Suposto massacre de povos isolados está ligado à mineração de ouro

Conforme acontece uma investigação sobre o possível assassinato da comunidade Flecha no oeste da Amazônia, agentes destruíram bases de mineração em um rio remoto.

Por Scott Wallace
Publicado 20 de dez. de 2017, 11:28 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Autoridades apreenderam essa máquina de extração de ouro ilegal no rio Jutaí, próximo aos limites da Terra Indígena Vale do Javari, durante expedição em 2002.
Foto de Scott Wallace

Em uma ampla operação contra a exploração ilegal de ouro que ameaça aldeias isoladas nos confins da floresta amazônica, soldados do Exército brasileiro e agentes da causa indígena têm destruído plataformas de mineração ao longo de um remoto rio, onde um suposto massacre do povo de uma comunidade foi denunciado dois meses atrás.

Funcionários da Funai disseram que dez garimpos de ouro foram desativados no rio Jandiatuba durante uma expedição no mês passado – mais de 30 mineradores foram detidos e acusados. Autoridades disseram que os exploradores tiveram a liberdade provisória concedida. A expedição continuou rio acima, em busca de sinais sucessivos de um possível conflito entre garimpeiros e habitantes indígenas da região.

As balsas de mineração são vistas como uma ameaça à segurança dos chamados “flecheiros”, um grupo de várias comunidades de indígenas caçadores-coletores que vivem em extremo isolamento dentro da Terra Indígena Vale do Javari. A reserva, um território que se espalha em ravinas contornadas por rios e floresta montanhosa primária no extremo oeste do Brasil, acolhe a maior concentração de comunidades indígenas isoladas e não contatadas no mundo. Muitas dessas comunidades estão espalhadas pela nascente do Jandiatuba e do vizinho rio Jutaí.

A presença de máquinas de extração ilegal no rio Jandiatuba veio à tona em setembro, quando surgiram relatos de um suposto assassinato em massa de nômades indígenas cometido por caçadores de animais selvagens em busca de alimento para o grupo de garimpeiros. A Funai mantinha uma base no rio para controlar o acesso ao interior da reserva Javari. Mas cortes no orçamento e redução de pessoal com experiência de campo forçou seu fechamento em 2014.

Máquinas de extração de ouro aluvial como as destruídas na recente operação são como geringonças do Professor Pardal, com brocas acopladas a uma grua e enormes tubos de sucção que descarregam uma destruição ambiental, mastigando os barrancos do rio e vomitando poluentes tóxicos nos canais fluviais.

Além de livrar o rio dos exploradores e de suas plataformas destrutivas, a expedição do governo também anunciou a reabertura do posto militar abandonado, visto pelas autoridades como um passo fundamental no restabelecimento do controle do que, caso contrário, seria uma região sem lei. Um pequeno destacamento permaneceu no lugar para iniciar a reconstrução da base, cujos materiais foram saqueados, presume-se que pelos garimpeiros.

“Vamos levar dois bons meses para deixar a base totalmente pronta e funcionando novamente”, disse Bruno Pereira, coordenador regional da Funai que trabalha de perto com a Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, operada pelo Departamento de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, da Funai. O departamento mantém 10 outras frentes similares ao longo da Amazônia brasileira para resguardar os territórios onde a presença de aldeias isoladas foram confirmadas. Diversos cortes no orçamento da Funai, feitos durante o atual governo do presidente Michel Temer, reduziram drasticamente o poder da agência para se equipar e operar nas linhas de frente.

Por telefone na cidade fronteiriça de Tabatinga, Pereira disse que a expedição seguiu mais além, rio acima, para checar a situação dos flecheiros. Em uma operação pela floresta, a equipe se deparou com ampla evidência do grupo isolado – inclusive pegadas, potes de barro e grandes áreas de plantio de aipim, cana-de-açúcar e inhame. Não havia sinal de que algo errado acontecera. Os agentes alcançaram um vilarejo isolado na área onde o massacre teria ocorrido. “Não havia nada que apontasse a uma confusão séria”, disse Pereira. “Pelo contrário, tudo parecia estar normal.”

Para manter a posição política do Brasil de evitar contato com comunidades indígenas isoladas, o grupo recuou após documentar a presença da população e seu aparente bem-estar. Como outros grupos isolados que vivem em lugares ocultos da floresta tropical da Amazônia, os flecheiros permanecem altamente vulnerável a doenças contagiosas, contra as quais não possuem defesas imunológicas, assim como potenciais atos de violência vinda de forasteiros. Das dezenas de grupos isolados cujas existências foram confirmadas pela Funai, os flecheiros estão entre os mais misteriosos. Ninguém sabe que idioma falam, qual é a sua etnia ou o nome pelo qual eles de fato se chamam.

É um missão complicada regulamentar a pesca na Amazônia, já que a região faz fronteira com oito países. Assim, o bioma está sentindo muito os efeitos da pesca excessiva.
Foto de Lunae Parracho, Reuters

A reserva Javari é o segundo maior território indígena oficialmente reconhecido no Brasil, com área maior que a Paraíba. Seus traços geográficos – com enormes canais fluviais que correm em direção leste – a tornam uma das áreas silvestres mais intocadas e mais fáceis de serem protegidas na Amazônia. Autoridades desenharam as fronteiras da reserva no final dos anos 1990, e logo quatro postos de controle foram estrategicamente posicionados nos maiores rios, para impedir qualquer penetração em larga escala de madeireiros, mineradores ou frotas de pesca industrial. Assim, os grupos indígenas isolados que compreendem aquela região ficam resguardados.

“Quando a reserva Javari foi demarcada, ela foi feita para a proteger de todo esse extrativismo”, disse Sydney Possuelo, célebre pesquisador e fundador da unidade de índios isolados da Funai, quando eu viajei com ele em 2002 em expedição da Funai para colher informação sobre os flecheiros. “O alcance de todas as comunidades isoladas está de um lado da divisa. Por isso que a demarcação foi feita desta forma.”

UM MASSACRE OU NÃO?

Notícias de um possível massacre dos flecheiros chegou aos funcionários da Funai em agosto, depois que mineradores foram ouvidos por acaso em um bar da cidade fronteiriça. Eles ostentavam a matança de “índios selvagens” – entre eles, mulheres e crianças – nas margens do Jandiatuba e contavam que levaram artefatos das vítimas como se fossem troféus de suas façanhas. Os garimpeiros espalharam boatos de desmembrarem os corpos e jogá-los no rio para destruir quaisquer traços de seus crimes.

Agentes da Polícia Federal e promotores públicos interrogaram vários suspeitos. Eles encontraram, nas casas dos investigados, um remo feito à mão e potes de argila, iguais aos feitos pelos membros da aldeia isolada. Mas os suspeitos declararam-se inocentes. De acordo com uma fonte ligada a investigação que pediu para não revelar o nome, os suspeitos disseram que encontraram os objetos em uma canoa deixada na margem do rio, enquanto eles foram caçar. “Todos eles contam a mesma história”, disse a fonte. “Os garimpeiros não confessaram nada.”

Lançando mais dúvidas sobre as alegações, autoridades veteranas em campo disseram que bêbados que se vangloriam de façanhas bizarras não são incomuns entre os habitantes grisalhos, quando retornam à cidade depois de semanas na mata. Algumas vezes investigadores checam as histórias e não encontram evidências que corroborem os contos.

Alguns funcionários da Funai e outros críticos têm expressado desapontamento diante da condução da investigação. Na época, não houve nenhuma tentativa de ir até a suposta cena do crime. A polícia limitou seu inquérito a um sobrevoo na região e interrogatórios com os suspeitos e outros moradores da cidade fronteiriça de São Paulo de Olivença, onde um funcionário relatou que “todo mundo vive com medo” e ninguém quer ser flagrado interferindo no lucrativo comércio de ouro que sustenta a economia local.

Descobertas concretas que possam confirmar ou descartar definitivamente os relatos de um massacre permanecem imprecisas. Autoridades se negam a discutir os detalhes da investigação, que ainda não foi concluída. Mas eles reconhecem os perigos de ir atrás de um caso em uma região selvagem como o Javari. “Ser uma área de difícil acesso torna tudo mais complicado”, disse Pablo Luz de Bertrand, promotor federal de Tabatinga encarregado de investigar as acusações. “Não há estradas. Você só pode acessar o lugar por avião ou barco. As investigações requerem logísticas mais elaboradas.”

Mesmo se os investigadores conseguirem chegar ao lugar, as vastas distâncias da Amazônia, a população esparsa e os peixes carnívoros talvez tenham conspirado para frustrar as tentativas de encontrar as evidências concretas de um crime.

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    Sydney Possuelo (segurando um aparelho GPS) lidera uma expedição anterior da Funai no território dos flecheiros.
    Foto de Scott Wallace

    “A forma que se investiga um crime em um ambiente urbano não funciona na Amazônia”, diz Felipe Milanez, especialista em conflitos ambientais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que em setembro deu a notícia do suposto massacre. “Na Amazônia, você joga um corpo no rio e, com as piranhas e outros animais ao redor, ele não existirá mais em dois dias. Mas isso significa que nada aconteceu?”

    Funcionários da Funai estão empolgados com os resultados da expedição. As máquinas de extrair ouro no rio Jandiatuba não existem mais, assim como os exploradores. Por enquanto.

    Mas a verba da agência foi cortada em 50% no ano passado. O governo Temer não faz questão de esconder sua hostilidade em relação à proteção ao meio ambiente e às terras indígenas que impedem a expansão da agricultura, mineração e outras indústrias na Amazônia. Mais ao norte, no estado de Roraima, uma febre do ouro atraiu centenas de exploradores a uma remota área perigosamente próxima a uma das últimas comunidades remanescentes dos índios Ianomâmi.

    Membros da Funai designados para proteger as terras Ianomâmi se mostram desesperados com o pouco que é feito para interromper a corrida do ouro. “Está se espalhando como um câncer”, diz o agente de campo Guilherme Gnipper. “A Funai mal tem os recursos para manter seus escritórios em funcionamento.” 

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