Incêndio em museu destrói parte fundamental da história do Brasil

Artefatos culturais, fósseis e outros itens históricos insubstituíveis compunham o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Edifício tem 200 anos e foi morada da família real.

Por Michael Greshko
Publicado 3 de set. de 2018, 13:03 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
O fogo se espalhou rapidamente pelo prédio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 ...
O fogo se espalhou rapidamente pelo prédio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 2018.
Foto de Fabio Teixeira, Picture Alliance via Getty Images

Itens fundamentais da herança científica e cultural do Brasil se foram junto com a fumaça causada pelo incêndio devastador que invadiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro na noite do último domingo (02/9). Fundado em 1818, o lugar é a instituição científica mais antiga do país e um dos maiores e mais renomados museus da América Latina, contendo uma coleção de quase 20 milhões de artefatos científicos e culturais de valor incalculável.

Dentro das posses do Museu Nacional estava Luzia, fóssil humano de 11,5 mil anos considerado um dos mais antigos da América do Sul, assim como os ossos de criaturas brasileiras únicas, como o dinossauro de pescoço longo Maxakalisaurus. Devido às compras feitas pela família imperial do Brasil durante o século 19, o Museu Nacional também abrigava a coleção mais antiga de múmias e artefatos egípcios da América Latina.

Até o próprio prédio possui importância histórica: acomodou a família real portuguesa de 1808 a 1821, depois de ela fugir para o Rio de Janeiro em 1807 para escapar de Napoleão. O complexo também serviu como palácio para os imperadores do Brasil independente até 1889, antes das coleções do museu serem transferidas para lá, em 1890.

Mas, agora, os fósseis, a coleção egípcia, as espécies de invertebrados, e mais outros artefatos contidos no prédio principal estão, provavelmente, destruídos. As salas de peixes e répteis, o herbário e a biblioteca estavam localizadas separadamente e, acredita-se, podem ter sobrevivido.

“Quando vi as notícias sobre a tragédia, eu apenas comecei a chorar e todos meus colegas, outros arqueólogos que conheço no Brasil, tiveram a mesma reação — essa é uma perda para o mundo”, diz Maria Ester Franklin Maia Silva, arqueóloga brasileira e doutoranda na Universidade de São Paulo (USP).

Ainda não está claro como o incêndio teve início, mas ele começou logo depois de o complexo ter sido fechado para público. Bombeiros trabalharam durante a noite para apagar o fogo do prédio principal, mas parece que as chamas já deixaram um buraco na carreira de muitos cientistas.

Réplica do dinossauro Maxakalisaurus topai, exposto no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2006.
Foto de Vanderlei Almeida, AFP/Getty Images

“A importância das coleções que foram perdidas não pode ser estimada”, diz Luiz Rocha,  ictiologista brasileiro que hoje trabalha na Academia de Ciências da Califórnia, nos Estados Unidos, e que já visitou o Museu Nacional diversas vezes para estudar suas coleções. “Elas eram únicas como nenhuma outra: muitas eram insubstituíveis, não tem como estimar um valor monetário para aquilo”.

“Em termos de planejamento da minha pesquisa, eu estou praticamente perdido”, diz Marcus Guidoti, etimologista finalizando seu doutorado em um programa em conjunto com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Guidoti estuda a família de insetos Tingidae, que agrupa mais de duas mil espécies pelo mundo. O Museu Nacional mantinha uma das maiores coleções do tipo no planeta, mas o fogo provavelmente destruiu tudo, além do conjunto de mais de cinco milhões de artrópodes. “Esses espécimes não podem ser substituídos, e são cruciais para entender a espécie”, afirma ele. “Se eu estivesse disposto a continuar a trabalhar nessa família nesta região do globo, isso seria um grande golpe”.

A paleontóloga Dimila Mothé, pós-doutoranda da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), afirma que o estrago na ciência vai muito além das coleções. "Não se trata apenas da história cultural, da história natural, mas de toda pesquisa desenvolvida aqui", disse. "A maioria dos laboratórios foi perdida, e também as pesquisas de vários professores. Não acho que dê para dizer o impacto do que foi perdido."

O conhecimento indígena brasileiro também sofreu. O Museu Nacional abrigava coleções mundialmente famosas de objetos indígenas, assim como gravações de idiomas de todo o Brasil. Algumas dessas gravações, agora perdidas, são de línguas que não são mais faladas. 

"Eu não tenho palavras para dizer quão horrível isso é", disse a antropóloga brasileira Mariana Françozo, especialista em objetos indígenas sul-americanos na Universidade de Leiden, na Holanda. "As coleções indígenas são uma perda imensa... não podemos mais estudá-las, não podemos mais compreender o que fizeram nossos ancestrais. É de cortar o coração."

Na segunda, o site G1 Rio reportou que cinzas de documentos queimados – alguns ainda pontuados por anotações e ilustrações – caíram do céu a mais de um quilômetro de distância do Museu Nacional, jogadas pelas chamas.

Sem fundos e sem consertos

Essa não é a primeira vez nos últimos anos que o mundo perdeu um museu de história nacional. Em abril de 2016, o Museu Nacional de História Natural da Índia, em Nova Déli, também foi consumido pelo fogo. Essa também não é primeira vez que um incêndio destrói parte das heranças culturais brasileiras.

Em 2010, chamas atravessaram o Instituto Butantan, grande laboratório de pesquisas biomédicas em São Paulo, destruindo uma das maiores coleções de espécimes venenosas do planeta. Mais de meio milhão de cobras, aranhas e escorpiões coletados por mais de 100 anos viraram fumaça.

Em uma declaração postada no Twitter, o presidente Michel Temer lamentou a perda do Museu Nacional e disse que ela é “incalculável para o Brasil” e “um dia triste para todos os brasileiros”. Mas o governo está enfrentando grandes críticas devido a acusações de que a tragédia poderia ter sido evitada.

Desde 2014, o Museu Nacional não recebeu seu orçamento anual de 520 mil reais destinado à manutenção. Este ano, ele recebeu apenas 54 mil reais. Em 2015, o museu foi forçado a fechar suas portas temporariamente porque não conseguia mais pagar pelos funcionários de limpeza e segurança. Os curadores do estabelecimento tiveram que arrecadar dinheiro para sanar problemas com cupins em uma das salas de exibição mais populares, que continha o esqueleto de uma baleia-jubarte e ossos de um dinossauro Maxakalisaurus.

Em maio de 2018 — na véspera de seu 200º aniversário — dez das 30 exibições do museu foram fechadas ao público devido a ruínas. Na época, o jornal Folha de S. Paulo reportou que o museu tinha paredes descascando e fio elétricos expostos. Os dois hidrantes próximos ao museu estavam secos, o que obrigou os bombeiros a utilizar água potável de caminhões-pipas e água do lago da Quinta da Boa Vista.  

“No meu ponto de vista, o Brasil tinha a responsabilidade de manter esses artefatos seguros, e ele falhou”, diz Franklin Maia Silva.

“Perdemos parte de quem somos”

O governo brasileiro já afirmou que está começando a estudar formas de reconstruir o Museu Nacional. A Folha de S. Paulo publicou que o ministro da cultura, Sérgio Sá Leitão, pediu inspeções dos sistemas de proteção de incêndio de outros museus brasileiros.

Mas Rocha indica que simplesmente consertar o prédio irá adiantar pouco para preencher o buraco deixado na ciência nacional, especialmente enquanto o país continua a cortar orçamento destinado à pesquisa. Em março de 2017, Temer cortou o fundo destinado à ciência em 44%, baixando o total para 4 bilhões — o nível mais baixo desde 2005 — e no final do mesmo ano, ele propôs um corte de mais 16%. Algumas das instituições de pesquisa do país estão com problemas para pagar até mesmo o básico, como contas de eletricidade, reportou a Nature.

“A ciência em geral é vista no Brasil como algo que não precisamos investir”, diz Rocha. “Eu espero que o líderes brasileiros abram seus olhos e vejam que vale a pena o investimento, não apenas a reconstrução”.

Enquanto isso, alunos estão trabalhando em um projeto de reconstrução próprio. “Em face da tragédia de hoje à noite, os estudantes do curso de museologia da Unirio (Universidade Federal do Rio de Janeiro) estão se mobilizando para preservar a memória do Museu Nacional”, disse o estabelecimento, por e-mail. “Pedimos a todos que possuam imagens (fotografias, vídeos, até mesmo selfies) das coleções e espaços de exibição, dividam-nas conosco.”

Os estudantes provavelmente vão conseguir um envio de Emilio Bruna, um ecologista da Universidade de Florida. O trabalho de Bruna geralmente leva ele ao Brasil, onde ele estuda a fragmentação de habitats. Mas quando ele recentemente visitou o Museu Nacional com sua esposa — uma brasileira — e seus filhos, a família passeou pelos corredores do lugar como turistas.

“Você caminha por esse prédio que estava presente nas origens desse vibrante e rico país, você vê pessoas orgulhosas com os fósseis de dinossauros brasileiros — animais únicos em seu país. Assim que soube do incêndio e comecei a contar, meu filho estava em lágrimas. Ele estava devastado”, diz Bruna.

“Museus são repositores vivos de quem somos, de onde viemos e do mundo ao redor de nós”, acrescenta ele. “Aqueles insetos guardados em uma gaveta, aqueles peixes em jarras, ou uma capa de penas exposta — tudo representa pequenos pedaços de quem somos como pessoas, como humanos, partes de um mundo muito maior. E quando essas espécimes são perdidas, perdemos uma parte de quem somos.”.

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