Derrubar estátuas é uma tradição que remonta à independência dos Estados Unidos

O entusiasmo pela Revolução Americana levou os colonos a queimar, desfigurar e danificar qualquer símbolo da Grã-Bretanha e de seu detestado rei.

Por Andrew Lawler
Publicado 6 de jul. de 2020, 10:24 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
O rei George III cai de seu pedestal nesta versão romantizada do evento de 9 de ...

O rei George III cai de seu pedestal nesta versão romantizada do evento de 9 de julho de 1776, em Nova York, Estados Unidos, na presença de nativos americanos. A estátua real mostrava o monarca em trajes romanos, e os afro-americanos podem ter ajudado em sua destruição espontânea.

Courtesy New York Historical Society

Fogos de artifício, bandas e churrasco são ingredientes que não podem faltar na comemoração de quatro de julho, o dia da independência dos Estados Unidos. O que geralmente não faz parte do cardápio é derrubar estátuas, quebrar placas ou queimar retratos. Mas nos dias seguintes à declaração de independência da nova nação, os americanos entraram em um frenesi de destruição que faz com que os recentes ataques aos monumentos confederados e outros símbolos da supremacia branca pareçam “fichinha”.

O mais dramático deles ocorreu na cidade de Nova York, em 9 de julho de 1776. No início daquela noite, o general George Washington e suas tropas, junto com centenas de cidadãos, se aglomeraram onde agora é o City Hall Park para ouvir a leitura de um documento que havia acabado de chegar da Filadélfia. A multidão entusiasmada seguiu para a Broadway, rumo à estátua de duas toneladas do rei George III montado a cavalo em Bowling Green.

Essa foi a mesma rota seguida pelos manifestantes em 1765, quando os nova-iorquinos manifestaram contra uma nova lei que tributava uma série de mercadorias. No ano seguinte, a assembleia da colônia encomendou a estátua em reconhecimento ao apoio do rei na revogação da tão abominada legislação. Inspirada na escultura equestre clássica do imperador romano Marco Aurélio, ela chegou de Londres em 1770 e foi inaugurada com grande pompa. Quando John Adams visitou Nova York pela primeira vez, em 1774, ele escreveu para sua esposa Abigail que a estátua do rei era “enorme, feita de chumbo sólido, adornada com ouro e ficava sobre um pedestal de mármore muito alto”.

Dois anos depois, fervorosos nova-iorquinos, com a ajuda dos soldados de George Washington, rapidamente a derrubaram do pedestal e a deixaram em pedaços. Grande parte do chumbo foi enviada para Connecticut e derretida para produzir 42 mil balas.

O chefe dos correios dos Estados Unidos, Ebenezer Hazard, escreveu que a estátua “foi derrubada para fazer balas de mosquete, de modo que suas tropas provavelmente seriam atingidas pela Sua Majestade derretida”.

Um oficial britânico, que resgatou a cabeça decapitada em uma taberna antes de ela chegar à fornalha, notou que o nariz estava danificado, os louros estavam retorcidos e uma bala de mosquete estava alojada “no meio da cabeça”. Ele a enviou de volta para Londres “para convencer os que estavam na terra natal da predisposição infame das pessoas ingratas desse país angustiado”.

Washington escreveu que, embora não duvidasse do fervor daqueles que mutilaram a estátua, denunciou que “era muito parecido com uma revolta e falta de ordem”. Ele disse para seus soldados evitarem tais incidentes no futuro.

E a destruição estava apenas começando. O brasão de armas britânico no tribunal de Nova York foi destruído, um frontão de pedra com a mesma imagem foi arruinado e o retrato do rei na câmara municipal foi “jogado no chão, seu vidro foi quebrado e o retrato foi rasgado e queimado, tudo isso aos olhos de pessoas que mostravam aprovação, oferecendo incentivos com gritos repetidos de ‘urra’”. Nem as igrejas foram poupadas. Um segundo-tenente naval escreveu que o clero havia recebido “a honra de derrubar” o brasão real. Caso se recusassem, “as pessoas tinham permissão para prosseguir com a destruição”.

Quando os britânicos recuperaram o controle de Nova York em agosto, o governador real relatou que “todo vestígio da realeza, que até há pouco estava em poder dos rebeldes, foi eliminado”. Até mesmo as coroas que decoravam a cerca de ferro forjado ao redor da imagem do rei foram arrancadas.

Como estátuas e retratos reais eram itens relativamente raros nas colônias, “os revolucionários eliminavam pedaços de papel, símbolos ou qualquer coisa que sinalizasse a autoridade real”, diz Brendan McConville, historiador da Universidade de Boston. “As multidões atacaram placas de taberna que continham armas ou coroas reais. Inclusive moedas com a representação do rei eram recusadas ou desvalorizadas.”

Depois que a declaração foi lida na State House em Boston, em 18 de julho, “o grito da sacada foi ‘Deus salve nossos Estados Americanos’, seguido de três vivas que rasgaram o ar”, escreveu Abigail Adams, testemunha ocular do evento. Naquela noite, de acordo com outro patriota, “as armas do rei e todos os objetos que apresentavam alguma semelhança com ele... juntamente com tudo que pertencia aos conservadores, foram retirados e confiscados da King Street.

Quatro dias depois, em Worcester, estado de Massachusetts, o grupo paramilitar chamado Filhos da Liberdade removeu o brasão real do tribunal e o queimou na rua. Depois, os líderes foram comemorar “o início da era feliz” em um bar chamado The King's Arms. Mas primeiro, arrebataram a placa que consideravam ofensiva, “com a alegre anuência do dono do estabelecimento”.

Na Filadélfia, o brasão de armas do rei que ficava no tribunal foi exibido pelas ruas e depois atirado em uma fogueira para o deleite dos cidadãos que estavam reunidos. Retratos do rei e de membros da família real em New Hampshire e Delaware foram desfigurados. Depois que a declaração foi lida em Savannah, no estado da Geórgia, em 10 de agosto, os rebeldes realizaram um funeral fictício e enterraram uma efígie de George III.

Destruir esses símbolos “não foi completa ou principalmente um ato de eliminação”, argumenta Wendy Bellion, historiadora de arte da Universidade de Delaware. Na verdade, os americanos estavam seguindo uma antiga tradição inglesa. Um ano depois que o rei Charles I da Inglaterra literalmente perdeu a cabeça em 1649, o Parlamento ordenou que sua estátua na Bolsa de Valores de Londres “fosse demolida, decapitada e que o cetro fosse retirado de sua mão”. Em 1689, soldados protestantes em Newcastle removeram uma estátua do rei católico James II e a arrastaram pelas ruas antes de jogá-la no rio.

Os eventos de 9 de julho de 1776 recentemente inspiraram um “meme” com uma imagem do monarca britânico e seu cavalo caindo no chão. A irônica legenda dizia que “após ouvirem a leitura da recém-adotada Declaração da Independência, os nova-iorquinos ‘destruíram a história’ derrubando uma estátua do rei George III”. “E é por isso que ninguém sabe quem ganhou a Revolução Americana.”

No entanto como os nova-iorquinos do século 18 aprenderiam mais tarde, foi relativamente fácil derrubar um símbolo de opressão, mas foram necessários anos de luta para fazer com que a autoridade enraizada da época refletisse a vontade do povo. “Eles conseguiram extinguir o símbolo da tirania em suas cidades e vilarejos”, diz McConville. “Mas acabar com a monarquia dentro de cada um deles se mostrou mais difícil.” O esforço contínuo para eliminar o racismo — e viver de acordo com as aspirações da Declaração de Independência — sem dúvida será tão desafiador quanto.

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