afirma Amy Williams, astrobióloga da Universidade da Flórida. “Se não houver vida em Marte, quais são as razões disso? O que mudou com relação à Terra? O que será que aconteceu? Por que não surgiu vida em Marte? E se surgiu, o que houve com ela?”
Existe vida em Marte?
Em nossas fantasias, Marte quase sempre foi habitado — se não por alienígenas, ao menos pela humanidade no futuro. Mas as observações espaciais logo frustraram sonhos de civilizações avançadas, vegetação sazonal ou até mesmo marcianos vegetarianos benévolos e pegajosos.
“Não havia nada de grande interesse, nenhuma comunicação nem recepção hostil quando pousamos no planeta”, afirma Andrew Steele, do Instituto Carnegie de Ciências.
Em vez disso, imagens obtidas a partir da órbita e experimentos conduzidos pelas sondas Vikings da Nasa na superfície do planeta deixaram evidente que Marte não era um planeta com vida abundante facilmente detectável. “Isso acabou suspendendo as pesquisas sobre Marte por muito tempo”, conta Steele.
Em 1996, cientistas anunciaram que um meteorito marciano recolhido na região de Allan Hills, na Antártida, parecia conter microfósseis — pequenos vestígios mineralizados em formato de minhoca, sinais de que formas de vida haviam rastejado pela superfície do planeta há cerca de 4,1 bilhões de anos. Essas observações eram questionáveis e extremamente polêmicas, provocando debates que persistem até hoje. Mas houve um lado positivo.
“A polêmica de Allan Hills forneceu um grande ímpeto ao campo da astrobiologia”, conta Kennda Lynch, astrobióloga do instituto de pesquisas sem fins lucrativos Planetary Science Institute. “Sinto-me muito grata por aquela rocha, pois suscitou uma reflexão profunda sobre a vida.”
Na imagem, é mostrado o orifício feito em Highfield pela sonda Curiosity ao coletar uma amostra na Cordilheira Vera Rubin, na cratera Gale em Marte. A poeira resultante da perfuração desse orifício apresentava alto teor de um isótopo leve de carbono, um possível sinal de vida, mas ainda não confirmado.
Em 2012, começou uma nova era da exploração de Marte quando a sonda Curiosity de seis rodas da Nasa pousou na cratera Gale. Atualmente, a depressão de mais de 150 quilômetros de largura abriga uma extensa montanha contendo muitas camadas de sedimentos que preservam um registro do passado marciano. O objetivo principal da Curiosity é buscar sinais de habitabilidade passada, como água, compostos orgânicos e uma fonte de energia — os ingredientes necessários para a vida como a conhecemos.
Encontrar evidências de água foi fácil; afinal, os cientistas já suspeitavam que a cratera havia sido preenchida por um lago profundo em algum momento do passado. A Curiosity identificou quase imediatamente uma faixa de rochas capaz de ser formada apenas com a presença de água.
O restante não foi tão simples.
Ao longo dos anos, a Curiosity encontrou evidências de numerosas moléculas orgânicas na cratera — elementos químicos essenciais a formas de vida à base de carbono. E detectou sinais de atividade hidrotérmica antiga, em que o calor e compostos químicos misturados com água corrente poderiam ter criado possíveis fontes de energia.
A sonda também determinou uma oscilação nos níveis de gás metano na cratera em função da mudança das estações e identificou picos elevadíssimos e ocasionais do gás, confirmando observações inexplicáveis feitas na Terra há mais de uma década. Na Terra, essa flutuação seria um sinal nítido do metabolismo ativo de seres vivos.
No entanto nenhuma dessas observações até o momento foi associada a atividades biológicas, e sempre há a chance de que processos ainda pouco compreendidos sejam confundidos com sinais de vida.
“Na superfície da Terra, a maioria dos processos relacionados ao carbono são biológicos, então é um grande desafio tentar mudar nossa mentalidade e perspectiva sobre um planeta onde essa associação possa não existir”, destaca Christopher House, astrobiólogo da Universidade Estadual da Pensilvânia. “É preciso abandonar a mentalidade centrada na Terra e começar a cogitar outros fenômenos de Marte.”
O curioso caso do carbono marciano
A observação mais incomum e promissora da Curiosity só foi divulgada recentemente. Em diversas amostras rochosas coletadas em inúmeros pontos na cratera, a sonda encontrou compostos orgânicos com proporções incomuns de isótopos de carbono, ou átomos do mesmo elemento que contêm diferentes números de nêutrons em seus núcleos.
No planeta Terra, os organismos preferem utilizar a forma mais leve de carbono em reações metabólicas ou fotossintéticas, resultando em uma proporção distorcida na qual a forma mais leve é muito mais abundante do que a forma mais pesada.
E em cinco pontos na Cratera Gale, foi encontrada exatamente a mesma proporção: isótopos de carbono leves muito mais abundantes do que seus congêneres pesados, se comparados às medições feitas na atmosfera marciana e em meteoritos. Essas proporções de carbono são semelhantes às coletadas na formação Tumbiana, na Austrália, um afloramento de 2,7 bilhões de anos que contém sinais de carbono de antigos micróbios metabolizadores de metano.
“Esses resultados de isótopos de carbono esgotados são bastante intrigantes. É uma hipótese muito convincente. Na Terra, esse processo só pode ser obtido por meio de atividade biológica”, reitera Williams.
Mas House, que liderou a análise, explica que a hipótese ainda está longe de ser confirmada. Ele e seus colegas formularam três teorias possíveis para a discrepância.
A primeira é que o sinal de fato é proveniente de micróbios antigos. Outra possibilidade é que o Sistema Solar tenha atravessado há muito tempo uma nuvem de poeira interestelar com uma proporção atípica de isótopos de carbono — a existência dessas nuvens é conhecida — que deixou vestígios em Marte. E uma terceira explicação é que a interação da luz ultravioleta com o dióxido de carbono na atmosfera de Marte possa ter produzido características incomuns.
“Não se sabe ao certo”, afirma House. “Pode ter origem biológica, ou não. Todas as três explicações condizem com os dados.”
Camada misteriosa nas rochas
No ano passado, a sonda Perseverance da Nasa chegou à cratera Jezero em Marte e também está em busca de sinais de vida antiga.
Ao vagar por Jezero, Perseverance avistou inúmeras rochas com uma camada roxa rica em ferro. Bradley Garczynski, da Universidade de Purdue, que estuda a camada, afirma que é diferente de tudo já observado pelas sondas em Marte — embora rochas com diferentes camadas tenham sido observadas em outras regiões do planeta.
Na Terra, essas camadas geralmente são observadas em desertos, onde se desenvolvem conglomerados de micróbios que se alimentam de rochas.
“São bastante intrigantes e certamente atraem interesse biológico na Terra, então, por consequência, atraem grande interesse astrobiológico quando formadas em outros planetas”, observa Williams.
Lynch, que estuda locais terrestres análogos a ambientes marcianos, afirma que não está descartada a hipótese de encontrar sinais biológicos nos vernizes de rocha de Jezero. “Os micróbios são capazes de feitos incríveis. Depositam camadas e vernizes nas rochas ao consumir a rocha”, explica ela.
No entanto os cientistas têm muito mais informações sobre os ambientes terrestres em que esses vernizes são formados, prossegue Lynch, e essas informações são cruciais para interpretar adequadamente uma observação. Até mesmo em nosso próprio planeta, pesquisadores precisam avaliar rigorosamente se tal material foi produzido por formas de vida ou por outro processo. E essa pergunta é muito mais difícil de responder à distância.
“É um sistema incrivelmente intricado e complexo em exploração em Marte”, comenta Fraeman.
Ambiguidade de outro planeta
Por ora, a detecção definitiva da vida requer trazer fragmentos de Marte à Terra, onde há instrumentos mais sofisticados disponíveis para examiná-los. Uma das principais tarefas da Perseverance é identificar e coletar amostras rochosas para uma futura sonda espacial enviá-las à Terra.
“As amostras atualmente coletadas são selecionadas com muito critério”, ressalta Fraeman. “Há informações abundantes sobre seu local de origem… Isso será importante para esclarecer essas grandes questões.”
Contudo, a presença de fragmentos de Marte em laboratórios na Terra não eliminará a dúvida. Cientistas até hoje discutem sobre o que pode ou não ter vivido no meteorito ALH84001, um fragmento da crosta marciana antiga que caiu na Antártida há cerca de 13 mil anos. Steele, que recentemente liderou uma nova análise do meteorito, estuda a rocha há 25 anos.
“Um dos motivos pelos quais prossegui com a análise foi: se não tiver sido vida, o que seria?”, indaga ele.
Segundo o relatório de Steele e de seus colegas publicado no início de janeiro, os compostos orgânicos complexos no ALH84001 se formaram sem a participação de vida, e reações químicas comuns resultantes da interação de fluidos subterrâneos com rochas e minerais foram responsáveis pelas características do meteorito.
“Quer dizer que nunca existiu vida marciana naquele meteorito? Também não posso refutar essa hipótese”, responde Steele. “Se houve um organismo marciano naquele meteorito, ele não apresenta características comuns aos organismos da Terra. Seria totalmente diferente, algo ainda a ser identificado.”
Essas reações geológicas, os compostos orgânicos dispersos pelo planeta ou as camadas nas rochas em Jezero poderiam ser a fonte do metano marciano? É totalmente plausível, segundo os astrobiólogos. Marte é outro planeta, um ambiente com interações químicas e paisagens exóticas que, apesar da vaga semelhança, ainda assim é diferente da Terra.
“Repetidas vezes, Marte demonstrou que não é a Terra. Não é uma Terra antiga congelada no tempo”, afirma Williams. “É um planeta próprio em evolução, e alguns de seus processos são semelhantes aos da Terra, ao passo que outros são muito extraterrenos.”