No pior momento da pandemia no país, jovens são maioria em leitos de UTI

Reportagem visitou hospitais lotados onde grande parte dos internados têm menos de 50 anos.

Por Gustavo Basso
Publicado 13 de abr. de 2021, 07:15 BRT, Atualizado 13 de abr. de 2021, 16:03 BRT
O hospital de campanha Pedro Dell'Antonia, em Santo André, região metropolitana de São Paulo, passou o ...

O hospital de campanha Pedro Dell'Antonia, em Santo André, região metropolitana de São Paulo, passou o mês de março inteiro próximo da lotação máxima.

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O motoboy Cleberson de Oliveira estava há cinco dias na UTI do Hospital Geral de Itapecerica da Serra, em São Paulo, quando uma das enfermeiras da unidade o avisou da possibilidade de ser intubado caso não conseguisse respirar com a máscara de oxigênio. “Fui olhando e lembrando de todos aqueles pacientes ao meu redor, em estado como que vegetativo, sedados, e eu disse: ‘pelo amor de Deus, eu não quero ficar desse jeito!’”, conta Oliveira. “Eu aprendi na marra o exercício [de respirar com a máscara].”

Segundo Oliveira, o terror de estar consciente em uma UTI cheia de pacientes intubados lhe deu forças. “Sentia medo, duas ou três vezes eu acordei de madrugada com a equipe médica naquela correria ao meu lado tentando reanimar ou reconhecendo óbitos. Tem até um caso que lembro o horário exato”, recorda o motoboy. “Era apavorante, mas eu comecei a fazer todos os exercícios pedidos, e até comer a comida sem sal do hospital; virei um triturador, porque eu precisava sair de lá e não tinha jeito senão comendo.”

Aos 34 anos, Oliveira está longe de ser considerado grupo de risco para o novo coronavírus. No entanto, estudos que acompanham as internações hospitalares em todo o país mostram que a nova escalada da pandemia atinge pacientes cada vez mais jovens e com maior gravidade, alterando o perfil das vítimas enquanto o sistema de saúde público mergulha no colapso.

Gerente executiva do hospital de Itapecerica da Serra, Ana Carolina Mercê conta que desde março deste ano, quase metade dos 30 leitos de UTI são ocupados por menores de 50 anos. “Temos um cenário muito diferente do ano passado, quando a idade média era de 63 anos; hoje essa média é de 50 anos”, diz a médica intensivista. Os dados coletados por ela mostram também os pacientes mais jovens e mais idosos em estado grave. Em 26 de março, uma adolescente de 14 anos faleceu vítima da covid-19 depois de dias conectada a um respirador artificial igual ao que Cleberson de Oliveira conseguiu evitar.

O motoboy Cleberson de Oliveira, 34 anos, é um dos muitos jovens paciente graves de covid-19 vítimas da segunda onda da pandemia. Hoje curado e em casa, ele ainda tem 50% dos pulmões comprometidos e tem dificuldades para voltar ao trabalho.

Foto de Gustavo Basso

Se a primeira onda da pandemia de covid-19 atingiu sobretudo maiores de 65 anos, muitos aposentados, agora o impacto recai sobre homens e mulheres que põem comida nas mesas de suas casas. “Agora temos muitos pacientes em idade produtiva, com filhos pequenos; a repercussão social é muito maior”, comenta Mercê, apontando um problema que acaba ofuscado pela mortalidade recorde registrada no país. “Muitas dessas pessoas ficam mais tempo na UTI e se recuperam, mas com muitas sequelas, muito debilitadas, afetando diretamente a geração de renda dessas pessoas.”

No dia seguinte à sua alta, em 16 de março, Oliveira pegou a moto e voltou ao trabalho. Ganhando por entrega, com a esposa desempregada e sem receber o auxílio emergencial desde novembro do ano passado, os 20 dias no hospital foram de endividamento. “Tentei trabalhar, mas depois de duas horas na moto comecei a enxergar tudo escuro e turvo, foi um tiro no pé”, conta. Ele diz que hoje, quase um mês após a alta e ainda com 50% dos pulmões prejudicados, não consegue ficar muito tempo em pé, e os exercícios físicos se restringem a caminhadas ao redor do quarteirão. “É o que eu aguento, além de tomar mil cuidados para não ser reinfectado ou mesmo pegar um resfriado, porque com o meu pulmão no estado que está, seria um desastre.”

No começo deste mês de abril, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib) publicou uma atualização do projeto UTIs Brasileiras, que monitora 1,6 mil centros de tratamentos intensivo públicos e particulares em todo país, somando 20 mil leitos de UTI. O levantamento mostra que, em março de 2021, os adultos com menos de 40 anos foram, pela primeira vez, maioria, ocupando 52,2% dos leitos, uma taxa 16% maior do que em novembro de 2021. Já o índice de mortalidade entre os pacientes com menos de 45 anos em terapia intensiva foi de 11% de setembro a novembro de 2020 para 38% de fevereiro a março deste ano, um aumento de 192%.

Colapso do sistema de saúde

Mateus Martins, 33 anos, chegou na manhã do dia 14 de março à Unidade de Pronto Atendimento de Ipatinga, no Vale do Aço, leste de Minas Gerais, com sintomas de covid-19. Na noite do mesmo dia, foi intubado. “Depois de intubado, foi levado para outra cidade por causa da falta de leitos de UTI na nossa; ele nunca havia pisado em Caratinga, foi para lá somente para morrer, três dias depois da transferência”, lamenta a artista visual Lume Ero, 30 anos, irmã da vítima.

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      Enfermeira segura a mão de um paciente de covid-19 no hospital geral de Vila Penteado, em São Paulo. Com todos os 65 leitos de UTI ocupados, pacientes começaram a ser intubados na sala de emergência do hospital.

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      Cirugiões realizam uma traqueostomia em ala de covid-19 do centro de tratamento intensivo do Hospital Geral de Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo. Segundo a gerente executiva da unidade, desde março quase metade dos pacientes hospitalizados nos 30 leitos de UTI são menores de 50 anos.

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      Ao contrário da irmã, Martins não fumava, nem tinha qualquer comorbidade, ainda assim, não aguentou o tratamento. Ero também se infectou, mas conseguiu sobreviver à falência do sistema de saúde causada pelo descontrole da pandemia. “Passei o dia 18 de março inteiro sentada em uma cadeira no corredor da mesma UPA, diante da mesma sala onde meu irmão foi intubado, imaginando o que ele havia passado”, narra a mineira. Ela conta que não podia se levantar ou se deitar, pois os movimentos geravam crises de tosse de até dois minutos que a deixavam com vontade de vomitar. “Minha boca, ressecada, não conseguia pegar água, e os profissionais, nitidamente exaustos, corriam de um lado para o outro”, diz Ero. “Aquele ambiente não parecia um hospital, mas um prédio em chamas, e eles [os profissionais de saúde], os bombeiros.”

      Para Ederlon Rezende, coordenador do Projeto UTIs Brasileira, o colapso do sistema de saúde é o principal causador dos altos índices de mortalidade hospitalar no Brasil. Segundo o médico intensivista, Estados Unidos e Itália observaram índices de mortalidade de pacientes em ventilação mecânica próximos de 80% em regiões sob colapso, como Nova York, nos EUA, e Lombardia, na Itália. Wuhan, o epicentro da pandemia na China, teria registrado 90%, de acordo com Rezende.

      “A diferença é que todo país, no momento que o sistema colapsa, reduz a circulação de pessoas para controlar a disseminação do vírus, enquanto no Brasil abre-se mais leitos de UTI para, com isso, dizer que há menos ocupação”, alerta Rezende, que também é diretor da Amib. Com 67 milhões de habitantes, a França possui, segundo o médico, 5,5 mil leitos de UTI para covid-19. São Paulo, com 44 milhões, conta hoje com 13 mil vagas para tratamento intensivo.

      “É claro que não temos profissionais qualificados e capacitados para atuar em todo esse sistema”, diz Rezende. “Esse improviso em prol de não fazer o que deve ser feito, que é conter a circulação, tem o seu custo, e nós estamos pagando esse preço caro, sobretudo a população mais pobre, que tem trabalhos que não permitem o home office e não conta com o governo para criar condições que possibilitem a quarentena.”

      Tempo perdido

      Assim como o irmão, o pai e a mãe, que também se infectaram, Ero tomou o kit de tratamento precoce receitado pelos médicos que a atenderam na rede pública. Comprovadamente ineficazes contra a covid-19, remédios como cloroquina e ivermectina ainda são defendidos por uma minoria de médicos e pelo presidente Jair Bolsonaro. Um estudo da Universidade Federal de São Paulo revelou que, entre os pacientes internados com o novo coronavírus, 71,2% apresentava lesão renal aguda. Fatores como histórico de hipertensão e tratamento combinado de hidroxicloroquina com azitromicina estavam fortemente associados a essa condição nos rins. Casos de hepatite medicamentosa e mortes causadas pelo uso dos fármacos também foram confirmadas no último mês.

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        Paciente com civ-19 que aparentava ter entre 30 e 40 anos é avaliado no Hospital Geral de Itapecerica da Serra, São Paulo.

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        Paciente com covid-19 é intubado na sala de emergência do Hospital Geral de Vila Penteado, Zona Norte da cidade de São Paulo. A intubação normalmente é feita em leitos de UTI, mas com a lotação dos hospitais, o procedimento tem sido feito em ambientes improvisados.

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        “Estamos há um ano discutindo questões irrelevantes como cloroquina e tratamento precoce, o que passa a impressão de que nesses 12 meses não se aprendeu nada, quando na verdade muito conhecimento foi produzido. Falta vontade de política de discutir e aplicar”, lamenta o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Fernando Bozza. “E é isso que deixa mais triste: ver que depois de um ano está pior por causa de tantas oportunidades perdidas de um debate mais produtivo.”

        Bozza é co-autor do maior levantamento sobre o perfil de pacientes hospitalizados no país, em diferentes níveis de gravidade. A pesquisa, que envolveu mais de 800 mil pessoas, foi publicada na revista científica Lancet no começo do mês com dados de fevereiro a agosto de 2020 e revelou que, já naquele momento, só um de cada cinco pacientes intubados por covid no Brasil sobrevivia.

        A atualização com dados das últimas semanas, ainda inédito, está sendo revisado pelo conselho editorial da revista, mas indica a dimensão do colapso do sistema hospitalar brasileiro, sobretudo nos últimos dois meses, período de predomínio de variantes mais agressivas. Comparada com a primeira onda, em 2020, esta segunda em que estamos já conta com 73% mais internações e o dobro de pacientes com demanda de suporte de oxigênio, invasivo ou não.

        “Uma coisa é uma UTI com padrão de funcionamento normal: dez leitos, quatro doentes em ventilação mecânica. Outra coisa é ter dez leitos e todos os pacientes em ventilação mecânica e mais cinco na emergência esperando vaga”, comenta Bozza. “Minha equipe não aumentou, provavelmente diminui, com gente doente, em burnout devido a sobrecarga após um ano de pandemia, e tudo isso afeta a eficiência do sistema.” Segundo ele, essa é uma realidade comum desde fevereiro em hospitais públicos, até mesmo em São Paulo, que conta com a rede mais robusta de todo o país.

        O padre Fernando Sapaterro abençoa pacientes de covid-19 no hospital de campanha Pedro Dell'Antonia, em Santo André (SP). 

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        Socorristas preparam paciente de covid-19 para transferência do hospital de campanha Pedro Dell'Antonia, em Santo André, região metropolitana de São Paulo, para um leito de UTI em outro hospital da cidade.

        Foto de Gustavo Basso

        Outro problema são os lugares improvisados para tratar pacientes graves. No Hospital Geral de Vila Penteado, na Zona Norte da cidade de São Paulo, onde todos os 64 leitos de UTI estavam ocupados, a reportagem registrou doentes intubados na sala de emergência. “O paciente que está intubado deveria estar em uma UTI, não em um corredor ou uma sala de emergência, mas vemos que os recursos são limitados”, diz Bozza. O pesquisador alerta que a oferta de leitos de UTI parece ter atingido um limite. Segundo dados do estudo inédito, apesar do número de pacientes com necessidade de suporte respiratório, invasivo ou não, ter aumentado em 99% da primeira para a segunda onda, a porcentagem de internados em UTI continua igual.  "O contingente de pacientes em UTI não aumentou em relação ao primeiro pico, sugerindo que atingimos o gargalo possível de capacidade nas unidades intensivas."

        Enquanto o Brasil ultrapassa a trágica marca de 350 mil mortos por covid-19, Lume Ero nos lembra que há histórias por trás de cada uma dessas vítimas. “Quando conto do meu irmão, sinto que ele não é só mais uma morte solitária e silenciosa entre as estatísticas”, diz ela. “[Isso] alivia o trauma e dá valor ao luto.”

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