Chuva cai dos anéis de Saturno — e acaba atingindo uma cambaleante espaçonave
Mergulhando para seu destino final, a sonda Cassini, da Nasa, realizou com sucesso sua última missão: revelar segredos sobre os famosos anéis do planeta.
Chove em Saturno. A cada segundo, os anéis do planeta derramam, ao que parece, milhares de quilogramas de gelo, moléculas orgânicas e outras partículas minúsculas para dentro das nuvens do gigante gasoso.
Agora, os cientistas finalmente podem analisar com detalhes a surpreendentemente complexa interação entre Saturno e seus anéis — graças à espaçonave Cassini, da Nasa, que navegou 22 vezes por entre os anéis e o planeta nas suas últimas semanas de vida, engolindo a chuva dos anéis nesse percurso.
Entender essa complexidade não se trata de uma simples tarefa esotérica. É, na verdade, um passo em direção à resolução dos mistérios mais antigos do sistema de Saturno: a origem e a idade dos braceletes mais famosos do sistema solar. Descobrir a composição dos anéis e o volume de partículas derramado por eles é algo crucial para termos indícios sobre a história do planeta.
“Será que é sorte estarmos vivos na mesma época que esses magníficos anéis de Saturno?”, indaga Sean Hsu, da Universidade de Colorado Boulder. "Também é fascinante pensar que, caso se formasse um grande anel por esses tempos, isso teria implicações sobre as outras luas geladas de Saturno”.
Dias chuvosos
Essa chuva de material dos anéis de Saturno não é surpresa nenhuma; teorias e observações já vêm sugerindo isso há décadas. Mas não está claro ainda de que forma exatamente o material corre pelo sistema, qual o volume que cai dos céus de Saturno ou como ele molda a química das nuvens lá embaixo.
Foram divulgados recentemente os detalhes de três relatórios sobre a chuva dos anéis em três artigos na revista Science. Os documentos sobre os anéis fazem parte de um pacote de observações realizadas pela Cassini nos derradeiros dias de sua existência, logo antes de a espaçonave encerrar seu gran finale mergulhando para dentro de Saturno no final de 2017.
Zumbindo pelo vão entre Saturno e seus anéis, a Cassini viajava a cerca de 108 mil quilômetros por hora — muito, mas muito mais rápido que qualquer um dos instrumentos a bordo havia sido projetado para suportar. As consequências dessa velocidade impuseram aos cientistas um desafio na interpretação dos dados.
“Todos eles lutaram com muito vigor e inteligência para entender o que os instrumentos revelavam”, afirma Jack Connerney, da Nasa. “Trata-se de algo totalmente fora do projeto e da experiência deles”.
Enquanto se encontrava naquela fresta, a Cassini mediu a massa dos anéis, a gravidade do planeta e seu campo magnético, e engoliu centenas de pedaços da fúria dos anéis. Três instrumentos a bordo, cada um deles sensíveis a diferentes sabores da chuva dos anéis, logo começaram a trabalhar e estudar as partículas ingeridas. Como de praxe, os cientistas não encontraram exatamente o que esperavam.
Para começar, existe toda uma camada inesperada de partículas que flutuam pelos céus de Saturno, felpos nanométricos que se colidem com moléculas atmosféricas e acabam sendo levados para dentro, caindo na forma de chuva sobre o equador de Saturno.
"Essas partículas eram totalmente desconhecidas até a fase de Gran Finale", diz Hsu.
Outros instrumentos identificaram moléculas orgânicas na tempestade oriunda dos anéis — como metano, butano e propano — e grandes quantidades de grãos ricos em silicatos, com destino a Saturno. As partículas com fortes cargas elétricas caem predominantemente no hemisfério sul do planeta, porque seguem as linhas do campo magnético do gigante. Outras tendem a deixar suas marcas pelo equador do planeta.
Os cientistas não observaram tanto gelo quanto esperavam, já que é dele que se compõem 95 a 99 por cento dos anéis do planeta. Jeff Cuzzi, do Centro de Pesquisa de Ames, da NASA, acredita poder explicar a escassez de gelo: a existência de um cinturão de radiação não detectado anteriormente, enfiado dentro do anel D do planeta, que retira água dos conglomerados de gelo. Nesse cenário, as partículas detectadas mais perto do planeta poderiam ser pequenas sobras de materiais resistentes à radiação, como silicatos e orgânicos.
Volume nos anéis
A maior perplexidade reside no fato de as três equipes terem feito estimativas absolutamente diferentes do volume de material que cai na atmosfera da Saturno, o que possivelmente ocorreu pela avaliação de materiais diferentes em locais distintos do planeta.
No lado mais tímido, uma equipe sugere que chove um volume aproximado de 4,5 quilogramas por segundo desses "nanogrãos" a partir do anel D, o bracelete mais próximo de Saturno. No lado mais arrojado, a chuva conteria um gigantesco volume de 45.000 quilogramas de partículas de gelo, orgânicos e silicatos por segundo.
Os cientistas acreditam que esse número maior poderia ser plausível em função de um aumento temporário na chuva dos anéis, talvez devido à recente colisão de algum cometa. Mas esse número não faz sentido num cenário estável, afirma Cuzzi. Não existe massa o suficiente nos anéis para comportar esse nível de chuva durante todos éons de existência provável desses anéis.
E, embora esteja claro que os anéis de Saturno despejam chuva em direção ao planeta, diz Cuzzi, é muito cedo para usarmos esses números estratosféricos para estimar qualquer coisa em relação à idade dos anéis, que, por outros motivos, parecem ser bastante jovens.
“A ideia de poder determinar a idade dos anéis pela medição do volume de massa oriunda deles — é em princípio uma boa ideia”, Cuzzi afirma. “Mas, assim como muitas boas ideias, na prática, é complicado.”
Lua que explodiu
De qualquer forma, os novos resultados da Cassini ajudam a solucionar outro mistério: Afinal, como os anéis se formaram? Os dados disponibilizados agora indicam a explosão de alguma lua ou cometa, de acordo com as composições compartilhadas por eles.
Além disso, observa Cuzzi, existe um estranho aglomerado de material rico em silicatos encravado no anel C de Saturno, que é exatamente o tipo de coisa que se veria caso alguma lua se despedaçasse. À medida que a lua crescia e seu interior se esquentava, as rochas ricas em silicatos teriam se derretido e afundado no núcleo, ao passo que outros materiais mais leves e com aspecto de gelo teriam formado a manta da lua.
Quando Saturno despedaçou essa lua hipotética, pedregulhos oriundos do núcleo da lua teriam ficado presos na espessa faixa do anel C, enquanto a manta aquosa e de gelo teria formado os brilhantes anéis A e B.
De que forma isso pode ter acontecido recentemente — no espectro das últimas centenas de milhões de anos — em um sistema que, pelo que se acredita, teria ficado estável durante bilhões de anos é ainda uma pergunta sem resposta, assim como os outros detalhes da interação entre o planeta e essa lua esmigalhada.
A versão final da história ainda não foi escrita”, diz Connerney. “Mas já existe um esboço para muitos capítulos”.