Cientistas reconstituíram a frenética escalada final de Ötzi, o Homem do Gelo

A famosa múmia morreu de uma flechada nas costas em uma elevada passagem nos Alpes há 5,3 mil anos. Agora, os pesquisadores estão reconstituindo seus estranhos passos pouco antes de seu assassinato.

Por Megan Gannon
Publicado 4 de nov. de 2019, 12:01 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Os cientistas estudam os restos mortais de Ötzi, o Homem do Gelo, de 5,3 mil anos, ...
Os cientistas estudam os restos mortais de Ötzi, o Homem do Gelo, de 5,3 mil anos, em busca de pistas sobre sua vida e morte.
Foto de Robert Clark, Nat Geo Image Collection

UM HOMEM FERIDO — E POSSIVELMENTE procurado — Ötzi, o Homem do Gelo, passou seus derradeiros dias em movimento no alto dos Alpes, até ser atingido por uma flecha nas costas. Cerca de 5,3 mil anos depois, os arqueólogos ainda estão desvendando o mistério de sua morte. Agora, uma nova análise de resíduos de musgo extraídos no local do assassinato do Homem do Gelo pode revelar detalhes de sua última escalada frenética.

Desde 1991, quando alpinistas nos Alpes de Venoste descobriram seu corpo congelado e mumificado naturalmente próximo à fronteira entre a Itália e a Áustria, os pesquisadores contaram mais de 60 tatuagens na pele de Ötzi e mostraram que ele usava um casaco de couro costurado com a pele de várias ovelhas e cabras. Recentemente, descobriram seu estômago perdido e, pelo seu conteúdo, constataram que Ötzi foi assassinado apenas uma hora depois de fazer sua última refeição, composta de carne seca de íbex e carne de veado com trigo einkorn. Ficou demonstrado que o homem de 40 e poucos anos provavelmente estava com dores de estômago quando morreu e cuidava de um grave ferimento na mão direita, um corte quase até o osso, entre o polegar e o indicador.

Até hoje, os cientistas também documentaram ao menos 75 tipos de briófitas, uma família de plantas que compreende musgos e hepáticas, no interior e ao redor dos restos mumificados de Ötzi. Agora, essas inocentes plantas estão revelando em mais detalhes os momentos derradeiros do Homem do Gelo, ao mesmo tempo em que reiteram a ideia de que seus últimos dias foram agitados e violentos.

Uma reconstituição do Homem de Gelo, que tinha cerca de 40 anos de idade.
Uma reconstituição do Homem de Gelo, que tinha cerca de 40 anos de idade.
Foto de Robert Clark, Nat Geo Image Collection

Em uma nova análise publicada no periódico PLOS ONEpesquisadores mostram que cerca de 70% das briófitas encontradas na elevada altitude onde estava localizado o Homem do Gelo não se desenvolviam lá e muitas delas eram originárias de altitudes menores ao sul dos Alpes de Venoste. Ao desvendar como esses restos botânicos foram parar na cena do assassinato de Ötzi na Passagem Tisen — a uma altitude aproximada de 3,2 mil metros — os pesquisadores reconstituíram parcialmente a história de sua última jornada: uma subida caótica em vaivém que abrangeu centenas de metros em altitude durante um período de dois dias.

James Dickson, professor aposentado de arqueobotânica da Universidade de Glasgow e autor principal da nova pesquisa, estuda Ötzi desde 1994, quando recebeu amostras de restos orgânicos escavados no local onde a múmia foi descoberta. Dickson conta que ficou imediatamente intrigado quando observou o musgo da espécie Neckera complanata, historicamente utilizado para impermeabilizar barcos e cabanas de madeira.

Essa espécie de musgo foi encontrada no local em quantidades relativamente grandes, muitas vezes aderida às roupas de Ötzi. O musgo pode ter sido parte do conjunto de ferramentas de Ötzi, embora não se saiba ao certo seu propósito. Era utilizado como isolamento? Ou talvez papel higiênico? De qualquer forma, a espécie cresce apenas em altitudes mais baixas e sua presença ajudou os pesquisadores a começarem a mapear a jornada final de Ötzi.

“Foi um tanto incomum encontrar alguém assassinado nos Alpes, a tamanha altitude”, afirma Albert Zink, o antropólogo que lidera a pesquisa sobre Ötzi no Instituto de Estudos das Múmias do Eurac Research em Bolzano, na Itália, mas que não participou do novo estudo. “Ninguém soube explicar o que ele fazia lá em cima.”

O trato digestório preservado de Ötzi continha não apenas alimento, mas também vestígios de pólen do ambiente em que ele fez suas últimas refeições. Isso permitiu que fosse criado um mapa hipotético de sua última jornada em pesquisas anteriores lideradas por Klaus Oeggl, arqueobotânico da Universidade de Innsbruck, na Áustria, que também é coautor do novo estudo.

Amostras do reto de Ötzi e da parte inferior do cólon, que representam o alimento digerido mais antigo em seu organismo, continham vestígios de pólen de abeto e pinheiro, o que posicionou Ötzi em uma floresta de elevada altitude, perto da máxima altitude de crescimento das árvores a quase 5 mil metros, cerca de 33 horas antes de sua morte. Mas a região intermediária do cólon do Homem do Gelo continha pólen da árvore da espécie Ostrya virginiana e de outras árvores que só crescem em florestas de menores altitudes, o que significa que Ötzi deve ter descido a uma altitude inferior a 1,2 mil metros — talvez até o fundo de um vale — entre 9 e 12 horas antes de sua morte. Segundo as evidências provenientes do pólen, Ötzi então subiu novamente e fez sua última refeição em uma floresta de coníferas subalpinas antes de subir ainda mais alto à Passagem Tisen, onde foi morto.

No entanto não se sabe ao certo se Ötzi fez sua descida final pelas encostas ao sul, na atual região da Itália, ou ao norte, na região atual da Áustria. Existem apenas alguns caminhos possíveis até o local da morte de Ötzi na paisagem acidentada.

“Não sabemos exatamente onde ele esteve”, afirma Oeggl.

Plantas de baixa altitude

No novo estudo, a equipe internacional de cientistas de Dickson se baseou em suas extensas pesquisas botânicas na região e mapeou a distribuição de todas as espécies de musgos e hepáticas identificadas no trato digestório de Ötzi e nos sedimentos ao redor do corpo (a distribuição dessas plantas nos Alpes, há 5 mil anos, era bastante semelhante à distribuição atual).

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    O montanhista Reinhold Messner, à direita, e seu colega inspecionam os restos mumificados de Ötzi, o ...
    O montanhista Reinhold Messner, à direita, e seu colega inspecionam os restos mumificados de Ötzi, o Homem do Gelo, após sua descoberta em 1991.
    Foto de Paul Hanny, Gamma-Rapho, Getty

    Cerca de 70% das espécies de briófitas encontradas nos restos mortais de Ötzi e ao seu redor, em alta altitude, não crescem na zona nevada, a região mais alta com vegetação alpina que começa a cerca de 3 mil metros nessa parte dos Alpes. Alguns dos intrusos botânicos podem ter sido transportados ao local da morte de Ötzi pelo vento ou por animais como ovelhas e pássaros. Mas os pesquisadores afirmam que havia vários musgos de baixa altitude — não apenas o da espécie Neckera complanata — que só poderiam ter sido trazidos ao local pelo próprio Homem de Gelo. “A distância é tão grande que não há outra explicação”, afirma Oeggl.

    Alguns dos musgos encontrados no local da morte de Ötzi — incluindo o da espécie Neckera complanata — se desenvolvem em Senales, um desfiladeiro ao sul da Itália, mas não se desenvolvem em nenhum dos vales próximos ao norte. O mapa de Dickson, portanto, aponta para a ideia de que Ötzi, em sua última jornada, desceu a Senales antes de sua derradeira subida. O Homem do Gelo pode ter roçado o corpo em musgos no desfiladeiro, estocado alguns para seu kit de suprimentos ou utilizado o vegetal para embalar seu alimento ou fazer curativos nas feridas. Durante sua descida, Ötzi pode ter chegado ao fundo do vale de Vinschgau, a cerca de 792 metros de altitude, onde pode ter coletado o musgo da espécie Sphagnum affine. Dickson especula que Ötzi poderia conhecer as propriedades antissépticas desse musgo e o utilizou para curar seu corte profundo na mão.

    As descobertas se encaixam no panorama geral de que a maioria das conexões de Ötzi ocorreram ao sul. Evidências isotópicas, por exemplo, sugerem que Ötzi cresceu na parte sul dos Alpes e viveu os últimos meses de sua vida naquela região, afirma Zink.

    Da mesma forma, Ursula Wierer, arqueóloga do departamento provincial de arqueologia de Florença, na Itália, afirma que “há inúmeras evidências de que o Homem do Gelo viveu no lado sul dos Alpes e que subiu por aquele lado dos Alpes até o local de sua morte”. A análise recente do conjunto de ferramentas de Ötzi feita por Wierer sugere que ele foi pego desprevenido com armas que precisavam de reparo. Ela afirma que o novo estudo, do qual não participou, é mais uma confirmação da natureza caótica de Ötzi perto de sua morte e “reitera a importância dos estudos arqueobotânicos para a reconstituição dos últimos dias do Homem do Gelo”.

    As briófitas, como musgos e hepáticas, só podem ser estudadas em cenários de preservação excepcional, como um pântano anaeróbico ou, no caso de Ötzi, um desfiladeiro congelado nas montanhas. Dessa forma, são “realmente incomuns na arqueobotânica”, afirma Logan Kistler, curador de arqueobotânica e arqueogenômica do Museu Nacional de História Natural Smithsoniano. “Não produzem sementes ou pólen geralmente preservados em sítios arqueológicos. São bastante efêmeras no ambiente”. O novo estudo, acrescenta Kistler, é “um bom exemplo de como é impressionante o local onde foi encontrado Ötzi”.

    “É um daqueles casos extraordinários que traz o passado de volta.”

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