Coleção mais afetada pelo incêndio, entomologia aposta no conhecimento para se reerguer
Professora do departamento que estuda insetos no Museu Nacional, Marcela Laura Monné Freire acredita no lema de outro biólogo, o também sambista Vanzolini: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima."
Pouco mais de um mês após a tragédia, equipes trabalham para estabilizar e, em breve, iniciar os resgates dos acervos misturados aos escombros do Museu Nacional do Rio de Janeiro. De lá poderão sair, por exemplo, pedaços de cerâmicas, rochas, partes de fósseis queimados, todos com chances de serem restaurados. Porém, há um certo tipo de item que, muito provavelmente, não será sequer encontrado. Pequenos, frágeis, repletos de cores e de formas, as coleções entomológicas – um enorme conjunto de insetos preservados para pesquisa – eram o maior acervo do Museu Nacional e foi a coleção mais afetada. Cerca de cinco milhões de insetos podem ter sido perdidos para sempre!
Na série de quatro entrevistas com pesquisadores do Museu Nacional para compreender como se sentiram depois do incêndio e como enxergam o futuro do museu e das suas carreiras, chegou a vez de conhecermos mais uma história de superação: a da entomóloga Marcela Laura Monné Freire, professora associada do Departamento de Entomologia do Museu Nacional.
Marcela, como você reagiu quando soube do incêndio?
Eu me senti desesperada e a minha primeira reação foi ligar para a casa de meus pais pois fiquei preocupada de como reagiriam a notícia [ela é filha de Miguel Monné, pesquisador emérito do Museu Nacional]. Após eu fiquei por horas, com amigos, próximo ao palácio, com esperanças de que o fogo fosse controlado. Quando soube das perdas eu senti uma tristeza profunda, pois sabia que o acervo do Museu Nacional, composto por uma coleção de milhões de itens, era insubstituível.
Pode descrever o acervo perdido no incêndio?
A coleção entomológica do Museu Nacional continha cinco milhões exemplares de diversas ordens diferentes de insetos, como Blattaria, Coleoptera, Lepidoptera, Diptera, Orthoptera, Hymenoptera, Odonata, Collembola, Hemiptera. Era uma das maiores e mais antigas coleções entomológicas da América Latina. Os espécimes depositados eram registros da variação morfológica, da distribuição geográfica e de outras valiosas informações. Era o único testemunho da riqueza histórica de diversas localidades hoje devastadas no país. Tratava-se de patrimônio biológico do Brasil. Também era a fonte de pesquisa de dezenas de pesquisadores e a base de estudos de centenas estudantes de graduação e pós-graduação, inclusive do exterior.
Apresentava cerca de três mil holótipos [espécimes na qual é descrita uma espécie], e muitas dessas espécies eram conhecidas apenas por esses exemplares que agora foram perdidos. Dentre esses, eu posso destacar os do naturalista Fritz Müller, que foi um grande historiador natural, divulgador das ideias de Charles Darwin.
Como você está enfrentando a situação?
No primeiro momento pós incêndio, eu participei de uma reunião do Departamento de Entomologia. Isso aconteceu porque nós precisávamos de uma direção. Necessitávamos nos reorganizar, criar várias frentes, para seguirmos em frente.
Posso dizer por todos que ninguém está parado, nós temos um pensamento: consideramos a educação e a ciência a base para o desenvolvimento no país, assim como a cultura.
“Precisamos da sensibilidade do governo com a ciência e educação no Brasil, é necessário ter atenção com todas nossas coleções biológicas espalhadas pelo país. Isso não deveria ter ocorrido conosco, como não podemos reverter, é fundamental dar atenção às demais coleções”
Fale destas frentes de trabalho criadas.
Na frente que eu estou com uma professora Marcia Cury nós nos dividimos em dois grupos e estamos finalizando dois projetos para enviarmos a um edital do CNPq. Talvez esse novo trabalho esteja nos ajudando a manter a força e o equilíbrio.
Parece haver um significado importante nesses novos projetos de pesquisa.
Uma das primeiras decisões do Departamento de Entomologia foi a de que iniciaríamos a reconstrução da coleção entomológica e, para tal, escrevemos dois projetos, que já foram submetidos ao Edital Universal do CNPq. Consideramos eles o nosso primeiro passo na reconstrução da coleção entomológica do departamento do Museu Nacional.
Onde vocês estão trabalhando depois do incêndio?
Nós fomos recebidos pelo pessoal da botânica, dos invertebrados, da biblioteca, que estão em outros prédios. Já estamos nos reorganizando, tudo já foi remontado, os funcionários estão trabalhando. As aulas já voltaram e agora acontecem nos prédios do Horto Botânico da Quinta da Boa Vista.
Eu faço parte da Comissão de Pós-Graduação em Zoologia do Museu Nacional e afirmo que suporte já começou a ser dado a todos estudantes. Porque o museu não é composto apenas por nós, professores pesquisadores e orientadores. Os alunos já estão recebendo suporte psicológico através da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nós queremos que eles sejam abraçados. Trabalhamos para que eles sejam mantidos na instituição pois eles são usuários como muitos também já foram.
Vocês estão sem espaços adequados para trabalharem, sem equipamentos e coleções zoológicas, como pretendem superar isso?
No final de outubro os pesquisadores vão começar a coletar insetos nos parques novamente e, em termos práticos, nós precisamos de um prédio seguro e de armários compactados para receber a nova coleção. Já estamos recebendo também, de diversas instituições no Brasil, comunicados de intenções de doações. Serão duplicatas, material repetido, de outros acervos, que irão nos ajudar nessa tarefa de reconstrução da coleção de insetos.
Você pode citar as instituições que lhe ofereceram apoio?
Já estamos revendo os projetos de nossos estudantes e estamos recebendo apoio de diversos pesquisadores de várias universidades como Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Paraná e Universidade Federal do Mato Grosso. A Sociedade Brasileira de Zoologia está nos auxiliando na organização e captação de acervos de insetos e de outros grupos que também foram perdidos. Nós somos 11 professores, seis biólogos e 43 estudantes. Nós não perdemos nosso conhecimento. Somos capazes de nos reerguer e seguir em frente realizando ensino, pesquisa, extensão e curadoria de coleções. Como dizia o zoólogo Paulo Vanzolini: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".