Mesmo casos leves de covid podem encolher o cérebro

Imagens cerebrais mostram que a doença pode causar alterações físicas equivalentes a uma década de envelhecimento e desencadear problemas de atenção e memória. O motivo exato ainda é um mistério.

Por Sanjay Mishra
Publicado 3 de mai. de 2022, 18:42 BRT

Um técnico prepara um cérebro doado para preservação. Essas amostras de órgãos são essenciais para estudar o impacto da Covid-19, doenças neurodegenerativas e envelhecimento no cérebro.

Foto de Luca Locatelli for National Geographic

Depois de ficar de cama, com febre e tosse por três dias e meio, Elena Katzap pensou que a covid-19 tinha ficado para trás. A escritora e professora em Los Angeles, Califórnia, contraiu o vírus no final de janeiro de 2022 e se sentiu grata por ter apenas um caso leve – ela não teve dificuldades respiratórias, não precisou ser hospitalizada e se recuperou em dias.

“Lembro-me muito especificamente de dizer: Deus, é tão bom ser saudável novamente”, diz Katzap. “Então, de repente, no dia seguinte eu senti, e eu não sabia o que era, porque começou com náusea e alguns problemas de estômago e um esquecimento estranho.”

Katzap desde então experimentou uma perda aguda de memória com baixa concentração. Ela deixa pensamentos inacabados no meio das conversas, e palavras falham no meio das frases. “Não é fisicamente doloroso, mas é muito frustrante”, ela lamenta.

Dos cerca de 80 milhões de americanos que contraíram a covid-19 até agora, cerca de um em cada quatro sobreviventes sofre de cognição prejudicada, comumente descrita como névoa cerebral. Embora este não seja um termo médico formal, diz Edward Shorter, professor de psiquiatria da Universidade de Toronto, no Canadá, ele tornou-se um termo genérico para descrever uma série de sintomas, como confusão, dificuldades para encontrar palavras, perda de memória de curto prazo, tonturas ou incapacidade de concentração. 

Pacientes hospitalizados com covid-19 são quase três vezes mais propensos do que não hospitalizados a ter a cognição prejudicada. Mas, agora, as ressonâncias do cérebro mostram que mesmo um caso leve da doença pode encolher parte do cérebro, causando mudanças físicas equivalentes a uma década de envelhecimento.

“Há evidências de lesão neurológica [pós-covid] persistentes”, diz Ayush Batra, neurologista da Faculdade de Medicina Feinberg da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos. “Estamos vendo evidências biológicas e bioquímicas disso, estamos vendo evidências radiográficas e, mais importante, os pacientes estão reclamando de seus sintomas. Isso está afetando qualidade de vida e funcionamento do dia-a-dia.” Batra, juntamente com seus colegas, mostrou indicadores químicos de neurônios cerebrais lesionados entre pacientes de covid longa com sintomas neurológicos.

O impacto drástico da Covid-19 no cérebro

Algumas das evidências mais convincentes de danos neurológicos após a covid-19 leve vêm de pesquisadores do Reino Unido que investigaram alterações cerebrais em pessoas antes e depois de terem a doença.

Os 785 participantes, entre 51 e 81 anos, que já haviam passado por ressonâncias antes do início da pandemia, foram examinados com, em média, três anos de intervalo, como parte do projeto UK Biobank. Testes ou registros médicos mostraram que 401 desses voluntários foram infectados com Sars-CoV-2. A maioria teve infecções leves; apenas 15 dos 401 foram hospitalizados.

Os resultados mostraram que quatro meses e meio após uma infecção leve, os pacientes perderam, em média, entre 0,2 e 2% do volume cerebral e tinham massa cinzenta mais fina do que pessoas saudáveis. Em comparação, os adultos mais velhos perdem entre 0,2 e 0,3% de sua massa cinzenta a cada ano no hipocampo, uma região ligada à memória.

Na região do cérebro ligada ao olfato, os pacientes com covid-19 tiveram 0,7% mais danos nos tecidos em comparação com pessoas saudáveis.

O desempenho dos participantes infectados em testes cognitivos também diminuiu mais rapidamente do que antes da doença. Eles demoraram de 8% a 12% a mais nos dois testes que mediram atenção, capacidade de triagem visual e velocidade de processamento. Os pacientes não foram significativamente mais lentos nos testes de memória, tempo de reação ou raciocínio.

“Por sua vez, poderíamos relacionar esse maior declínio da capacidade mental à maior perda de massa cinzenta em uma parte específica do cérebro”, diz Gwenaëlle Douaud, neurocientista da Universidade de Oxford que liderou o estudo no Reino Unido.

No geral, os estudos mostram consistentemente que os pacientes com covid-19 pontuam significativamente mais baixo em testes de atenção, memória e função executiva em comparação com pessoas saudáveis. Jacques Hugon, neurologista do Hospital Lariboisiere da Universidade de Paris, diz que não está claro se o cérebro se regenerará ou se os pacientes se recuperarão, mesmo com reabilitação cognitiva.

“Não sabemos exatamente o que está acontecendo no cérebro”, diz Hugon. Talvez o dano que a covid-19 causa no cérebro evolua para vários distúrbios neurodegenerativos. “Não temos certeza disso no momento, mas é um risco, e precisamos acompanhar [os pacientes] com muito cuidado nos próximos anos.”

O que causa a névoa cerebral e o declínio cognitivo?

Mesmo antes da covid-19, infecções virais eram conhecidas por causar deficiências cognitivas de longa duração; está bem estabelecido que infecções virais aumentam significativamente os casos de doenças neurológicas no mundo inteiro. Embora ainda não haja consenso sobre a causa exata dos impactos cognitivos da covid-19, seus efeitos em vários órgãos podem ser catastróficos, o que significa que há muitas maneiras pelas quais a doença pode afetar o cérebro.

Como a doença afeta a respiração, ela pode privar o cérebro de oxigênio, como visto em dados de autópsias da Finlândia. Em casos raros, a covid também pode danificar o cérebro, causando encefalite, uma forma de inflamação cerebral. De forma mais ampla, o vírus também pode provocar uma resposta imune grave, que desencadeia uma tempestade de proteínas chamadas citocinas e leva a inflamação a todo o corpo. Também já foi demonstrado que a inflamação de longo prazo promove declínio cognitivo e doença neurodegenerativa e, portanto, pode estar causando neurodegeneração entre os sobreviventes.

A covid-19 também aumenta o risco de coágulos sanguíneos por até seis meses, o que pode causar derrames que privam o tecido cerebral de oxigênio. Um estudo encontrou grandes células de medula óssea perdidas – responsáveis ​​pela produção de plaquetas de coagulação do sangue –, alojadas nos capilares cerebrais de indivíduos que morreram de infecção por  covid. Essas células podem causar derrames em pacientes com a doença e desencadear algumas deficiências neurológicas.

Alguns cientistas até temem que os sobreviventes da covid possam estar em maior risco de doença de Alzheimer, com base em evidências de uma proteína chamada beta-amilóide no cérebro de pacientes mais jovens que morreram da doença.

Estudos que mostram evidências diretas do vírus invadindo o cérebro também estão se acumulando. Um estudo do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, atualmente em revisão, ilustra como o Sars-CoV-2 pode se espalhar para muito além dos pulmões e do trato respiratório. Este estudo sugere que a incapacidade do sistema imunológico de eliminar o vírus do corpo pode ser um potencial contribuinte para sintomas prolongados de covid, incluindo a névoa cerebral.

Contagem de casos leves de covid-19

Além de identificar as causas, uma grande preocupação é que é difícil obter uma contagem precisa de quantos pacientes com covid-19 desenvolveram problemas cognitivos, em parte porque esses sintomas nem sempre se manifestam imediatamente após a infecção.

Foi o caso de Richard Newman, um veterano do Exército dos Estados Unidos que agora é gerente de TI em Houston, Texas. Ele sofreu uma infecção grave de covid-19 em junho de 2021 e passou duas semanas na UTI. Mas ele não teve problemas cognitivos, nem problemas para reconhecer as pessoas, até um mês depois de receber alta do hospital.

“Eu conhecia o rosto, sabia que deveria conhecê-los, mas não conseguia lembrar o nome deles”, diz Newman. Oito meses depois do diagnóstico, seus sintomas ainda não melhoraram muito. “É muito horrível, é muito debilitante e realmente afeta sua qualidade de vida."

Pelo menos um estudo mostra que dois terços dos sobreviventes de covid-19 atendidos em 59 hospitais dos Estados Unidos foram diagnosticados com problemas cognitivos durante um acompanhamento de seis meses. No entanto, como mostra o recente estudo no Reino Unido, mesmo casos leves podem colocar as pessoas em risco, e rastrear esses pacientes será um desafio se eles não fizerem a conexão entre a covid leve e quaisquer sintomas neurológicos que apareçam mais tarde. Outros sobreviventes podem relutar em mencionar sua experiência com a covid-19 e problemas neurológicos subsequentes por medo de estigma e discriminação.

Os especialistas também se preocupam que, entre a ampla disponibilidade de vacinas e a circulação de variantes relativamente mais leves, como a Ômicron, as pessoas estejam baixando a guarda cedo demais, porque não estão preocupadas com os possíveis danos cognitivos de adoecer. Embora as vacinas contra a covid-19 sejam altamente eficazes na proteção contra sintomas graves, elas não protegem contra a covid longa em pessoas que são infectadas mesmo após a imunização.

“Precisamos deixar de quantificar o impacto da doença apenas em termos de mortes e casos graves”, diz Douaud, da Universidade de Oxford, “pois evidências de estudos sobre a Covid de longa duração e nosso estudo mostram que mesmo infecções leves podem ser prejudiciais."

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