Os escritórios estão ficando obsoletos? Muitos viajantes esperam que sim

Com a mudança de hábitos causada pela pandemia, funcionários em sistema de trabalho remoto veem oportunidades inesperadas de se tornarem nômades digitais.

Por Jackie Snow
Publicado 29 de out. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Com muitos escritórios ainda fechados devido à pandemia do coronavírus, alguns funcionários se adaptaram a trabalhar ...

Com muitos escritórios ainda fechados devido à pandemia do coronavírus, alguns funcionários se adaptaram a trabalhar de casa. Agora, muitos deles desejam estar em qualquer lugar do mundo

Foto de Gary Yeowell, Getty Images

ARTHUR DEANE NUNCA havia imaginado que um estilo de vida nômade digital — viajar pelo mundo enquanto se trabalha remotamente — faria parte de seus planos. Como gestor sênior da gigante de tecnologia Google, ele acreditava que estar fisicamente presente em um escritório era essencial para o trabalho. Mas a pandemia mudou essa ideia.

Ele já estava cansado de ficar em casa e precisava sair após quatro meses trabalhando em seu apartamento, em Washington, D.C.. Depois de pesquisar lugares onde os norte-americanos tinham permissão para viajar e onde precauções de segurança razoáveis pareciam estar em vigor, ele viajou para Aruba por uma semana em julho.

“Eu queria relaxar próximo do mar e também testar como seria ficar no país”, conta ele.

Agora, Deane pensa em retornar a Aruba ou a um dos outros destinos abertos aos norte-americanos para uma estada mais longa. Ainda há detalhes a serem acertados, mas ele tem tempo para se programar: os escritórios da Google nos Estados Unidos não serão reabertos até julho de 2021, no mínimo.

Freelancers, empresários e autônomos compõem a maioria dos nômades digitais, mas isso pode mudar à medida que mais empresas reavaliam a cultura de trabalho após meses de atividades remotas. O número de pessoas que podem ficar fora do escritório é impressionante. Um estudo apurou que mais de um terço das atividades nos Estados Unidos poderiam ser totalmente realizadas de casa. E uma pesquisa com líderes de empresas revelou que 82% planejam oferecer trabalho remoto pelo menos parcialmente após a pandemia.

Para Deane, a chance de trabalhar remotamente por alguns meses a cada ano, mantendo uma base nos Estados Unidos, pode ser o formato ideal — e, em breve, uma realidade.

“No futuro, acredito que não retornaremos ao escritório em tempo integral”, diz ele. “A pandemia nos ensinou que podemos ser produtivos sem estar no escritório, de segunda a sexta-feira, das nove às cinco”.

Uma tendência crescente

O trabalho remoto já vinha ganhando força antes da pandemia, com as empresas testando esse tipo de esquema e investindo em hardware para garantir acessos seguros fora do escritório. Agora que milhões de funcionários acumulam meses de experiência que comprovam que o escritório não é necessário, alguns querem dar um passo à frente e descobrir se até mesmo suas casas são necessárias.

O termo “nômade digital” remonta a pelo menos 1997, quando o livro Digital Nomad (“Nômade digital”, em tradução livre) afirmou que a tecnologia permitiria às pessoas trabalhar de qualquer lugar e, como nossos ancestrais, voltar a trilhar caminhos errantes. Mais de 15 anos se passaram até que a internet, agora totalmente disseminada, e as companhias aéreas de baixo custo, como a AirAsia, permitissem que o sonho se tornasse realidade para um grupo seleto de viajantes. Em 2019, um relatório constatou que 7,3 milhões de trabalhadores norte-americanos se consideram nômades digitais.

Lugares como Bali, Chang Mai e a Cidade do México se tornaram destinos populares que oferecem espaços de trabalho compartilhado com internet de alta velocidade e café expresso de qualidade para manter a energia durante o trabalho. A maioria dos nômades digitais, no entanto, depende de vistos de turismo, que tecnicamente não permitem o exercício de nenhuma atividade profissional. Embora muitos países tenham voltado sua atenção aos empregos locais e ignorado os nômades digitais, isso não será suficiente para empresas preocupadas com responsabilidade civil.

Atualmente, alguns países implementaram programas oficiais para estadas prolongadas como forma de atrair trabalhadores — e acalmar os ânimos dos empregadores. Em julho, Barbados começou a aceitar inscrições para o Welcome Stamp, ou Carimbo de Boas-Vindas, que oferece um visto de 12 meses. Os interessados devem comprovar renda de pelo menos US$ 50 mil por ano e contratação de seguro saúde. Também é necessário pagar uma taxa de visto de mais de US$ 2 mil, ou US$ 3 mil em caso de visto para a família. Após a concessão do visto, os visitantes podem entrar e sair quando quiserem, ter acesso ao sistema escolar local e abster-se de declarar o imposto de renda do país.

A Estônia, já conhecida por seu programa de residência eletrônica, que permite que estrangeiros interessados em abrir uma empresa tenham acesso aos serviços do país, anunciou um novo visto para nômades digitais. O documento permitirá que os visitantes trabalhem no país remotamente por 12 meses após pagamento de uma taxa de requerimento de € 100 (cerca de US$ 117) e comprovante de renda mensal de pelo menos € 3.504 (cerca de US$ 4.100). Entretanto os norte-americanos terão que esperar, pois ainda estão proibidos de viajar para países da União Europeia.

As Bermudas também lançaram seu programa Work From Bermuda, ou Trabalhe Remotamente nas Bermudas, que permite que visitantes fiquem no país por até um ano, sem necessidade de declarar imposto de renda, após obter um visto por US$ 263. O nova-iorquino Kiwan Michael Anderson não solicitou o visto, mas se surpreendeu quando viu que estava utilizando o território britânico para trabalhar remotamente. Ele viaja ao país todo verão para visitar a família e ficou com medo de que a pandemia pudesse interromper a tradição. Mas a ilha foi reaberta aos norte-americanos em 1 de julho, e ele foi, com a intenção de ficar por duas semanas de férias. Quando chegou a hora de ir embora, sua tia perguntou se ele realmente precisava partir.

“Eu pensei a respeito e disse: ‘Na verdade, não’,” conta ele.

Anderson cancelou seu voo de volta e está nas Bermudas há nove semanas. Manter seu emprego como gerente na empresa de relações públicas Nike Communications não foi um problema, diz ele. “Às vezes, meu sinal de Wi-Fi é melhor nas Bermudas do que no meu apartamento no Brooklyn.”

Uma mesa ao ar livre no Flatiron District de Nova York, com vista para o Empire State Building, substitui a mesa de escritório. Tecnologia como redes privadas virtuais (VPNs) tornou o trabalho remoto mais viável, mas ainda existem questões de segurança e proteção.

Foto de Alexi Rosenfeld, Getty Images

Como está uma hora à frente de seu escritório em Nova York, ele começa a trabalhar mais cedo. E no fim do dia, vai à praia se exercitar ao mar com sua tia ou andar de jet ski. Em breve, ele pretende começar a fazer stand up paddle.

“Não se trata mais do local onde você está”, diz Anderson, “mas sim da sua dedicação e produtividade”.

Analise antes de viajar

A pandemia, é claro, tornou as viagens mais complicadas. Tanto as Bermudas quanto Barbados exigem a apresentação de resultado negativo em um exame de coronavírus recente e realizam verificações de saúde no desembarque. Mas esses protocolos não conseguem identificar pessoas que foram infectadas durante o trajeto e não detectam portadores assintomáticos da doença, segundo Lisa Lee, epidemiologista e especialista em ética em saúde pública da Virginia Tech University.

Seria ideal, afirma Lee, que esses países exigissem um período de quarentena de 14 dias, período de incubação do coronavírus. Como exemplos de países que instituíram essa medida com sucesso, Lee cita a Jordânia, que impôs um sistema de quarentena com pulseiras eletrônicas, e o Canadá, que mobilizou a polícia para monitorar pessoas em quarentena.

“Isso pode ser feito, mas é preciso ter muitos recursos”, explica ela.

Embora esse período de 14 dias seja maior do que a duração da maioria das férias, seria viável em estadas prolongadas. Mesmo se não houver quarentena obrigatória, Lee recomenda o isolamento voluntário e que as pessoas continuem praticando o distanciamento social, usem máscara e evitem encontrar pessoas em ambientes fechados. Até agora, nem as Bermudas nem Barbados registraram um aumento nos casos, mas os nômades digitais ainda devem tomar cuidado, especialmente porque os epidemiologistas esperam outro surto da doença no último trimestre do ano nos países do Hemisfério Norte.

“É necessário apenas uma pessoa, literalmente, para infectar outras duas e assim desencadear uma epidemia em uma ilha”, comenta Lee. “Ninguém quer ser o responsável por trazer uma doença e devastar uma população.”

Tradicionalmente, o maior obstáculo para os nômades digitais é encontrar serviço de internet rápido e confiável. Embora as conexões tenham melhorado em muitos lugares, os novos nômades digitais enfrentam outros problemas.

Além de obter vistos, alguns funcionários precisam se reunir frequentemente com colegas de equipe ou clientes, o que fica um pouco mais difícil com a diferença no fuso horário. Garantir a segurança dos dados de trabalho também é uma preocupação, embora muitas empresas agora tenham redes privadas virtuais, ou VPNs, e forneçam treinamento sobre como identificar e-mails de phishing, por exemplo.

Mesmo assim, essas práticas não serão suficientes para todos que desejam viajar para o exterior. Para aqueles que trabalham com informações confidenciais, o departamento jurídico de uma empresa pode não permitir que o acesso seja feito de outro país. Algumas empresas têm medo de permitir que seus funcionários trabalhem em países com histórico de invasão por hackers.

David Cusick, diretor de estratégia da House Method, empresa com sede na Carolina do Norte que realiza pesquisas sobre prestadores de serviços domésticos, enfrentou problemas desse tipo desde o início da pandemia.

“Os funcionários nos dizem que o fuso horário não será um problema e que obter um visto de turista é fácil”, conta ele. “Mas muitas vezes ficamos de mãos atadas quando se trata de responsabilidade legal. No fim das contas, somos uma empresa localizada nos Estados Unidos.”

Cusick disse que a empresa ainda está estudando como será o esquema de trabalho no futuro, mas que a tendência é tornar permanente a opção de trabalho remoto. Os funcionários gostam e é possível economizar dinheiro com o espaço físico. Se os funcionários desejam ir para o exterior, ele fica feliz em considerar esse pedido.

“Aqueles que conseguem me oferecer um pacote com informações do tipo 'estou indo para tal lugar, está de acordo com a lei por esse motivo, é isso que vou fazer' têm uma chance muito maior de realizar o sonho de ter um oásis tropical como local de trabalho”, diz ele.

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    “No início, eu não sabia como poderia fazer dar certo”, diz Aasha Sapera, que começou a dar aulas de dança on-line em Jodhpur, na Índia, durante a pandemia do coronavírus.

    Foto de Sunil Verma, AFP, Getty Images

    Os nômades digitais também precisam ponderar questões pessoais. Em Barbados, por exemplo, assim como em grande parte do Caribe, relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são ilegais. Embora os turistas LGBTQ já ponderassem sobre esse aspecto, o cenário pode ser diferente ao se considerar a possibilidade de residir, por mais tempo, com um parceiro em um desses países.

    Também pode acontecer o contrário. Para os afro-americanos e outras minorias, ir para o exterior pode representar uma fuga do racismo nos Estados Unidos. Para Anderson, que teve que lidar com seus próprios sentimentos a respeito do movimento Vidas Negras Importam e ajudar clientes na mesma situação, fazer parte da maioria negra nas Bermudas foi um alívio.

    “Foi revigorante”, conta ele. “Me deu esperança e energia.”

    Tornando a ideia sustentável

    Os países já se perguntavam como atrair mais nômades digitais antes do coronavírus e ainda desejam ter esses visitantes em seus territórios, diz Michaela Murray, chefe de marketing da Hacker Paradise, empresa que organiza viagens para grupos de nômades digitais desde 2014.

    “Países ao redor do mundo estão se preparando para um aumento no número de nômades digitais”, diz ela.

    Alguns lugares, como Bali e Veneza, já estavam lidando com o turismo excessivo e considerando aplicar uma taxa para conter o número de visitantes. Mas Murray diz que observou um aumento no interesse por viagens para lugares como Kilifi, no Quênia e outros locais incomuns à medida que a ideia de turismo sustentável foi ganhando força.

    Diminuir o ritmo também é uma forma de tornar as viagens mais sustentáveis, dando aos visitantes tempo para realmente conhecer um lugar e reduzir as emissões de carbono dos voos. Gerry Isabelle pediu demissão de seu trabalho no escritório em 2017 e se tornou uma nômade digital em tempo integral, organizando viagens e escrevendo artigos sobre turismo como forma de ganhar a vida. Ela queria ter experiências autênticas, sem deixar de se atentar às suas viagens, documentando o que aprendeu no blog Dominican Abroad.

    “Com certeza é preciso levar em consideração o impacto que você causa como nômade digital”, diz ela.

    Uma lição importante que ela aprendeu é que os guias de viagem nem sempre conseguem atender as necessidades dos nômades digitais. Enquanto uma família em férias por 10 dias pode não querer se arriscar e visitar um determinado lugar durante a estação chuvosa, os nômades digitais podem ficar lá tempo suficiente para esperar o mau tempo passar e evitar as multidões. Eles também podem aumentar a receita de turismo das comunidades na baixa temporada, ter acesso a tarifas mais baratas e aproveitar as experiências autênticas que viagens mais longas podem proporcionar.

    Como afirma Isabelle, “Se desacelerar for uma opção para você, é possível fazer essas conexões locais e ter acesso à riqueza do patrimônio existente no lugar”.

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